Quem quer o mundo quando se tem Chelas no coração?
Há doze anos tinha o país aos pés. Editou um álbum de sucesso, as editoras seguiam-no, Carlos do Carmo queria gravar com ele, mas Sam The Kid afastou-se dos holofotes. Para uns perdeu o comboio do êxito. Para outros encontrou-se a si próprio, continuando a ser o rapper mais talentoso de Portugal. Na hora em que regressa, que tem ele para contar?
Passam o tempo a dizer-nos que temos de ser competitivos, alcançar metas, ser activos, diligentes e produtivos, que não podemos desistir, que vamos conseguir, que está quase, que agora vamos chegar lá, numa pressão constante para sermos todos bem-sucedidos, belos e famosos.
Quem não gostava de ser tão famoso como Tony Carreira? “Tony Carreira?! Nada disso! Júlio Pereira! Essa é que foi sempre a minha ambição, o barómetro. Dizia ao meu pai: ‘sabes qual é a minha meta em termos de popularidade e de estatuto? Júlio Pereira!’. Era uma maneira de dizer: quem me dera chegar onde ele chegou. Muita gente sabe quem ele é. Tem credibilidade e é respeitado. Não é preciso mais nada. Chega perfeitamente. E não precisa de aparecer a toda a hora em todo o lado.”
Samuel Mira, ou seja, Sam The Kid, 39 anos, nunca quis ter a notoriedade de Tony Carreira. Mas houve uma altura, há doze anos, em que teve Portugal aos pés. Estreara-se com dois álbuns em regime de edição de autor — Entre(tanto) de 1999 e Sobre(tudo) de 2002 — seguido de um disco de instrumentais (Beats Vol. 1: Amor de 2002) que o guindou para um novo patamar, outorgando-lhe credibilidade. Quando Pratica(mente) saiu em 2006 foi a aclamação. Para muitos continua a ser um dos discos mais importantes da música portuguesa. Sam era o nome de que se falava.
Enaltecia-se, coisa rara, a capacidade como rapper-cantor-letrista, mas também como autor da música no papel de músico-produtor. O álbum chegou a disco de ouro e ele foi rapidamente abraçado para lá dos limites do panorama do hip-hop. Carlos do Carmo ou Simone de Oliveira queriam trabalhar com ele e no meio era unânime que era dos raros rappers portugueses com possibilidades de singrar no exterior.
Ao vivo, acompanhado pelos músicos que hoje estão com ele nos Orelha Negra, revelava-se performer exímio, capaz de expor uma genuinidade e impetuosidades raras. Todas as editoras em Portugal o perseguiam. E no entanto. E no entanto não desapareceu. Longe disso. Mas diluiu-se no colectivo de músicos que liderara antes em palco, os Orelha Negra, abraçou projectos de outros (Mundo Segundo), continuou a produzir instrumentais e fundou a plataforma digital TV Chelas.
Ficou sempre a sensação que, no momento em que a notoriedade lhe bateu à porta, não a soube gerir ou renunciou a ela. Ou nenhuma destas hipóteses. Talvez a chave esteja na canção Sendo assim, que coloca fim a doze anos de silêncio com assinatura própria, e que encerra a recente compilação Mechelas, com temas de bases sonoras suas para vozes convidadas, e na qual proclama: “Eu não quero ser o melhor eu melhoro a fazer de mim / Nunca tive uma ambição com a ilusão de uma aderência / Porque ter a profissão não é missão, é consequência.”
Em 1998, quando o encarámos pela primeira vez, na redacção deste jornal, era apenas alguém com um CD-r na mão, ar tímido e olhar transviado, que queria que a sua música fosse ouvida. Era uma edição de autor, o som era artesanal, mas o universo, entre o lirismo sonhador e a universalidade, e algumas das características que o iriam distinguir, já estavam lá — perícia vocal, palavras autênticas, batidas espaçosas e fragmentos sonoros do passado da música portuguesa.
A primeira geração do hip-hop português (General D, Boss AC, Black Company, Da Weasel ou Mind da Gap) sedimentara o género, mas a relação com a indústria, e com o todo da sociedade portuguesa, ainda era feita de equívocos. Daí que a segunda geração, personificada por Valete, Chullage, Dealema ou Sam The Kid, num primeiro momento, olhasse com desconfiança para a realidade à volta. “No início não tinha interlocutores. O que me salvou foi a rádio e o programa Repto do José Mariño na Antena 3, que funcionava como fórum e que incitava quem estava a começar a enviar maquetas”, diz-nos Sam nas traseiras de uns prédios, em Chelas, o bairro de sempre, nomeado em todos os seus discos.
