Tão belos que são os dias felizes e cínicos dos Glockenwise

Deixaram o inglês em repouso e valeram-se do português para criar um espantoso disco de grandes canções pop. Algures entre GNR, Smiths e Sonic Youth, acreditam. Plástico ouve-se ao vivo em Lisboa e Porto a 13 e 14 de Dezembro.

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Não era para arrancar assim. Mas sempre que os Glockenwise mostravam aos seus cúmplices o disco que tinham na manga, o comentário com que eram brindados era o de que estavam a desperdiçar – e quase a contradizer – a abertura perfeita para Plástico. A abertura que diz, com cada uma destas muito reveladoras letras, “Vontade de mudar / e de ter passos para dar”. Assim mesmo, em português. Soava demasiado a declaração de intenções para serem palavras afogadas no meio do disco. Só que, apesar de Nuno Rodrigues saber que havia uma clara transformação em curso, resumida na perfeição naquele par de versos, não podia ignorar que: a) a letra não tinha sido escrita a pensar no percurso dos Glockenwise (era talvez eco de uma agitação interior e pessoal); b) querendo anunciar essa mudança sobretudo através da sonoridade, resistia à ideia de “abrir o disco com a canção mais semelhante com tudo aquilo que fazíamos antes”.

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“E se estamos a tentar causar uma primeira impressão, devia ser a impressão de que há qualquer coisa de diferente e entusiasmante a acontecer”, diz ainda o vocalista e guitarrista do grupo de Barcelos ao Ípsilon. A verdade é que entre quem faz e quem ouve há sempre uma distância gigante. E Corpo, assim se chama uma das canções mais extraordinárias que ouviremos este ano, é tudo isso que Nuno teme que não seja – diferente e entusiasmante. Mesmo que possa até não ser a entrada perfeita para Plástico, terceiro álbum nas contas dos Glockenwise, não é fácil imaginar melhor maneira para começarmos a apaixonar-nos por um disco que, gracejava a banda enquanto amealhava estas nove canções – sem resolver (felizmente) a habitual sensação de não saberem bem aonde pertencem –, lhe parecia “algo entre os GNR, os Smiths e os Sonic Youth”. Está tudo lá: a pop renitente e com vontade de autoquestionamento dos seus limites reconhecível na banda de Psicopátria; o impecável património melódico com que Morrissey e capangas foram capazes de nos convencer de que precisávamos das suas canções para a mais elementar sobrevivência (conferir em Muito para dar); a fúria e a aspereza que por vezes toma conta de guitarras que foram educadas a tocar com o amplificador no 10.

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Com os trajes azuis com que os garbosamente se vestem em Plástico, os Glockenwise queriam aparecer aos olhos do público uniformizados, derrotados na sua individualidade por todos se parecerem tanto nessa hegemonia do individualismo

Ainda assim, durante uns tempos, confessa Nuno Rodrigues, Corpo foi “o disco”. Tendo-lhe cabido o primeiro lugar na passagem para o estúdio, assumiu-se “um test drive ao que é cantar em português”. “Ouvimos a canção em loop, o disco para mim era esta canção só, apetecia-me lançar logo o raw cut [a gravação em bruto, pré-misturas] da música.” Depois, quando a deram a escutar a quem sempre esteve por perto, Fua (o homem da Lovers & Lollypops e do Milhões de Festa), torceu o nariz ao “final anticlimático” de Corpo. “Acho que é isto que somos”, contrapõe Nuno. “Esta coisa neurótica, andrógina, que não quer ser rock, não quer ser pop, e em que isso às vezes pode ser um completo falhanço.”

Falhanço em Plástico é palavra que só vem à cabeça ao pensar no ambicioso plano inicial de gravar um disco com duas faces: as mesmas canções cantadas em português e em inglês, com arranjos ligeiramente diferentes. “Por uma série de factores que se combinaram, de indisponibilidade emocional, monetária e psicológica, decidimos que tínhamos de fazer algo menos ambicioso – que é sempre uma decisão triste de se tomar – mas que salvaguardasse o trabalho que estávamos a fazer.” E então, como as letras em português já iam avançadas, foi essa versão que imperou, sem qualquer “estratégia de mercado” que passasse por apontar a um novo e mais alargado público.“Então e não mudam de nome?”, houve quem lhes perguntasse, perante uma alteração de idioma que põe uma banda chamada Glockenwise a cantar palavras como “plástico”, “madrugadas”, “comiseração” ou “zangado”. “A banda é a mesma, a intenção é a mesma, os temas são semelhantes”, responde Nuno. A 13 (Musicbox, Lisboa) e 14 de Dezembro (Maus Hábitos, Porto) haverá boas oportunidades para o comprovar.

Essa semelhança vem do facto de a banda nunca ter perdido noites de sono com o carácter anacrónico daquilo que possa fazer – “Nós fazemos rock, mais anacrónico não poderia ser”, ri-se o vocalista. “E nem sequer é um rock muito vanguardista. Mas fazemos sempre o mais perto possível das nossas intenções emocionais.” Quer isto dizer que os Glockenwise nunca foram muito competentes a tentar replicar aquilo que os seus ídolos ou heróis faziam. A compensação é que são estupidamente bons a serem os Glockenwise. Uma identidade idiossincrática que, acreditam, beneficia de nunca terem ido atrás da proliferação de “bandas de garage rock a torto e a direito que soam todos às mesmas bandas americanas – parece que os miúdos foram todos ver tutoriais sobre os pedais a usar para soar como os King Gizzard”.

