A UE não funciona como uma união e o Pacto das Migrações é prova disso

Um documento não vinculativo e que apenas propõe uma abordagem coordenada para um fenónemo global levantou mais polémicas que o previsto. Segunda e terça-feira vai ser assinado em Marraquexe.

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JON NAZCA/Reuters

Ninguém questiona os factos que estiveram na origem deste documento: as vagas de refugiados e imigrantes vieram para ficar, nenhum país lhes pode fazer frente de forma isolada e é melhor antecipar e planear do que permitir as cenas de caos que nos últimos anos tanto ajudaram a que as migrações (um fenómeno que à partida não tem nada de negativo) provocassem medo e confusão nas opiniões públicas.

Começaram por ser 193 e depois 193 menos um – os Estados Unidos de Donald Trump, que abandonaram as discussões ao mesmo tempo que se retiravam da UNESCO ou do Acordo de Paris sobre o clima. Na véspera da cimeira de Marraquexe marcada para adoptar o Pacto Global das Nações Unidas para as Migrações Seguras, Ordeiras e Regulares é quase impossível ter certezas sobre quais serão os países signatários. Muito porque entre os que hoje governam há quem tenha explorado os tais sentimentos de medo para chegar ao poder.

Deveria ser um momento histórico. O acordo, desencadeado por um pedido da União Europeia depois do pico de chegadas de requerentes de asilo em 2015, tem como ponto de partida a Declaração de Nova Iorque, assinada pelos 193 estados membros da ONU em Setembro de 2016, e que tinha como propósito “cobrir todas as dimensões das migrações internacionais”.

As discussões prolongaram-se por 18 meses e terminaram a 18 de Julho; alguns dos países que entretanto anunciaram que não assinarão foram dos que mais activamente participaram na sua redacção, como a Austrália ou a Áustria. Para além disso, o que choca as agências da ONU, Louise Arbour, a representante especial da ONU para as Migrações Internacionais, que foi a principal interlocutora nos debates, e a própria Comissão Europeia, é o abandono de vários estados da UE, cujas preocupações estiveram na origem do próprio documento.

A ideia não oferece grandes dúvidas – aliás, os defensores interrogam-se se os críticos terão lido o documento, 34 páginas divididas entre preâmbulo (onde se citam as Declarações e Convenções a que este documento vai beber), um conjunto de “ambições comuns” e 23 objectivos, com as três páginas finais destinadas à realização dos seus propósitos e ao método para avaliar essa mesma concretização.

O Pacto começa por recordar que a “migração tem sido desde sempre parte da experiência humana” e reconhece-a como “fonte de prosperidade, inovação e desenvolvimento sustentável no nosso mundo globalizado”, sublinhando que esses “impactos positivos podem ser optimizados com melhorias na gestão”.

Direitos e soberania

Admitindo que “a migração afecta de forma indesmentível os nossos países e comunidades, os próprios imigrantes e famílias de formas diferentes e por vezes imprevisíveis”, o pacto oferece um compromisso entre a afirmação dos direitos das pessoas que se deslocam e a soberania nacional dos países. Por definir ficam, por exemplo, o que podem as instituições fazer contra os que não protejam os imigrantes. Pessoas que, não sendo refugiadas e não tendo acesso à protecção da lei internacional, “podem exercer os seus direitos humanos através do acesso seguro a serviços básicos, independentemente do seu estatuto”.

Em resumo, o Pacto Global para as Migrações define “um entendimento comum, responsabilidades partilhadas e unidade de propósitos a respeito da migração”. Ao longo do texto descreve-se um “enquadramento de cooperação” para gerir estes fluxos com a ideia de limitar a pressão nos países que têm muitos recém-chegados e promover a independência destas pessoas. Nada de muito ameaçador.