“Aqui não tinha muitos amigos com quem pudesse conversar sobre grupos rap. Tinha apenas um amigo que me mostrava videoclipes que vinham dos EUA e que me fez conhecer imensos grupos. Mas, depois, rapidamente, fui eu que comecei a interessar-me e a dar-lhe novidades.”
Através dos contactos do programa de rádio foi conhecendo outros agentes do hip-hop — Valete, Xeg ou Filhos de Um Deus Menor. “Uns traziam outros e, às tantas, a minha casa começou a ser um ponto de encontro para os rappers da minha geração que lançaram álbuns. Começámos aí. Foi a rádio que funcionou como ponto de ligação. A internet ainda era uma miragem. E eu quase não saia de casa.”
As primeiras saídas nocturnas levaram-no ao clube Johnny Guitar, onde um outro programa de rádio — Ataque Verbal de Pacman (Da Weasel) e KJB (Black Company) — promovia noites de microfone aberto. “Aí acabei por conhecer mais gente, como DJ Bomberjack, que me introduziu às mixtapes, algo muito inspirador para dar a conhecer toda uma geração de rappers que não tinha editora. Bomberjack foi o primeiro a fazer as suas coisas em CD-r e depois eu comecei a fazer o mesmo.”
Na última década muito se tem falado do papel da internet enquanto ferramenta que veio revolucionar a indústria da música, permitindo que os criadores operem sem mediadores. Sam sempre funcionou dessa forma. “Foi muito importante esse espírito de independência para que as editoras se voltassem a interessar por nós”, reflecte. “Já depois de ter editado o primeiro álbum, conheci o Chullage, para o qual produzi cinco temas para o seu álbum, que me falou da editora Edel.” Na altura, para Sam, as editoras personificavam o “diabo”, ri-se. “O Chullage mostrou-me que era possível ter um acordo de promoção e distribuição, sem que o álbum deixasse de ser meu. E foi aí que fui conhecer o Peter Cooper da Edel.”
E nessa fase já tinha noção de que a música iria ser a sua vida? “Sim. Sempre acreditei. Sabia que era o que queria. Se o plano A falhasse não havia plano B. Mas sempre soube que iria ser gradual até porque havia esse romantismo de fazer as coisas à minha maneira. E nisso foi essencial — quando ainda não tinha dinheiro suficiente para a minha autonomia — ter tido o privilégio de, durante anos, ser sustentado pela minha mãe.”
A casa
A casa, a família, o bairro de Chelas estiveram sempre presentes no seu trabalho. Desde o primeiro momento que era perceptível que, mesmo quando existia um discurso de consciência social, ele surgia como contexto. O centro era a sua vida. Mais do que nas redes sociais, é nas canções que se revela. “Se as pessoas querem saber onde moro, com quem me dou, quem são os meus vizinhos ou quem sou, basta ouvirem as canções. Está lá quase tudo. Se um admirador quiser saber a minha morada basta ouvir as músicas para saber a rua, lote ou andar”, ri-se.
Não espanta que as referências e os fragmentos sonoros que alimentam o imaginário da sua música sejam também provenientes de casa. “Quando tens um sampler as primeiras coisas que vais recriar é o que está lá por casa, discos do pai ou da irmã mais velha. Coisas do Janita Salomé, das Doce ou um disco de poesia do Mário Viegas, que deve ser o álbum que mais utilizei até hoje. É como se me tivesse apoderado desse disco. Ainda hoje lá vou buscar muitas coisas.”
No início, no meio hip-hop, era associado ao fado. “Ouviam as guitarras portuguesas em alguns temas e diziam que ninguém tinha feito algo assim. E eu: ‘calma! Os Líderes da Nova Mensagem lançaram um álbum há anos onde já faziam isso’. Sempre gostei dessa visão histórica da realidade e perceber o que tinha acontecido antes de mim.” Em 2002, quando lançou o álbum de instrumentais Beats Vol. 1: Amor, houve muita gente que se surpreendeu. Quem já o tinha visto ao vivo percebia que era o tipo de personalidade que se transformava por artes mágicas em palco. Havia ali talento em bruto, vontade de comunicar arrebatada, que as batidas lânguidas, por vezes melancólicas, não faziam adivinhar. Era como se o Sam em versão produtor caseiro não batesse certo com o declamador veemente em público. Ou vice-versa.