Na verdade, se houve cuidado que mantiveram ao longo da criação de Plástico foi o de quererem “evitar a todo o custo soar a garage rock e sobretudo a rock psicadélico”. O alarme soaria se enveredassem por qualquer sonoridade mais alinhada com quaisquer correntes mais ou menos em voga. Em vez disso, mesmo que não seja evidente ao escutar estas nove canções, pensaram nos Devo como inspiração, enquanto fazedores de canções “redondas e fechadas”, uma consequência da adopção do português que acabou por surpreendê-los. O objectivo declarado era adentrar por um disco de guitarras, com referência nas décadas de 80 e 90 – razão pela qual talvez não espante descobrirmos aqui uma afinidade com o pragmatismo pop-rock e melodicamente contagiante dos Supergrass (algo que já encontrávamos em temas como Napoleon, de Leeches). E é seguir sem medo, porque cada canção de Plástico provoca um pequeno sismo de maravilhamento.

As pequenas vitórias diárias

Para quem não é estranho ao mundo dos Glockenwise, não é apenas a passagem do inglês para o português que obriga a um salto do anterior Heat para este Plástico. Aquilo que havia de angustiado em Heat, de rosto rubro depois de “levar a primeira chapada da vida adulta”, em Plástico transforma-se numa indecisão entre o acatamento cínico e a celebração pequenina das igualmente pequenas vitórias do dia-a-dia (fazer a cama de manhã, pagar a conta da água ou resolver um problemas nas finanças são razão suficiente para o dia estar ganho). O exemplo mais claro é mesmo Dia feliz, com um magnífico refrão que se anima com o cumprimento das tarefas de um dia sem nada de especial – “É isso que é ser adulto, não é”, pergunta Nuno Rodrigues sem verdadeiro ponto de interrogação –, entalado entre a real felicidade de cair no sofá sem um rasto de frustrações e a consciência do adormecimento perante uma medíocre normalidade. “Heróis do quotidiano ou marinheiros de outro mar” cantam no mesmo tema, nessa hesitação entre ir e ficar, entre aceitar e recusar.

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Em relação à desilusão sofrida de Heat, Plástico rasga agora um atalho até à luz. “Pelo menos, este disco já tem algumas declarações de intenções em relação àquilo que pretendo ser”, reflecte Nuno Rodrigues. “Não sei bem ainda qual é o papel que tenho a cumprir aqui – e acho que isso está patente no disco. Mas também já não estou nos meus 22 anos a pensar que vou fazer grandes coisas com a minha vida.” Desses 22 para os actuais 28, Nuno balança entre o momentâneo desespero de um “puta que pariu, não fiz nada de jeito com a minha vida” e a noção, após respirar fundo, de que tem “qualquer coisa ainda para oferecer”. E disso se ocupa um tema como Muito para dar.

Num primeiro instante, antes sequer de começar a escrever as letras, Nuno pensou em levar a cabo “uma espécie não de crítica mas de apreciação a pontos negativos do pós-modernismo”. “Achava que ia conseguir perceber nas canções porque é que houve estas metamorfoses estranhas do pós-modernismo que nos levaram à situação de hoje. Sem ser político ou enveredar pela crítica social, mas de uma perspectiva mais genérica.” Para sua surpresa, essas temáticas acabaram mais esboroadas em Plástico, mostrando-se de uma forma mais explícita talvez apenas em Moderno. Até porque, sem se aperceber de imediato, o homem dos versos dos Glockenwise acabou por se ver apanhado por uma das mais ardilosas armadilhas pós-modernas: “Quando dei por mim estava a escrever sempre num tom mais pessoal e de auto-referenciação”, ri-se. “Olhem para mim, tão esperto a armar-me com estas teses e sou, afinal, mais um elemento desse pós-modernismo, mais uma vítima ou característica destes tempos que se vivem com muita autocomiseração, egos inflamados, sempre no eu e não no plano dos grandes valores. Foi uma concretização um pouco agridoce para mim.”

É desse sentimento que vêm, na verdade, os trajes azuis com que os Glockenwise garbosamente se vestem em Plástico. Queriam aparecer aos olhos do público uniformizados, derrotados na sua individualidade por todos se parecem tanto nessa hegemonia do individualismo. “Com todas estas ferramentas de afirmação da nossa personalidade”, argumenta Nuno, “quanto mais narcisismo passou a existir e quantas mais oportunidades temos de demonstrar nas redes sociais as nossas características pessoais, mais ficamos parecidos uns com os outros. Acho isso extremamente curioso. Mergulhamos num mar com uma profundidade gigante de exploração e, por algum motivo, saímos outra vez supérfluos.” E os exemplos que lhe ocorrem tanto tomam a forma de youtubers “todos iguais uns aos outros, até esteticamente”, quanto a de tribos urbanas com identidades tão fortes que “se tornam muito homogéneas embora estejam sempre a pregar a heterogeneidade”.

E daí que, embora os Glockenwise sempre tenham sentido alguma afinidade com o punk, saibam que não cumprem com o figurino do género. “É irritante que o pessoal que defende a anarquia e a liberdade individual seja tão fechado a outras maneiras de estar. Há mais semelhanças entre um grupo de punks de colete de cabedal e um grupo de aficionados da tourada, por exemplo, do que aquilo que eles imaginam que existe.” Os Glockenwise, apesar das dores que isso possa acarretar nalguns momentos e na maior dificuldade em pertencer a um circuito de salas e festivais ligados a determinados géneros, nunca foram de engrossar fileiras. E ainda bem. Porque não seria fácil chegar ao deslumbramento que é Plástico a pagar quotas para algum clube oficial.

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