Para além de garantias absolutas de soberania na definição de políticas por cada Estado individual, o Pacto não constituiu lei internacional, é um documento não vinculativo que procura oferecer um caminho para migrações ordeiras e planeadas, que não ponham em causa a vida dos que se deslocam nem o equilíbrio dos países que procuram. Na prática, tem como prioridade o objectivo simbólico de demonstrar que os países podem encontrar áreas de interesse mútuo na cooperação sobre as migrações.

Governos em risco

Com tantas garantias, é difícil perceber que a decisão final sobre assinar o documento tenha ameaçado a sobrevivência de governos como o da Bélgica, Holanda (que ultrapassou um voto de confiança no Parlamento mas vai exigir acrescentar uma “declaração adicional” para se proteger contra potenciais consequências legais), Eslovénia (o Governo vai assinar mas o Presidente exige explicações adicionais) ou Croácia (a Presidente recusa ir a Marraquexe e conta com o apoio de vários partidos, mas o governo nacionalista de centro-direita deverá assinar o texto).

De fora, com toda a certeza, ficarão Estados Unidos, Israel, Austrália,  Suíça, os países do Grupo de Visegrado – Polónia, República Checa, Eslováquia e Hungria –, Bulgária, Áustria e Itália (a decisão final de Roma parece ser “congelar” a assinatura). Há grande oposição interna na Alemanha (os governos de Angela Merkel foram os principais impulsionadores e líderes no processo de redacção), França ou Reino Unido.

“Nós vamos decidir como melhor controlar as nossas fronteiras e quem será autorizado a entrar no nosso país”, afirmou a então embaixadora dos EUA na ONU, Nikki Haley, para justificar o abandono de Washington, em Dezembro de 2017.

O documento fala em migrações regulares (que devem ser incentivadas através da criação de mais vias legais) e irregulares, mas evita os termos “legais” e “ilegais” que tantos governos usam para justificar as suas políticas. Para EUA e Áustria, por exemplo, só isto seria uma linha vermelha.

Evitar as detenções

Outra questão que levanta objecções é o compromisso para rever legislação e políticas que garantam que “os imigrantes não são detidos de forma arbitrária, que a decisão de os deter se baseia na lei, é proporcional, tem um objectivo legítimo e é tomada individualmente, sem violar o Estado de direito e as salvaguardas processuais, e que a detenção não é usada como dissuasor ou tratamento degradante, desumano e cruel dos migrantes”.

Ora, a Austrália, que tem centros de detenção fora do seu território, nas Ilhas Manu e em Nauru, para requerentes de asilo, e manda para trás barcos no mar (prática condenada pela lei internacional), não admite comprometer-se com nada que ponha em causa esta política “bem-sucedida”.

Várias estranhezas

Na mesma lógica, e num momento em que a UE sabe que diferentes países membros recusam receber requerentes de asilo resgatados no Mediterrâneo que são devolvidos à Líbia (o que é ilegal, já que o país não é considerado um porto seguro, para além de se saber que o destino é a detenção e os maus-tratos) e nada faz para o evitar, é paradoxal que Bruxelas condene o abandono do pacto de alguns dos seus estados sem assumir que a União, como um todo, não faz o suficiente para impor a legalidade no seu espaço comum.

O primeiro-ministro português, António Costa, estará em Marraquexe segunda e terça-feira para assinar o Pacto Global, confirmou no final da semana em Bruxelas o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita.

“Nós respeitamos a posição dos vários estados, mas transmitimos a nossa estranheza por o país da presidência [Áustria], que tem aqui responsabilidades especiais, não ser signatário deste pacto, que foi também negociado pela União Europeia”, afirmou o ministro.

“A UE não conta mais enquanto tal”, lamentou Jean Asselborn, ministro dos Negócios Estrangeiros e da Imigração do Luxemburgo. “Se há um tema a tratar por parte das Nações Unidas é o das migrações, onde é preciso uma cooperação entre os países de partida, os de trânsito e os de destino. A UE não pode deixar o peso nos dois ou três países de fronteira.” Ora, é precisamente isto que este pacto visa evitar e estranho é que alguns dos que o recusam são países de fronteira, sobrecarregados, como Itália.

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