“És capaz de ter razão”, reconhece. “Muita gente dizia-me isso. Mas para mim é natural. Comecei como rapper e depois fui-me adaptando ao papel de produtor por necessidade, precisava de instrumentais. Depois habituas-te e chega um momento em que percebes que ninguém vai fazer melhor por ti o que tu queres. Foi também a partir daí que construi a minha identidade. Não são apenas as rimas, é também o som. No início da história do hip-hop era assim. Os A Tribe Called Quest ou os Public Enemy produziam os seus discos. Tinham uma identidade definida. É apenas depois que o Nas ou os Run DMC instituem a ideia do álbum com vários produtores.”
Há quem goste mais dele na faceta de produtor. E quem prefira o rapper. Em ambos os papéis é respeitado. Mas quando se trata de o elogiar conta a sua versão.
“Se estivesse aqui um produtor a apresentar-me diria: ‘este é o Sam, um dos melhores rappers portugueses’. Mas se fosse um rapper diria: ‘este é um dos melhores produtores portugueses.’” Enquanto o diz, ri-se, para acrescentar que, “mais do que competição”, o que lhe interessa é “partilhar” ideias. “Acho mesmo que não deve existir em Portugal alguém que já tenha colaborado com tanta gente como eu.”
Em Pratica(mente) colaboraram com ele uma mão cheia de cúmplices (NBC, Melo D, Branko, DJ Cruzfader ou Valete). Ainda hoje, quando olha para trás acha que é o seu disco mais importante. “Foi o primeiro álbum gravado em estúdio, os outros foram-no em casa. Ao nível das ideias, da criatividade e da produção, representou um grande crescimento. Também foi a partir daí que comecei a trabalhar com uma equipa. Se queriam contratar-me tinham que falar com o meu agente. Profissionalizei-me, no fim de contas. E também quebrei com o estigma de ter uma banda comigo em palco. Achava que comprometia a estética. Mas, depois, comecei a ensaiar com aqueles que são hoje os meus companheiros nos Orelha Negra e percebi que estava enganado.”
É também o álbum onde, segundo ele, toda a sua vida está reflectida: “De onde vim, porque sou assim, a minha infância, como é que faço a minha música. Está lá tudo.” Por causa desse disco permitiu-se sair de Chelas. Percorreu o país. E saiu do anel do hip-hop. Os estúdios da Enchufada dos Buraka Som Sistema começaram a ser um poiso seu. Carlos do Carmo desafiou-o para um projecto. As editoras ficaram de olho nele. E nas televisões e jornais começou a ser solicitado para comentar tudo e mais alguma coisa.
“Muitas dessas experiências abriram-me a mente. Fiquei mais disponível para ouvir os outros. O João Barbosa (Branko) foi importante porque me convenceu a actuar com uma banda. O Jorge Fernando levou-me para o mundo do fado. A Simone de Oliveira quis que eu lhe produzisse um álbum. Estive em casa do Carlos do Carmo a conviver e o mesmo aconteceu com o Paulo de Carvalho. Enfim, coisas das quais me sinto grato. Eram pessoas que admirava através dos discos do meu pai. Devo isso ao hip-hop. Foi assim que conheci essas pessoas.”
De todos esses ensinamentos existe um que guarda como essencial. “Por vezes somos nós que nos pomos de parte. E isso acontece porque achamos que não vamos ser aceites pelos outros, quando na verdade o que desejamos é ser aceites e os outros apenas se querem aproximar de nós. É só isso que se pretende. O respeito. O respeito que senti quando rimei ao lado de poetas do fado. E que senti quando estive em casa do Carlos do Carmo e alguém lançou a proposta de fazermos um álbum e eu a pensar que ele seria o reticente e afinal fui eu. Ele vira-se para mim e disse: ‘bora lá miúdo, bora lá!’ E eu, que não gosto de me meter em coisas que não consigo imaginar, é que acabei por ser o cauteloso. Grandes lições! A fama? Que se lixe a fama! O respeito, isso sim! Cada um tenta ser feliz à sua maneira, ao seu ritmo. O resto são apenas histórias.”
