Um Messias para “encher a alma e o coração”
A Casa da Música acolhe esta terça-feira a produção Messias Participativo lançada pela Fundação La Caixa em Barcelona, em 1995. Mais de 200 vozes, profissionais e amadoras, vão cantar na Sala Suggia a obra-prima de Händel.
Maria Calado está reformada, trabalhou longos anos numa empresa de comunicação social, e já tinha integrado, por mais do que uma vez, um coro comunitário na Casa da Música. Decidiu agora regressar para “embarcar numa aventura bem maior” e respondendo a um convite que considerou “irrecusável”, mais ainda porque gosta imenso de música.
Alberto Guedes da Costa está também reformado, trabalhou na Sonae-Indústria e já experimentou igualmente cantar na Sala Suggia em mais do que uma ocasião. Como integra o coro daquela empresa, foi lá que soube do projecto Messias Participativo, e quis voltar. “Já conhecia a peça do Händel, que acho muito interessante, muito envolvente, e que exige um coro enorme, que nos enche a alma e o coração”, diz.
Joana Castro, cantora no Ensemble Os Cupertinos, de Famalicão, e directora do Coro de Câmara de São João da Madeira, está também ligada à Casa da Música, onde trabalha com o recém-criado Coro Infantil, e foi agora a responsável pela preparação do naipe das sopranos para o Messias. E Miguel Leitão, tenor também com ligação à instituição portuense, onde integrou já o Estúdio de Ópera e o Coro, ocupou-se do naipe dos tenores.
Estas são quatro das duas centenas de vozes, entre os 20 e os 70 anos, que este domingo de manhã subiram a escadaria de acesso aos bastidores da Sala Suggia para mais um ensaio – e o primeiro com o maestro holandês Daniel Reuss – de preparação do Messias Participativo, que esta terça-feira à noite, às 21h00, é apresentado na Casa da Música.
É a primeira vez que este projecto lançado em 1995, em Barcelona, pela Fundação La Caixa sai de Espanha e chega a Portugal – ressalvando a réplica que a Fundação Gulbenkian montou da famosa oratória de Händel em Dezembro de 2016, e que então levou também à capital da Catalunha.
Uma experiência imersiva
Este Messias Participativo é apresentado pela instituição espanhola e pela Casa da Música como “uma experiência imersiva" única, já que o coro comunitário vai ficar distribuído pela plateia. E esta é uma das dificuldades maiores a gerir pelos preparadores dos naipes e pelo maestro, como o próprio Daniel Reuss notou ao PÚBLICO no intervalo do ensaio de domingo. “Com tanta gente, a distância entre as vozes é sempre grande, e isso exige um cuidado suplementar para controlar o som. Mas terça-feira teremos um bom concerto”, prometeu o maestro holandês, bem experimentado na condução deste projecto da La Caixa, que, de resto, já dirigiu em várias cidades espanholas, de Barcelona a Madrid, de Granada a Bilbau, de Palma de Maiorca a Santiago de Compostela.
Joana Matos confirmou ao PÚBLICO que a preparação deste espectáculo “correu bem”. Através do seu serviço educativo, a Casa da Música endereçou o convite a uma dezena de coros amadores do distrito do Porto e abriu candidaturas para participantes individuais. Foi assim que se reuniram as duas centenas de vozes, que durante o mês de Novembro fizeram vários ensaios, primeiro apenas com os naipes respectivos, depois unindo-os. Até que, esta segunda-feira à noite, iriam ter finalmente o ensaio geral com as duas formações profissionais holandesas envolvidas no projecto Messias Participativo – o ensemble vocal Cappella Amsterdam, que desde 1990 é dirigido por Daniel Reuss, e a Orquestra do Século XVIII – e os solistas Ruby Hughes (soprano), Luciana Mancini (contralto), Andrew Tortise (tenor) e James Newby (baixo).
“As pessoas estão a adaptar-se bem ao maestro. Mesmo se ele optou por andamentos um bocadinho mais rápidos do que aquilo de que estaríamos à espera”, explica Joana Matos também a meio do ensaio de domingo, que começou com Miguel Leitão a dirigir pequenos exercícios de relaxamento físico e vocal. “Vocalmente, o Messias não é uma obra fácil de interpretar, mas nós usámos alguns vídeos com partes diferentes desta obra, e passámo-los aos cantores para ensaiarem em casa, e isso ajudou no processo”, diz o tenor formado no Conservatório de Música do Porto, e que já trabalhou em Inglaterra (integrou coros nos festivais de Aldeburgh e de Glyndebourne) e Áustria (Festival de Bregenz). Joana e Miguel, como Raquel Couto e António Miguel, respectivamente responsáveis pelos naipes das contraltos e dos baixos, continuam nos ensaios finais a fazer a ponte entre o maestro holandês e os seus cantores, que visivelmente se deixaram conquistar pelo humor e comunicabilidade de Reuss.
