“Os gráficos e mapas estão a ser utilizados para fazer desinformação”
Nem sempre uma imagem vale mil palavras, avisa Alberto Cairo, que foi responsável por equipas de infografia em jornais de Espanha e do Brasil e que hoje ensina sobre o tema na Universidade de Miami (EUA). Às vezes, as imagens servem para nos tapar os olhos - e até manipular politicamente.
Em entrevista ao PÚBLICO, Alberto Cairo, professor, escritor e jornalista, fala da importância de saber interpretar os gráficos com que todos os dias nos deparamos. Verificar a fonte primária dos dados, ver como os gráficos são construídos, que informação é apresentada e não tentar ir além daquilo que lá é mostrado são as estratégias que sugere. Sobre a promoção da literacia gráfica, não tem dúvidas: é algo que deve ser adquirido ao nível da educação básica.
O especialista espanhol esteve em Portugal, no ISCTE, para dar uma palestra a que chamou Visual Trumpery. E apesar da provocação sugerida pelo nome, “não tem nada a ver com o Trump”, assegura. “Ele aparece a dada altura, mas não é uma palestra política. É mais de pensamento crítico." O nome que escolheu para o evento prende-se com a palavra inglesa trumpery, que significa “algo que engana, um objecto que mente, principalmente aos olhos”, explica o professor que foi responsável por equipas de infografia em Espanha (El Mundo) e no Brasil (Globo) e que hoje ensina Jornalismo Visual na Faculdade de Jornalismo da Universidade de Miami.
Como é que surgiu a ideia de criar uma palestra — a Visual Trumpery — focada neste tema?
Porque nos últimos anos vejo a forma como as representações visuais da informação, como gráficos estatísticos e mapas, estão a ser utilizadas com objectivos de desinformação por alguns sectores e actores. Mas a minha maior preocupação é que as pessoas lêem os gráficos e, muitas vezes, interpretam-nos mal.
Mesmo que estejam bem-feitos?
Sim. Isso é muito preocupante para mim, que já tenho 20 anos de gráficos estatísticos e mapas. A palestra é sobre como os gráficos mentem, que também é o título do livro que publico no próximo ano (How Charts Lie). Mas, na verdade, também podia ser sobre como mentimos a nós mesmos com os gráficos. Não são tanto os gráficos que mentem de propósito, mas como os interpretamos mal e como evitar isso.
A ideia surgiu com a campanha eleitoral de 2016 nos Estados Unidos?
Esteve relacionado. Mas houve um caso específico que vi desenvolver-se na internet. É sobre como o Trump interpreta mal os mapas das eleições norte-americanas. Ele vê o mapa dos resultados nos condados e constata que ganhou 2000 e a Hillary venceu em 500. O mapa é um oceano de vermelho e um pouco de azul. A impressão que dá é que o Trump ganhou por uma diferença gigantesca. Mas para interpretá-lo é preciso saber quais as diferenças na densidade de população nos diferentes condados. As zonas onde Trump ganhou são sobretudo rurais com muito pouca população. Ao passo que aqueles em que Hillary ganhou são urbanos. Foi aí que vi perfeitamente a necessidade de explicar este tipo de assuntos e ensinar o leitor a interpretar um gráfico da maneira certa.
Então como é que podemos evitar ser enganados pelos gráficos?
A primeira coisa é ver qual é a fonte. Há fontes mais credíveis do que outras. Também é importante ver a fonte original. É preciso ver se os números que apresenta são representativos do fenómeno que está a tentar explicar. Ver as fontes primárias não é tarefa só de jornalista. É uma coisa que o próprio leitor que queira ser realmente bem informado e um cidadão ou cidadã activo numa democracia precisa de se acostumar a fazer. Sobretudo quando tem a sensação de que o número que está a ver tem algo de errada.
O segundo ponto é ver se o gráfico representa os números de forma proporcional. Há muitos gráficos que cortam os eixos: barras sem o eixo zero, que ficam distorcidas.
Outra coisa é perguntar-se se o gráfico mostra a informação adequada. O público tem de estar consciente que o jornalista tem a tendência de simplificar ao máximo. Às vezes isso é bom, porque não podemos deixar o leitor doido com a quantidade de dados. Mas o problema é que com essa tendência acabamos a simplificar demais. O objectivo de um gráfico nunca deve ser simplificar, mas esclarecer. São duas coisas completamente diferentes.
