A cor e o cheiro dos yuans de Xi Jinping: medo, muito medo
Não tarda, Portugal estará ao lado da Grécia a bloquear iniciativas diplomáticas de condenação da China.
O The Guardian noticiou no dia 3 de dezembro uma sinistra “reforma do casamento” promovida pelo ministro dos Assuntos Civis da República Popular da China, com o objetivo de pôr termo às práticas “vulgares” que refletem a “galopante adoração do dinheiro” em festas de casamento, que devem antes espelhar o “pensamento de Xi Jinping”. Impõe às autoridades locais, muitas das quais tinham já em prática restrições ao número de convidados e à despesa máxima em presentes, uma “adequada etiqueta de cerimónias e festas de casamento”.
A ideia de um governo se intrometer desta forma na intimidade das pessoas é em si mesma assustadora. Mais assustadora é a origem da loucura despesista dos casamentos. Amartya Sen, Prémio Nobel da Economia de 1998, escreveu extensivamente sobre as “missing women” — literalmente, mulheres em falta — na China. Na Europa e na América do Norte, para cada 100 homens, há 105 mulheres. Na China, há apenas 94. Ou seja: 11 mulheres em falta por cada 100 homens. A partir desta conta simples, Sen estimou em 1990 que havia 50 milhões de mulheres em falta na China. A pior desigualdade de género, que nega às mulheres o direito a nascer, tem origem na política do filho único em vigor no país entre 1979 e 2015. Com a restrição a um filho, as famílias preferem descendentes rapazes, optando por abortos seletivos de fetos femininos. Na China nasciam neste período 117 bebés menino por cada menina, quando no resto do mundo nascem cerca de 105.
Existem hoje na China mais 30 milhões de homens do que mulheres. Com tão poucas disponíveis, as famílias começaram a vender as suas jovens nubentes por preços que atingem, por exemplo, na província de Hubei, 200 mil yuans, dez vezes o rendimento médio das famílias da região, que vivem essencialmente da agricultura. O preço a pagar por uma noiva pode ainda incluir jóias, carros e casas.
A Reforma do Casamento é só mais uma forma de autoritarismo de Xi Jinping, que desde que tomou o poder em 2012 não tem olhado a meios para instaurar o culto de personalidade e o controlo apertado da sociedade, já de si estrangulada por décadas de privação de direitos civis básicos. O menu é vasto: campanha de purgas de algo como 1,3 milhões de oficiais chineses e oponentes, que terá levado alguns ao suicídio; cerca de 250 advogados e ativistas de direitos civis presos; controlo apertado da Internet e redes sociais; promoção ativa de Xi como o descendente de Mao Tsetung, com o seu próprio livro-fetiche, A Governança da China, e uma máquina de propaganda impressa nas paredes das cidades, em pratos, colares e outros artigos à venda por todo o país. Tudo culminou em 2017 com a inscrição do nome de Xi Jinping na Constituição da RPC e a abolição do limite de mandatos. Leitoras e leitores, temos líder! Provavelmente vitalício.
Em abril, a Bloomberg publicou um relatório sugestivamente intitulado Como a China está a Comprar o Acesso à Europa, no qual compila informação sobre o investimento chinês no Velho Continente, que totalizou 255 mil milhões de dólares na última década, cerca de 63% dos quais de empresas controladas pelo Estado. Este número é conservador, porque ignora 355 fusões cujos termos não são públicos. Embora a maior parte do investimento vá para as maiores economias europeias, é na Grécia, Portugal e Chipre que a China mais investiu em infra-estruturas básicas. A China possui quatro aeroportos, seis portos, parques eólicos em nove países e 13 clubes de futebol na Europa. E a REN em Portugal. Um estudo da Universidade de Sydney afirmou recentemente que “o papel proeminente de empresas controladas pelo Estado no investimento chinês em países estrangeiros levanta preocupações de que estes investimentos tenham motivações estratégicas e não comerciais”. Em 2017, a Grécia, cujo maior porto, o de Pireu, é propriedade chinesa, vetou uma condenação da União Europeia às violações dos direitos humanos na China.
A Austrália, em nome do “interesse nacional” e os Estados Unidos, pela “segurança nacional”, já legislaram para controlar a presença de capital estrangeiro (leia-se: chinês) em setores críticos. A chanceler Merkel e o presidente Macron começaram a movimentar-se para a UE responder coletivamente a este apetite chinês pelas nossas infra-estruturas básicas. Enquanto isso, no nosso triste jardim à beira-mar plantado, um líder sinistro, potencialmente vitalício, de um regime autoritário, foi bajulado pelo poder político e económico em peso, durante uma visita oficial em que até os moradores vizinhos do hotel onde se hospedou viram as suas liberdades fundamentais suspensas. Um presságio. Não tarda, Portugal estará ao lado da Grécia a bloquear iniciativas diplomáticas de condenação da China.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico