Um laboratório de ritmo chamado HHY & The Macumbas
Beheaded Totem é mais um documento estranho e fascinante do laboratório de ritmo que é o colectivo HHY & The Macumbas.
Os dez minutos de Danbala propaganda atiram-nos ao chão. É duro, mas recompensador, estar dentro deste espaço multidimensional de percussão pontilhista e de ritmos britados e dissonantes, que estilhaçam e rebrilham num caos luminoso, entre assombros momentâneos de músicas africanas rasgadas por sons corrosivos, cheios de fuligem. Pelo caminho surgem os sopros, que têm tanto de bamboleante como de tonitruante, mais os vestígios de jungle mutante, peganhento, visceral. Visceral, sim: quase tudo aqui é carne e osso, e se há um certo chamamento animista — como em todas as composições dos HHY & The Macumbas —, ele não resulta nem em transe, nem em alienação. Estamos perante música extremamente física, muscular, que convoca os corpos para o presente e implica o outro.
Beheaded totem, o segundo e novo álbum do colectivo do Porto, é o depurar de uma linguagem que tem vindo a ser desenvolvida por Jonathan Uliel Saldanha, o principal escultor sonoro do grupo, tanto nas suas composições musicais — desde 2000 que é figura-chave da música experimental portuguesa, em particular da cena portuense —, como nas suas performances, instalações artísticas e colaborações em teatro e dança. Há uma pesquisa quase molecular do ritmo e dos mecanismos de construção e desconstrução por trás dele, muitas vezes em diálogo com o corpo. Uma exploração cirúrgica das cavidades da acústica e das transposições bizarras de ritmos, frequências, timbres, ressonâncias, num cruzamento entre músicas — ou reminiscências delas — de diferentes tempos, geografias e periferias.
Como nos dizia há dias Jonathan Uliel Saldanha, os HHY & The Macumbas são um “laboratório de ritmo”, descrição certeira para os dez anos de actividade deste colectivo, que desde o início tem ocupado um lugar singular na música portuguesa — actualmente, a formação é composta por João Pais Filipe, Filipe Silva, Frankão, Brendan Hemsworth, Álvaro Almeida e André Rocha. Com as sete composições de Beheaded Totem, chegam a novos sítios: enquanto no primeiro álbum, Throat Permission Cut (2014), existia um território mais definido de ritmos e percussões circulares com sopros, metais e vocabulários do dub, agora há uma não-linearidade de ritmos e sons quebrados, acelerados e altamente granulados, numa deslocação febril entre o dub, o jungle e o free jazz, entre a música de clube, a música experimental e improvisada, e outras linguagens rarefeitas.
Nesse sentido, a primeira música do disco, Wilderness of glass, faz a ponte entre os dois álbuns. Arranca com uma solenidade algo ameaçadora, reminiscente das marching bands, com sopros num compasso de espera que se prolongam no ar, enquanto do subsolo vão emergindo batidas ossificadas e entrecortadas (lembra-nos as produções dos artistas da Príncipe), que se vão canibalizando sob um manto de dub fantasmático e percussões incisivas. O final, qual labareda — tipo Boredoms vs. Lightning Bolt, mas sem guitarras —, não deixa espaço para respirar. Misteriosa e curta, A scar in the skull funciona como um descompressor, numa espécie de orquestra de ecos e murmúrios que parecem vir dos confins de um cérebro ao acordar. Deep sleep routine pode ser considerada a sequela de A scar in the skull, mas de fisicalidade penetrante, em câmara lenta. Ritmos vermiculares e crocantes, sopros em revoada e electrónica corrosiva vão trepando pelo nosso corpo.
E é com todos os sentidos alerta que se chega ao techno-jungle em jogo de sombras de Swisid mekazine reijman, a última paragem do álbum (isto poderia ser um encontro entre Iannis Xenakis, Vladislav Delay e Christoph de Babalon). Por instantes parece que estamos dentro de uma discoteca subterrânea, mas isso seria demasiado fácil para os HHY & The Macumbas: pouco depois entra em cena um festim macabro de metais estridentes e percussão hiperactiva e quebra-cabeças. Tudo vibra. É pirotecnia para os corpos.