Não queiramos ser cobaias da China
Ainda que tal perturbe múltiplos interesses políticos e económicos acomodados, convém recordar que o regime chinês nada contém de recomendável.
1. “Em Julho, os cidadãos chineses Li Zhan, Mi Jiuping, Yu Juncong e Fu Changguo, trabalhadores fabris, foram detidos pelas autoridades do seu país por terem tentado criar um sindicato. Tais detenções configuram uma violação da sua liberdade de reunião e associação, bem como do seu direito de sindicalização. Desde essa data, os quatro homens permanecem impossibilitados de contactar com as suas famílias e com acesso muito restrito aos seus advogados, circunstâncias que suscitam sérias preocupações com o seu bem-estar e levantam dúvidas sobre a possibilidade de realização de um julgamento isento. Para além de a China ter ratificado várias Convenções da OIT que incidem sobre direitos laborais, a lei sindical da República Popular da China, promulgada em 1992, consagra o direito dos trabalhadores chineses de criarem organizações sindicais de sua livre vontade. À luz destes factos, como pretende a UE influenciar a China no sentido de garantir o acesso destas quatro pessoas às suas famílias, aos seus advogados e a um julgamento imparcial, e, mais latamente, como tenciona pressionar esse país a respeitar os Direitos Humanos, os Direitos Laborais e os princípios conformadores de um Estado de Direito, no âmbito do diálogo enquadrado pela Agenda Estratégica para a Cooperação 2020 entre a UE e a China?”.
Na minha condição de deputado no Parlamento Europeu, coloquei há algumas semanas esta questão à Comissão Europeia. Fi-lo movido pela intenção de apoiar o esforço que alguns corajosos sindicalistas chineses teimam em prosseguir, em circunstâncias deveras hostis, no intuito de dignificar o valor do trabalho e de assegurar remunerações condignas. Por muito que isso ofenda um certo pragmatismo imediatista e alheio a qualquer tipo de vinculação ética, importa apoiar quantos continuam a lutar no contexto extraordinariamente adverso de uma ditadura pela afirmação dos Direitos Humanos nas suas múltiplas dimensões.
Ainda que tal perturbe múltiplos interesses políticos e económicos acomodados, convém recordar que o regime chinês nada contém de recomendável. Pelo contrário, ele exibe ostensivamente características execráveis, que não devem suscitar outra reacção que não seja de repulsa no mundo das democracias ocidentais. Sob a liderança de Xi Jinping temos assistido a um reforço da componente autocrática, a uma significativa redução da esfera da autonomia individual e a uma progressiva instauração de um modelo de controlo público de características marcadamente totalitárias. Em bom rigor, a China actual já pouco tem que ver com a utopia comunista de que se continua ilegitimamente a reclamar, não obstante aproximar-se desta num aspeto fundamental, que consiste na denegação absoluta do valor da liberdade.
Por mais que estejamos momentaneamente afastados dos Estados Unidos da América, o que em grande parte se deve à verdadeira tragédia que tem sido a Administração Trump, não podemos sucumbir à tentação dos cantos de sereia chineses. Confesso que os comportamentos exibidos por algumas das mais altas figuras da República Portuguesa aquando da recente visita do autocrata chinês a Portugal, em particular pelo próprio Presidente da República, me suscitaram uma epidérmica reacção negativa. Convenhamos que alguns excessos podiam e deviam ter sido evitados. Ainda não atingimos o estatuto de pedintes desprovidos de qualquer tipo de dignidade; estamos, aliás, longe de atingi-lo.
As relações de Portugal com a China não podem - ou pelo menos não devem - ser tratadas em desconformidade com os nossos compromissos europeus. O governo português procederá mal se se pretender desvincular da solidariedade intraeuropeia neste domínio tão importante. Nenhuma pequena vantagem de curto prazo poderá justificar uma opção dessa natureza. Com o devido respeito, se agíssemos dessa forma estaríamos a actuar de forma idêntica a alguns regimes terceiro-mundistas pouco preocupados com os Direitos Humanos, com a salvaguarda de interesses estratégicos a longo prazo, ou sequer com a mais elementar noção de dignidade nacional. Contrariamente ao que afirmou de modo leviano e irresponsável uma secretária de Estado do actual Governo, nós não estamos destinados a ser uma cobaia europeia ao serviço dos interesses chineses. De tal modo a tentação chinesa se instalou na sociedade portuguesa que até mesmo cronistas e analistas aparentemente insuspeitos, por hábito ciosos dos valores e princípios que identificam como intrínsecos ao projecto europeu, se ajoelham inesperadamente perante o fascínio exercido pelo Império do Meio. O que concorrerá para que analistas tão dados à exibição de uma lucidez exigente se prostrem numa atitude de nítido favorecimento das pretensões chinesas? Há mistérios que talvez seja melhor não desvendar.
2. Enquanto na China os sindicalistas são despudoradamente perseguidos, em Portugal as greves sucedem-se com uma frequência e a um ritmo alucinantes. Algumas colocam sérios problemas de ordem ética. Por muita razão que assista aos enfermeiros, nada justifica a forma como as suas organizações representativas se têm comportado. A Ordem dos Enfermeiros tem-se vindo a descredibilizar publicamente, suscitando uma compreensível repulsa na sociedade portuguesa. Os sindicatos também não têm estado à altura das suas responsabilidades. Tudo isto contribui para a ideia de que o Estado é fraco e está prisioneiro de interesses corporativos pouco interessados com a promoção do bem comum.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico