Gisèle Vienne dá-nos o transe a que temos direito

Crowd é o passado underground que Gisèle Vienne teve nas raves berlinenses do início dos anos 90, cruzado com o futuro redentor, milagroso mesmo, que ela gostaria que o palco pudesse ter como último reduto da experiência espiritual. Uma aparição, só que com tecno, suor e transe, sábado e domingo na Culturgest.

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Estelle Hanania

Gisèle Vienne não é a pessoa que esperaríamos que ela fosse — a pessoa compatível com o “trabalho macabro e borderline” que há mais de 15 anos vem enchendo os palcos franceses (e às vezes os nossos também) de pesadelos e fantasmas malignos, ou apenas suficientemente inquietantes para não se conseguir dormir depois. “Macabra e borderline”, assim a apresentava há precisamente um ano o Libération, inventariando as suas amizades “com o papa do queercore Dennis Cooper e a papisa do sado-masoquismo Catherine Robbe-Grillet”, mais “a parafernália dark” de Stephen O’Malley, dos Sunn O ))), de quem é companheira.

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Estelle Hanania

Ainda insones desde o embate inicial com o imaginário desta marionetista tornada entretanto encenadora, coreógrafa, artista plástica e um bocadinho cineasta (Brando, a sua única incursão no cinema, com uma banda-sonora em que o bombardeamento sonoro dos Sunn O ))) se encontra com o monumento Scott Walker, é uma fantasmagoria inspirada pela “tendência de Marlon Brando para ser espancado nos filmes em que entrava”), talvez possamos acrescentar a esse inventário o ventríloquo pedófilo e serial-killer de Jerk, com que em 2008 se mostrou pela primeira vez em Portugal, os ventríloquos eventualmente não pedófilos nem serial-killers mas igualmente perturbadores da Convenção de Ventríloquos, que há dois anos trouxe ao Festival Internacional de Marionetas do Porto, ou os bailarinos em rigor mortis de Showroomdummies, com que em 2011 encerrou o mesmo festival.

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“Macabra e borderline”, diz o Libération, que inventariou as suas amizades: “o papa do queercore Dennis Cooper e a papisa do sado-masoquismo Catherine Robbe-Grillet”, “a parafernália dark” do seu companheiro Stephen O’Malley, dos Sunn O ))) Patric Chiha

Não, definitivamente não seria de esperar que, ao vivo, desfeita em desculpas pela meia hora de atraso com que chega ao café em que a esperamos, Gisèle Vienne tivesse este ar tão girl next door, mas quanto a isso a resposta ao Libération parece-nos dar o assunto por encerrado, e não tocaremos nele: “O facto de eu parecer fisicamente tão apresentável é outra forma de subversão, um travestismo social.” Idem para o riso fácil, de miúda, com que dali por segundos há-de estar a falar ao Ípsilon sobre a negligência com que o Estado encara as necessidades espirituais dos cidadãos em sociedades abruptamente secularizadas como a europeia, ou, mais de uma hora depois, e apenas porque mesmo a acabar lhe fizemos a pergunta errada, sobre a doentia negação da violência que, enquanto humanos, nos é constitutiva. Crowd, o espectáculo que a traz de volta a Portugal para duas sessões na Culturgest, em Lisboa (sábado às 19h, domingo às 15h), talvez pudesse ter sido uma vez mais sobre isso, é o seu “tema central”, mas não foi: “A violência foi um tema importante na construção da peça, mas o que eu vejo em palco, um ano após a estreia, é sensualidade, júbilo, prazer, o que na verdade me surpreendeu. E é isso que é muito belo no acto criador: não forças a peça a ir na direcção que imaginaste, acompanha-la, mesmo que ela te leve para outro lado.”

Eis para onde Crowd levou Gisèle Vienne, eis para onde Crowd levará agora a Culturgest (e as cadeiras não serão impedimento porque esta também é uma viagem mental): Berlim, início dos anos 90, rave atrás de rave atrás de rave atrás de rave.

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Estelle Hanania

Uma necessidade vital

Em Setembro de 2011, quando o Ípsilon entrevistou Gisèle Vienne pela primeira vez, Crowd tinha outro nome, e toda uma história da dança em cima: Sagração da Primavera. Remontar a peça seminal que Nijinsky, Stravinsky e Roerich estrearam em 1913 no Théâtre dês Champs-Elysées, e com a qual mudaram basicamente tudo, foi a sua missão impossível durante muito tempo — os primeiros ensaios, ainda sem bailarinos, “decorreram em Guimarães”, lembra-se subitamente (“Em que ano é que Guimarães foi Capital Europeia da Cultura? 2012? Bom, foi mesmo muito tempo”) —, mas quando o projecto caiu não foi assim tão grave. “Eu tinha dúvidas sobre a música do Stravinsky, e tinha decidido que nas duas primeiras semanas íamos ensaiar com tecno. Às tantas, o fracasso técnico da produção que é cancelada converge com a experiência artística muito feliz de eu estar a experimentar outra via que me começava a parecer apaixonante. O facto de o projecto não ter avançado deu-me liberdade total para prosseguir.”

