O Diabo veste bata branca
O governo, mais os partidos que o apoiam e que tanto amor devotam ao SNS, não poderiam ter sido mais avisados daquilo que iria acontecer.
Afinal, o Diabo não veio – foi vindo. Devagarinho, para não o ouvirmos; camuflado pela narrativa da austeridade revertida, para não o vermos; diluído na política das cativações, para não o sentirmos. Mas ele está aí. Aos poucos foi tomando conta dos serviços públicos, e muito em particular daquela que é a área mais frágil do Estado e que mais pressão coloca sobre as suas contas: o Sistema Nacional de Saúde. Nos hospitais portugueses, já cheira mais a enxofre do que a éter.
Há dias, soube-se que os dez chefes e coordenadores das equipas de Urgência do Hospital Dona Estefânia, em Lisboa, apresentaram a sua demissão. Já não se queixam apenas da falta de meios e do impacto que isso tem nos doentes – afirmam que ela coloca em risco a sua própria segurança, por se estar a promover “um ambiente de conflito que levaram a situações de elevado risco para os doentes e de violência verbal e ameaças físicas sobre médicos”. Afirmam que as equipas fizeram “mais de 1500 horas de urgência” do que lhes era legalmente exigido, e que houve médicos que já estavam fora das urgências devido à idade que foram obrigados (ou se sentiram moralmente impelidos) a regressar.
Permitam-me recordar uma notícia do PÚBLICO de Junho deste ano, quando os hospitais portugueses se preparavam para implementar as 35 horas semanais oferecidas por António Costa à função pública no início da legislatura. Dizia assim: “Estão criadas as condições para uma tempestade perfeita nos hospitais públicos, a partir de 1 de Julho: milhares de enfermeiros, de assistentes operacionais e de outros profissionais de saúde vão passar do regime das 40 horas para as 35 horas semanais, numa altura em que arranca a época de férias e há greves às horas extraordinárias convocadas por vários sindicatos.”
Encontram notícias semelhantes em todos os jornais. O governo, mais os partidos que o apoiam e que tanto amor devotam ao SNS, não poderiam ter sido mais avisados daquilo que iria acontecer. Com três turnos diários de sete horas, faltam três horas no final de cada dia, e para um SNS a rebentar pelas costuras essa pode perfeitamente ser a gota de água que faz transbordar o copo – como se está a ver. Não é só a Estefânia. Também já houve demissões nas urgências do Garcia da Orta, demissões em bloco no Hospital de Gaia (52 directores e chefes), demissões em bloco no Hospital de São José (16 dos 17 chefes de equipa de Medicina Interna e Cirurgia Geral), demissões de três directores de serviço do Hospital da Guarda, demissão de dois directores do Hospital de São João, demissão de três directores do Hospital de Faro, demissão de 90% dos diretores de serviço e coordenadores do Hospital de Viseu, demissão do director do serviço de Imagiologia do Hospital de Guimarães (e também do de Coimbra), demissão dos chefes de urgência de Obstetrícia do Hospital Amadora-Sintra. E, acreditem, há mais: em Matosinhos, na Feira, em Santarém, no Barreiro. Quase todas estas demissões ocorreram em 2018, e boa parte delas nos últimos seis meses. A justificação é sempre a mesma: falta de recursos.
Certamente que esta quantidade astronómica de pedidos de demissão não tem uma motivação política. Não são médicos do PSD a querer entalar o governo PS. São apenas profissionais sem condições para desempenhar o seu trabalho – e que demonstram o enorme embuste que é a reversão da austeridade, as cativações de Centeno e os sorrisos da actual maioria. Sim, o Diabo veio. Ele está à nossa volta. Basta abrir os olhos.