Uma questão mais ampla é lembrar que os gráficos mostram só o que mostram. Um exemplo que dou nas palestras é um gráfico que ilustra uma relação positiva entre o consumo de chocolate por pessoa e o número de prémios Nobel que o país tem. Quanto mais consumo de chocolate, mais prémios Nobel. Não está errado. O problema é que mostra só que há uma relação positiva entre as duas variáveis. Isso não quer dizer que o consumo de chocolate leve a mais prémios Nobel. É algo que acontece na nossa cabeça.
É o problema também de Trump. Quando vê o mapa das eleições, vê muito vermelho e pouco azul e faz a inferência de que ganhou por uma diferença gigantesca. Isso não é o que o mapa mostra. Uma questão fundamental é ensinar as pessoas a forçarem-se a não ler mais do que os gráficos mostram. E se quer ler além desse gráfico é preciso procurar mais dados. Não criar histórias na sua cabeça. Não projectar no gráfico aquilo em que já se quer acreditar. Esse é o problema de Trump. Usa o mapa para confirmar o que já sabe. É o "bias [enviesamento] da confirmação". Acontece com toda a gente.
E durante as eleições viu muitos exemplos desses?
Sim, vindos de todo o espectro político. Outro exemplo: nos EUA, houve uma grande discussão sobre o Obamacare. Os Conservadores atacam-no porque dizem que é mau para emprego. Os de esquerda dizem que é muito bom. Eu não tenho opinião. Vi uns comentadores de esquerda a mostrarem um gráfico que ilustrava o número de empregos criados nos EUA antes, durante, e depois da crise e assinalavam o momento em que foi aprovado o Obamacare. O gráfico, de novo, só mostra que há uma coincidência temporal entre o aumento de empregos e a aprovação do Obamacare. O que eles fazem é uma inferência causal. Dizem que é o Obamacare que explica a mudança da curva. Mas pode não ser verdade. Podemos pensar em explicações alternativas. Por exemplo, uns meses antes, o Presidente Obama passou o pacote de estímulos à economia. Injectou milhares de milhões de dólares em Fevereiro e a mudança da curva acontece em Outubro. Pode dar-se o caso desse dinheiro estar a fazer efeito. Ou podem ser colocados cenários alternativos: o que teria acontecido se o Obamacare não tivesse sido aprovado? A curva aumentaria mais, menos, ou ficaria igual? Ter uma coincidência temporal não quer dizer que exista uma relação causal. E o que eles fizeram era o mesmo que o Trump estava a fazer. Isso acontece com todos nós. Temos de ser muito mais conscientes desta tendência que o nosso cérebro tem de pular para explicações causais.
Usa muitos exemplos dos EUA.
Uso muitos exemplos do mundo americano, mas acho que são universais. O exemplo do Presidente Trump é adaptável a Espanha. Ou a Portugal. Mas há outros. Há um muito parecido ao dos chocolates e prémios Nobel, que mostra que é bom fumar cigarros. Porque mostra uma relação positiva entre a quantidade de cigarros fumados e a esperança de vida. Quanto maior o consumo de cigarros, maior a expectativa.
Já levou esta palestra a várias cidades dos EUA, à Suíça, ao Canadá, à Itália, à Noruega e agora a Portugal. As pessoas ficam surpreendidas ao perceberem como susceptíveis de se deixarem enganar pelos gráficos?
Sim. Há alguns mitos associados à visualização no mundo do jornalismo. Uma imagem vale mais do que mil palavras ou a visualização é intuitiva... Eu entendo porquê. Tendemos a achar que os gráficos e os mapas são ilustrações e que são como fotografias. Mas a visualização não funciona assim. Está baseada num sistema simbólico e gramático. Para poder interpretá-la é preciso ler. E a palestra é toda sobre como ler os gráficos.
Dois dos seus livros são o Functional Art (2012) e o Truthful Art (2016). Como é que estes dois aspectos — a verdade e a funcionalidade — trabalham em conjunto na infografia?