A morte
Histórias como essa que muitas vozes contam que Sam, a partir de determinada altura, terá sentido a pressão de ser o centro das atenções. Doze anos depois há ainda muita gente que não percebe como é que no auge do reconhecimento optou pela sombra, por mais que os Orelha Negra sejam uma ideia bem-sucedida, nunca mais lançando nenhum registo em nome próprio. Ouve-se Sendo assim e percebe-se que continua tudo lá. Aquela firmeza, as palavras, ditas por ele, continuam a abanar.
“Não preciso que as luzes incidam sobre mim. Gosto de ser mais um. Estar em equipa. Os Orelha foram planeados para serem assim. Gosto da sombra. Não tenho saudades dos holofotes. A minha cena é andar ao sabor do vento. Nunca parei de fazer música. Mas em nome próprio, é verdade, nunca mais editei nada. Porquê? Um conjunto de factores. Lancei o álbum, depois andei dois anos na estrada e, pela lógica, deveria editar outro disco e repetir o ritual. E não aconteceu. Ainda fiz datas em Angola e aí foi a última vez que toquei com o meu grande amigo Snake.”
Em 2010, Nuno Rodrigues, mais conhecido por MC Snake, que acompanhava Sam ao vivo, foi baleado por um agente da PSP, segundo a força policial porque terá alegadamente desobedecido aos sinais de paragem do carro onde seguia. “E pouco tempo depois morre outro irmão, o Barbosa, GQ, num acidente de mota. Eram pessoas que me acompanhavam em palco. Mas mais do que isso, estavam comigo diariamente. Senti a sua ausência. Estávamos sempre a germinar ideias. Não é desculpa. Mas a partilha é importante. E ver-me em palco sozinho é difícil. Gostava daquele companheirismo. Ali éramos Os Sam The Kid. Talvez por isso nunca mais dei um concerto sozinho. Isso mudou-me para sempre. Por outro lado gosto de encontrar coisas novas. Sou um estudioso das rimas, editá-las de forma silábica, gosto de ter uma fasquia para superar. E às vezes talvez ponha a fasquia alta de mais.”
Por vezes os momentos dolorosos podem ser transcendidos através da criação, mas nunca foi esse o seu propósito. “Vivi com os meus avós, quando eles me morreram senti muito isso, e o meu avô acaba por estar presente em dois temas que fiz ao longo dos anos, mas no caso do Snake ou do GQ isso nunca me passou pela cabeça. Não quer dizer que não venha até a acontecer, mas não está no meu horizonte. São coisas que ainda mexem comigo. O ano passado, um outro amigo que entrava nos meus discos, Beto Di Ghetto, também se suicidou. Outra vez, a morte.”
Ofertas para gravar um novo álbum não lhe faltaram, mas foi resistindo. Até hoje. Antes de sair Pratica(mente) teve ofertas de várias editoras, mas foi fiel à Edel, “porque haviam acreditado em mim quando estava ainda em ascensão”, argumenta. “Sempre existiu apreço, nunca me senti pressionado. Fui aliás ajudado pelo Tó-Zé Brito, que na altura estava à frente da Universal, quando eu estava com um quisto nas cordas vocais e tive de ser operado, e nunca senti que isso implicasse qualquer vínculo.”
De onde nunca saiu foi de Chelas. Já não vive com a mãe. Mas a casa que partilha com a companheira não é distante do quarteirão onde habitou toda a vida. É conhecido por todos. Uma senhora grita-lhe ao longe que ainda está à espera que ele assine o CD que lhe prometera. Ele responde que é só ela trazer-lho. Na sociedade recreativa trocam-se cumprimentos calorosos. Os mais novos olham-no com estima. Está no seu ambiente. E isso basta-lhe.
Chelas ou o mundo?
“Sair daqui para quê? Porquê? Gosto disto!” Na cultura hip-hop é comum quando alguém obtém sucesso sair do lugar onde viveu, advindo daí depois o conflito de se manter, ou não, fiel às raízes. Ele nunca viveu esse dilema. “Em geral, aqui, respeitam-me. Tenho uma relação excelente com as pessoas. Quem me conhece desde miúdo olha-me com orgulho e eu também tenho orgulho neste bairro. Nunca tive uma situação de ciúmes. Às vezes provocam-me, dizendo que estou sempre a fazer sons para quem não é do bairro, mas é apenas isso, brincadeiras.”