“Isto é uma aventura única, uma experiência fabulosa e inesquecível: conjugar um coro desta dimensão com uma orquestra e um maestro a sério”, testemunha Maria Calado, ao mesmo tempo que confessa que “há muito tempo não estudava tanto para poder corresponder minimamente” ao que lhe é exigido.
“Vê-se que o maestro sabe muito e conhece esta peça como ninguém, mas os nossos ensaiadores foram óptimos, ensinaram-nos bem e creio que estamos bastante próximos daquilo que querem de nós”, confirma Alberto Guedes da Costa, à espera dos últimos detalhes de Daniel Reuss, que “são aquilo que faz a diferença”.
Estreia de Daniel Reuss no Porto
Esta será a primeira vez que o maestro holandês actua no Porto e na Casa da Música, depois de ter já dirigido concertos em diferentes ocasiões no sul do país, como na digressão do Coro de Câmara Filarmónico da Estónia (de que é o maestro titular desde 2008), que em 2012 participou nos festivais Dias Da Música, no Centro Cultural de Belém, e Terras Sem Sombra, no Alentejo.
Daniel Reuss conduziu já formações como o RIAS Kammerchor de Berlim e o Ensemble Vocal de Lausanne, e trabalhou, como maestro convidado, com a Filarmónica de Roterdão, o grupo de música contemporânea MusikFabrik, de Colónia, e a Akademie für Alte Musik, de Berlim. Em 2015, assumiu a direcção dos concertos anuais participativos com o Messias de Händel, que a Fundação La Caixa continua a apresentar em Dezembro em diferentes cidades de Espanha.
Composta em 1741, sobre um libreto de Charles Jennens (1700-1773), e estreada no ano seguinte em Dublin, esta obra-prima da música barroca é normalmente vista como a mais famosa oratória – até pelo seu Aleluia – e um momento alto da prolífica criação de Georg Friedrich Händel (1685-1759), o músico nascido na Alemanha mas que se radicou e naturalizou em Inglaterra, onde inclusivamente se tornou compositor da corte.
Não sendo uma obra sacra, no sentido em que não foi composta para celebrações litúrgicas, esta oratória narra contudo a vida de Cristo em três partes: o nascimento, a morte e a ressurreição. Inicialmente era interpretada na Quaresma, e com uma formação que normalmente não ultrapassava os 60 músicos e cantores, mas, com o tempo, passou a ser cantada em Dezembro, antes do Natal, e a envolver muitos mais intérpretes.
Daniel Reuss diz que não conhece as razões desta mudança, mesmo se realça que o Messias é também tocado “durante todo o ano” – “o que também acontece, de resto, com as Paixões de Bach”, nota o maestro –, e lembra que “o texto é um patchwork com um libreto feito a partir de excertos da Bíblia, uma história dramática que basicamente conta a vida do Messias, a história de Cristo”.
Este Messias Participativo produzido pela La Caixa ganhou uma notoriedade inesperada desde a sua estreia há mais de duas décadas, e passou a integrar a programação anual de Dezembro de cada vez mais cidades no país vizinho. Chega agora ao Porto a estrear a sua saída das fronteiras espanholas. Aquando do anúncio da sua apresentação, em Setembro, no calendário da Música para o Natal da Casa da Música, a representante da Fundação La Caixa, Nuria Castells, estabeleceu uma curiosa comparação para explicar a singularidade deste espectáculo: será como colocar jogadores de futebol de campeonatos amadores a actuar ao lado dos craques do Barcelona e do Real Madrid…
No caso portuense, os amadores vêm de uma dezena de coros do Grande Porto: Arquicoro, Cantare Coral, Mille Voci, Anonymus, Lira, Coro do Colégio do Rosário, Ensemble Vocal Notas Soltas, Grupo Coral do Porto do Clube Portugal Telecom e Orfeão de Rio Tinto. Duas centenas de vozes numa produção que envolveu bem mais participantes, e que será certamente a mais volumosa que alguma vez actuou na Sala Suggia.