Olivier Rolin: “Escrever é fazer com que o tempo que nós conhecemos não morra connosco ”
Quando se reedita um dos melhores livros de Olivier Rolin, Porto-Sudão, o escritor francês faz uma residência literária em Cascais. Trouxe todos os seus cadernos de viagem para escrever um romance.
O escritor francês Olivier Rolin (n. 1947) está desde Outubro em Portugal, a convite da Fundação Dom Luís I, para uma residência literária com a duração de dois meses. No seu atelier em Cascais, Rolin prepara um novo livro que tem por base os seus apontamentos das viagens que fez ao longo da vida – são sessenta cadernos arrumados sobre a secretária na qual trabalha, numa sala despojada de outro mobiliário. Numa altura em que se reedita por cá uma das suas obras-primas, Porto-Sudão (distinguido em 1994 com o prémio Femina), o PÚBLICO falou com ele sobre este livro que agora escreve, e também sobre a sua obra.
Olivier Rolin escreveu e viajou muito. Num outro pequeno livro, O Meu Chapéu Cinzento (ASA, 1999), e logo nas primeiras páginas, diz que “entre o facto de escrever e o de viajar há realmente algumas relações secretas”. Quisemos saber quais. “Associo o acto da escrita muito naturalmente ao de viajar”, diz Rolin. “Existe em mim qualquer coisa que não está satisfeita, que não é suficiente. Penso que é por isso que escrevo, por insatisfação, e é também por isso que viajo muito. Não tenho um lugar, a minha vida nunca esteve enraizada, as circunstâncias da vida fizeram com que nunca me casasse, e desde há alguns anos que estou sozinho, não tenho filhos, já não tenho pais, tenho um irmão que também é viajante como eu, não tenho propriamente uma profissão, tenho uma pequena casa na Bretanha, onde escrevo. Mas na verdade não pertenço a sítio algum ou a alguém. Na escrita e nas viagens há uma procura de qualquer coisa, mas não sei o quê, é algo desconhecido. Nunca encontramos aquilo que procuramos. Mas espero nunca sentir que encontrei esse algo completamente.” E acrescenta ainda que partir é para ele “uma necessidade, mas também uma angústia, sinto-a sempre que parto.”
Parafraseando Pessoa, diz que a sua Pátria é a sua língua, mas que essa Pátria literária não é de todo apenas francesa, apesar de ter nela Montaigne, Rabelais, Proust, Flaubert, mas tem também Pessoa, e Lobo Antunes, ainda Guimarães Rosa, e muitos escritores russos e americanos. Rolin não se assume como um escritor de viagens, e diz isso também logo no começo de O Meu Chapéu Cinzento. E acrescenta: “Devo ter escrito uns três ou quatro livros de viagens, já não me lembro ao certo. Por vezes, as viagens servem-me de cenário, como por exemplo num romance de que já não gosto muito, O Bar da Ressaca (D. Quixote, 1989), esse passa-se em vários países. Um Caçador de Leões (Sextante, 2010) passa-se no Peru e no Chile, em grande parte. E há outros.”
Peregrinação
Para o escritório de Cascais, Rolin trouxe as suas memórias anotadas de viagens. Mas não é sobre essas viagens que vai escrever, elas vão-lhe servir para esboçar retratos: do mundo e de si próprio. E, fazendo de epígrafe ao seu trabalho, ou talvez de farol, cita de cor Borges, o parágrafo final do livro O Fazedor: “Um homem propõe-se a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naves, de ilhas, de peixes, de quartos, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem do seu rosto.” Depois confessa que neste livro que agora escreve, há apenas algumas páginas que se passam em França. Que de uma maneira qualquer é uma circum-navegação. Que quando veio para esta residência literária trazia um título: “Exterior Mundo”. Mas o título agora já é outro: “provavelmente porque estou em Portugal, vou chamar-lhe Peregrinação, acaba por ser uma peregrinação por vários lugares do mundo.” São muitas as imagens do mundo que estão nestes sessenta cadernos, e o resultado será um retrato em mosaicos.
A parte difícil, confessou Rolin entre risos, será organizar todas essas imagens. “Mas imagino um fio entre uma lembrança e outra, entre uma recordação na Checoslováquia e outra no Chile, por exemplo. E por isso faço capítulos, porque posso encadear cinco, sete, oito lembranças, e depois recomeço tudo. O difícil aqui é criar uma circulação, dar um sentido a tudo isto.” Para quem conhecer mais ou menos a obra de Olivier Rolin, é provável que este modo de arquitectar o que escreve, lhe tenha trazido ao pensamento um outro livro seu, A Invenção do Mundo (ASA, 1998), um romance em que o autor reuniu cerca de quinhentos jornais diários impressos num dia preciso – 21 de Março de 1989 – em trinta e uma línguas e a partir deles encenou centenas de histórias de forma a constituírem uma só narrativa contínua.
“Curiosamente, comecei a escrever esse livro também em Portugal, em Sesimbra”, diz Rolin. “Nas primeiras frases o narrador, que não se sabe quem é, diz que está num país com nome de laranja, em grego laranja diz-se portugal. Neste que agora escrevo são coisas que testemunhei, coisas nas quais fui actor, isso não acontecia em A Invenção do Mundo. Mas sim, há uma relação entre os dois livros. Neste, todas as cenas que escrevo já as escrevi antes, no momento exacto em que as vivi, não são romanceadas. Quero criar um efeito vertiginoso, quero que o leitor esteja como que perdido, com uma leitura desorientada”. Mas insiste que não será um livro de memórias, que tem horror a esses livros, que os seus livros não são autobiográficos (à excepção de um), que quando as memórias existem, elas aparecem transformadas.
A literatura de Olivier Rolin parece ter a preocupação de ser testemunha do tempo. Como Borges, também ele parece interrogar-se sobre aquilo que morrerá connosco quando morrermos. “Escrever, entre outras coisas, é fazer com que o tempo que nós conhecemos não morra connosco.” Em alguns dos seus livros essa preocupação de testemunha é notória na procura de tornar clarividentes acontecimentos que já são pouco compreensíveis para leitores mais novos.
O presente, ou escrever no presente, para Rolin, é como ir destapando camadas de passado. “O meu tempo foi o da União Soviética, das ditaduras militares na América Latina, em Portugal e na Espanha. Eu venho desse tempo, então o meu presente não é o mesmo que o de alguém com vinte anos de idade. O meu presente é formado por muitos passados. Eu nasci logo a seguir ao final da Segunda Guerra, o meu pai fez essa guerra, isso também faz parte do meu tempo.”
No seu novo livro, a questão do tempo da acção irá ser dada pelo acontecimento em si, não haverá datas. E exemplifica com uma cena escrita há pouco, a de uma rapariga que num comboio para Copenhaga lê um livro e fuma. “Ela está no fundo de um poço de tempo: podia fumar-se nos comboios, havia alfândegas, há um cheiro a passado.” Também esta mulher será, talvez, mais uma sombra que passa para depois desaparecer, como em muitos dos seus livros. “É o meu lado baudelairiano”, diz a sorrir, e relembra um poema do poeta francês.