E às vezes não imagina o que poderia ter acontecido se tivesse saído de Chelas, tentando conquistar o mundo, como se vaticinou em determinada altura do seu percurso? “Quem quer o mundo quando se tem o respeito de Chelas no coração?”, lança, sorrindo. “Não edito um disco em nome individual há doze anos, mas tenho miúdos a descobrir músicas minhas agora, o que significa que aquilo que fiz continua a resistir ao tempo e isso deixa-me satisfeito, até porque é raro hoje no hip-hop.”
O ano passado, o rapper Valete, regressou com o tema Rap consciente - onze anos depois do último álbum — naquilo que foi lido como uma crítica à falta de conteúdo das novas gerações do hip-hop. Menos incisivo, mas critico, é o tema que agora marca o retorno de Sam, o que pode ser lido como uma situação paradoxal, já que ambos lutaram para que o hip-hop ganhasse visibilidade e quando isso, finalmente, aconteceu, confrontam-se com alguns dos efeitos perversos dessa hegemonia.
Aquilo que antes se criticava no rock chegou agora também a zonas do hip-hop: aburguesamento, autodeslumbramento, afastamento da realidade, prevalência de um discurso economicista sobre o artístico. “Claro que existem muitas ideias e criatividade por aí, como Kendrick Lamar, alguém com imenso talento e perícia, mas as novas gerações deixaram de ligar à transmissão de conhecimento e isso é preocupante. Fico satisfeito por termos conseguido criar este espaço, mas ao mesmo tempo sinto que existe muita ilusão, apesar de existirem muitas pessoas boas. Ainda assim parece-me que a fasquia tem vindo a baixar. O parecer acaba por ser mais importante do que o ser. E de vez em quando é importante reforçar que a música é mesmo o mais relevante.”
Para já, depois do lançamento de Mechelas, com som seu e vozes de Boss AC, Bispo, Grognation, Karlon Krioulo, Sir Scratch ou Maze, virá o projecto Classe Crua onde cumpre o papel de produtor para o rapper Beware Jack. “É uma cena cinematográfica, especial, estou entusiasmado, apesar de ser dentro do espírito Júlio Pereira, sem grandes ambições.” E depois, quem sabe, talvez voltemos a vê-lo em palco ou mesmo em disco.
Certo é o lançamento de Beats Vol. 2 — Rap, ou seja, temas instrumentais construídos em torno de uma narrativa fantasista. “O outro álbum retratava a história de amor dos meus pais. Este é a minha história de amor com o hip-hop, daí ter como subtítulo Rap — retrospectiva de um amor profundo. Se fosse um filme seria erótico. Até já tenho a capa.”
E conta a história. “Há uns tempos fiquei fascinando com uma fotografia a preto e branco que vi na internet de uma rapariga a olhar para a câmara de forma apaixonada e pensei em reproduzir aquela situação com alguém que para mim personificasse o hip-hop, essa magia e encanto que tenho pela cultura. E foi aí que recuei até um programa da MTV que passava hip-hop e onde havia uma bailarina residente que eu adorava. Uma vez o apresentador disse o nome dela ao vivo e nunca mais me esqueci. Às tantas, depois de muito pesquisar, consegui encontrá-la no Facebook.”
Foi-lhe feita uma proposta para vir a Portugal fazer uma sessão para a capa do álbum e passado algum tempo isso deu-se mesmo. “De repente, ali estava ela, no meu quarto, e fizemos a cena. O mais engraçado é que ela nasceu no Bronx, é uma mistura de negritude e latina, nasceu na segunda metade dos anos 70 e entrou em vídeos de pessoal que admiro dos anos 90. É como se fosse mesmo a personificação pura da génese do hip-hop. É ela que estará na capa. Isso sim foi mágico, concretizar algo a partir de uma fantasia da adolescência.”
Eis Sam The Kid. Por vezes queremos tudo. Queremos sempre mais. Vivemos imersos no desejo permanente, logo, na insatisfação continua. Outras vezes concentramo-nos no essencial, revelam-se novas possibilidades, saciamo-nos com pequenas coisas. Podem ser as relações de vizinhança em Chelas, os amigos do hip-hop que estão quase todos os dias com ele ou cumprir alguns desejos que parecem difíceis “como essa história da capa do disco”, ri-se.
E conclui: “No fundo, continuo igual, sou o mesmo. Aos 39 anos ainda tenho aquele espírito adolescente de me concentrar em coisas que me apaixonam. O hip-hop para mim será sempre essa mulher lindíssima que nunca vou querer trair ou desiludir.”