O que eu explico no segundo livro (Truthful Art) é que quando se faz um gráfico é preciso prestar atenção a diferentes aspectos. O primeiro é usar informação que seja verdadeira. E depois desenvolver uma certa sofisticação na hora de tratar a informação. A aparência visual é um aspecto importante, ainda que tenha de estar equilibrado com a parte de funcionalidade, que é entender que existem alguns princípios de visualização que é preciso respeitar na hora de codificar os números. Há variáveis que são melhor representadas num mapa, outras que ficam melhores num gráfico de barras, por exemplo.
Também tem um outro livro que será o terceiro deste conjunto: o Insightful Art. Será para 2019?
Não, será para mais tarde. Estou a planear outro que é para o grande público, sobre como interpretar a incerteza. É mais de probabilidade e estatística. Um dos dois vai ser para 2020 ou 2021.
Porque é que é importante ilustrar a incerteza?
Se não o fizermos estamos a desinformar. O exemplo que eu mostro é um trabalho do El País em que eles tinham uma pesquisa onde uma das questões tinha 45,4% e a outra 44,3% e diziam que uma era maior do que a outra quando a margem de erro eram seis pontos — três para um lado e três para o outro. Quando as diferenças são tão pequenas e a margem de erro é tão enorme, não se pode dizer que uma é maior do que a outra. Só se pode dizer que estão empatadas, são iguais. Há muitos outros exemplos. Quando se fala da variação da taxa de desemprego e se diz que cresceu ou decresceu 0,5 pontos percentuais, por exemplo. Isso pode ser uma variação aleatória dos dados. É preciso ver toda a série temporal.
O 11 de Setembro de 2001 foi um marco na produção de infografia online. Na altura estava no El Mundo. Como é que recorda esse período?
Houve vários acontecimentos. A primeira Guerra do Iraque, nos anos 90, foi uma grande revolução na infografia. Os jornais começaram a contratar muita gente para fazer mapas e ilustrações dos aviões e tanques. Essa foi a primeira explosão, pelo menos na Península Ibérica. O 11 de Setembro foi uma revolução na infografia online. Já estava a começar a crescer, mas foi nesse dia que se mostrou que era possível fazer esta infografia animada. Outro momento importante foi o 11 de Março de 2004 em Espanha [atentados terroristas coordenados, quase simultâneos, contra o sistema de comboios suburbanos de Madrid, que fizeram 193 mortos, três dias antes das eleições espanholas, por uma célula ligada à Al-Qaeda). Nesse dia, o El Pais, o El Mundo, e outros jornais espanhóis fizeram gráficos interactivos de breaking news no próprio dia. Que, tecnicamente, são super sofisticados. Olhamos para eles hoje e ainda podiam ser publicados. Esse foi outro marco. Naquela época, nos EUA, não era feito este tipo de infografia. Sobretudo nesse nível de avanço tecnológico.
Então os jornais espanhóis estavam na frente?
Sim. Sobretudo por uma questão de coincidência histórica. Primeiro porque em Espanha houve sempre uma tradição grande de infografia e depois pela influência de pessoas específicas que pressionaram os jornais a criar este tipo de departamentos. Esse processo não aconteceu tão rápido nos EUA.
Quando é que os EUA ultrapassaram Espanha?
A partir de 2008/2009 eles começaram a investir a sério em contratar pessoal que sabia fazer infografia online e programadores. Quando começaram a contratar gente que sabia programar. A partir daí bombou. Os espanhóis vão acompanhando a tendência. Agora é muito mais online e muito focado em números.
O que é que podemos esperar da visualização de informação nos próximos anos?
É preciso entender que a visualização é parecida com a escrita. Da mesma forma que se pode aprender a escrever pode aprender-se a visualizar. Não é assim tão complexo. Gostaria que houvesse uma maior democratização da visualização [de informação]. E hoje em dia há condições para isso. A quantidade de recursos para aprender é muito grande e há muitas ferramentas gratuitas.
A literacia gráfica não devia ser algo que se ensina nas escolas?
Acho que sim. E há quem se esteja a esforçar para isso. Para mim, esse é um conhecimento que não deve ser adquirido na universidade mas num nível muito mais elementar, na educação básica. Acho que podia entrar a interpretação dos gráficos e da estatística. Nunca aprendi isso na escola e acho que a responsabilidade disso cai nos professores de matemática, principalmente.