O tecno, claro, não tinha ido lá parar por acaso (nunca nada vai parar por acaso às peças de Gisèle Vienne: há um ciclópico trabalho cerebral que precede a experiência física, mesmo quando ela depois se torna avassaladora, como em Crowd, talvez a sua peça mais completamente coreográfica). “O que me interessava na Sagração da Primavera era também o contexto sociológico: é uma peça super inovadora para os ouvidos e para os olhos do espectador de 1913. E, ao mesmo tempo, o facto de ele encontrar ali uma matriz reconhecível — vários elementos típicos da festa pagã, uma estrutura dramatúrgica típica do ritual — não torna a peça menos chocante, porque não é normal uma expressão popular entrar num teatro tão chique.” Esse “deslizamento de terreno” levanta outra questão que Gisèle Vienne vem tentando explorar: “Como é que comunidades cuja governação foi durante muito tempo partilhada entre o Estado e a religião, como a França até 1789, se reorganizam quando são secularizadas? E que lugar passa a ter então a experiência artística, cuja história, em grande parte, está ligada à experiência religiosa? Na sua dinâmica ultra-capitalista, o Estado laico não privilegia de todo a experiência espiritual de que os cidadãos estão à procura, qualquer que seja o seu background, porque é uma necessidade humana básica.” Esse poder que a religião teve em tempos, ela gostaria que a arte pudesse tê-lo agora. Se não deslizar, “como tem deslizado por exemplo no discurso político”, para o entretenimento ou para a pedagogia: “Não quero comparar a arte com a missa, e no entanto vou fazê-lo: um espectáculo é uma experiência potente que te pode fazer entrar num espaço de intimidade essencial.”

A Sagração da Primavera, imagina ela, não tendo estado lá em 1913, tinha isso também porque se alimentava dessa matriz das festas pagãs de que todos somos herdeiros. Para produzir o mesmo efeito, mais de cem anos depois, sentiu que precisava de “citar especificamente um tipo de festa contemporânea”, e o início da cena tecno do início dos anos 90, que foi em parte a sua educação sentimental (juntamente com muito bingewatching no Deutsches Theater, aonde Thomas Ostermeier, um director artístico como não tinha havido outro, acabava então de chegar), pareceu-lhe a única citação que podia fazer com legitimidade: “Frequentei muito a cena de Berlim. Isso tem o seu valor enquanto testemunho, é uma coisa que vivi, que eu atravessei, de maneira hiper-subjectiva. Sinto-me mais à vontade a citar o que conheço.”

Já tinha sido assim em Kindertotenlieder, de 2007, quando se embrenhou na gramática corporal ligada à cultura alternativa do heavy metal. De novo, diz, uma experiência religiosa: “Em todas as culturas alternativas em torno de um campo musical há uma comunidade que se organiza segundo códigos que fazem lembrar os da religião. São espaços muito criativos onde as novas gerações vão tentar construir qualquer coisa que eu suponho que tenha a ver com uma falta, com uma necessidade vital. Há a tendência um pouco negligente para achar que são só miúdos que se querem desgraçar, quando não é de todo apenas isso.”

Apesar do álcool, apesar das pastilhas, apesar dos engates, não será de todo apenas isso que encontraremos em Crowd, quando as luzes fluorescentes se acenderem sobre um chão que já viu muitas noites e ainda verá muitas mais, a primeira faixa (um clássico dos clássicos Underground Resistance) impuser o tecno de Detroit como a aurora de um novo mundo, e um a um, como numa aparição, os adolescentes de Gisèle Vienne começarem a chegar com as suas camisas aos quadrados, as suas calças rasgadas, as sapatilhas que já foram brancas e agora são cinzentas. Parece psicologia barata mas não é: transportados pela potência simbólica disto tudo, também nos encontraremos a nós próprios.

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Implicar o espectador

Gisèle Vienne demorou dois anos a reunir os 15 bailarinos que agora dançam juntos em Crowd, e no processo, a que entretanto se somou este ano que já levam desde a estreia da peça, aprendeu imenso sobre como se comporta um grupo (e as pessoas dentro de um grupo, e os grupos dentro de um grupo). Mas também aprendeu algumas coisas sobre os espectadores, até porque a língua que teve de passar a falar de propósito para este espectáculo tem especificamente a ver com isso, com a vontade de se tornar “menos autoritária” em relação aos seus espectáculos, para deixar o espectador entrar.

“A primeira coisa que faço quando começo a trabalhar numa peça é tentar compreender qual é a língua que vou desenvolver. E nesses primeiros ensaios em Guimarães percebi quais iam ser os princípios formais da escrita: movimentos retocados, e depois articulados em sobreposições, acelerações, desacelerações, fragmentações, repetições num loop tipo GIF… Mas uma coisa é compreender as premissas, outra é conseguir de facto falar a língua: é como se eu tivesse de aprender japonês e ao mesmo tempo de o inventar”, explica. A língua de Crowd vem do tecno, e do modo como ele redefiniu a entrega dos corpos à pista (a banda-sonora, que teve a curadoria de Peter Rehberg, outro membro da sua família artística, vai de Underground Resistance a Global Communication, de Manuel Göttsching a Jeff Mils, porque era importante que tivesse “acuidade histórica”), e também vem do passado de Gisèle Vienne como marionetista, do prazer que tem em estilizar o gesto, em torná-lo artificial. Mas vem sobretudo da montagem cinematográfica, e essa foi a parte mais difícil de dominar, mas também a mais fascinante. Quando o escritor Dennis Cooper entrou em cena, para escrever um texto de que não ouviremos uma palavra, Crowd deixou de ter apenas um grupo de 15 bailarinos para passar a ter 15 personagens, cada uma com a sua biografia. E Gisèle Vienne passou a ter uma mesa de mistura com que se entreter: “As histórias que o Dennis criou para eles são tão completas e tão densas que se por hipótese um espectador passar toda a peça a olhar para o Sylvain, ou para a Katia, ou para o Oskar vai encontrar narrativas auto-suficientes. É como se tivéssemos 15 pistas. E se por um lado sou eu que faço a mistura, porque a maneira como componho a cena pode orientar o olhar do espectador, induzindo-o a ficar dois segundos com o Sylvain, três minutos com a Katia e mais um com o Oskar, e por aí fora, por outro o espectador pode ignorar a minha montagem e decidir manter-se no plano de conjunto, ou concentrar-se noutra personagem.”

É uma língua que está a falar pela primeira vez. “Na maior parte das minhas peças o caminho é nítido; aqui acontece demasiada coisa ao mesmo tempo e tens de decidir o que vais ver e o que vais deixar escapar. Uma montagem muito marcada de um encenador pode ser igualmente apaixonante, mas quis convidar o espectador a fazer digressões.” Haverá “razões para que ele se apegue a determinada situação, a determinada pessoa, para que olhe mais para ali do que para aqui”, e é aí que o ritual colectivo se torna profundamente pessoal. “Houve espectadores que vieram ver a peça uma segunda vez e me perguntaram por que é que tinha mudado o fim. Não mudei nada. Só que há tanta informação em Crowd que podes ver outra coisa mesmo estando a ver outra vez a mesma coisa. Não espero que todos os espectadores regressem para ver a peça 15 vezes, mas acho muito excitante a ideia de não se conseguir dar a volta completa a uma peça, de chegar ao fim e dizer ‘não vi tudo’”.

Significa, acredita Gisèle Vienne, que o espectador não fica de fora. Que neste último reduto da experiência espiritual, mesmo paralisado da cintura para baixo por uma cadeira, ele não está ali só para bater palmas no fim. “O facto de sermos 'apenas' espectadores não tira nada à implicação”, responde quando lhe dizemos que bastam os primeiros dez segundos da primeira música para invejarmos o transe de suor, abandono e tecno que tem lugar em cima do palco, para querermos estar lá. “É uma questão delicada no teatro, porque tendemos a estar numa relação frontal palco-plateia. Mas não deixamos de estar todos na mesma sala: nós, os outros espectadores e os intérpretes. Em Crowd eu tento trabalhar não só sobre o corpo dos bailarinos mas também sobre o corpo do espectador, sobre a sua percepção do tempo, e espero implicá-lo numa relação íntima. Gostaria que o espectador não pensasse ‘é a peça da Gisèle’, mas antes: ‘é a minha peça’. Uma peça que me escapa, e que é tão legítima como a minha.”

É esse o poder redentor, milagroso mesmo, que ela espera da experiência de assistir a um espectáculo, uma experiência que, tal como os mais esmagadores rituais pagãos, não tem de ser só intelectual: “Não podemos pensar só com o cérebro, é uma ideia absurda." Sobre Crowd, não podemos, de facto. É uma peça em que ficaremos para sempre a pensar com os músculos, incluindo um que as raves e toda a música electrónica que veio depois fizeram passar a bater mais de 160 vezes por minuto. 

O Ípsilon viajou a convite da Culturgest

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