O movimento do tempo
Na primeira exposição individual de André Príncipe num museu, a fotografia é uma arte das aparições, entre a vida e a morte, o real e a ficção.
Elefante não é a primeira exposição individual de André Príncipe, cineasta e fundador (com José Pedro Cortes) da editora de livros de fotografia Pierre Von Kleist, mas tem elementos que lhe conferem um carácter inédito: um trabalho de curadoria (de Ana Anacleto e de João Pinharanda) e uma selecção de obras do arquivo do artista (realizadas em 1998). André Príncipe confronta-se assim, e a título individual, com as condições e as possibilidades de uma exposição de arte contemporânea. E desse confronto — que é um trabalho — mostra-nos dípticos, constelações de imagens sobre superfícies, fotografias isoladas e uma instalação. Há uma dispersão nestas propostas que é aparente. Liames de sentido, relações conceptuais ligam-nas entre si, afirmando Elefante enquanto obra una numa produção artística.
O movimento da imagem é um desses liames. Num painel, vemos 10 fotografias da estátua de um dançarino dervish (praticante do islamismo sufista) realizada de diferentes ângulos. A composição acentua o movimento, o rodopio da dança, mas a imagem, como a estátua permanecem imóveis. É o olhar do espectador que anima, que imagina o movimento nos intervalos entre as fotografias. Na instalação que dá o nome à exposição, pelo contrário, são as imagens que avançam lentamente, como vapor ou neblina, diante dos nossos olhos, escapando-lhes. Trata-se de um extraordinário trabalho de retratos em que nenhum é anónimo, todos os retratados foram um dia vistos por André Príncipe, fizeram ou fazem parte da sua vida individual (e, porventura, o espectador poderá reconhecer alguns: a fotografia na sua inescapável relação com o real presta-se a coincidências, a reencontros tão fugazes quanto intensos e surpreendentes). Desfilam, sob o efeito do fade in e do fade out, aparecendo e desaparecendo, sobrepondo-se. Há cores que se estendem de um a outro retrato, ilusões efémeras, formando figuras ou imagens que só existem na instalação, naquele ecrã, em forma de lápide. Na verdade, todas as pessoas ali representadas já não existem como as vemos. Ainda são elas ali, naquele memorial que podemos contemplar sentados, mas já não são assim no mundo, embora estejam, certamente, no mundo.
Este aparecer e desaparecer manifesta-se em mais dois painéis de fotografias, muito distintos, quase contrários. Num, as fotografias, parecem desprotegidas, como se ameaçassem cair da tela, fugir-lhe, numa composição manual, quase anárquica, rápida (que lembra as capas dos cadernos de escola dos adolescentes, cobertas de recortes e imagens). Domina o preto e o branco de uma noite escura e chuvosa em imagens de desamparo e solidão. Vemos alguém deitado, imóvel, há um sem-abrigo, um grupo de homens que avança na noite, escondendo o rosto, fugindo do frio e de uma intempérie que deixa as sua marcas, as suas manchas na fotografia. Crime, acidente, noite, rua, cidade, morte. André Príncipe parece evocar Weegee (nome maior da fotografia, em particular daquela que retratou e documentou o quotidiano nos Estados Unidos do século passado) mas são as possibilidades da ficção que explora. Aquele lugar e aquela noite não têm nome e, no entanto, todos as podem reconhecer, sem a elas se entregarem (entre o preto e o branco não deixa de haver luz e fogo). A outra composição é menos sombria e menos material, “abrindo-se” como uma página cheia de um álbum de família, na qual ressaltam imagens de pessoas e animais, paisagens, referências à música, à natalidade, a viagens. Uma polifonia luminosa, que dá conta da pluralidade da vida e do mundo, resgatada ao passado pela arte da fotografia, concebida esta como prática democrática e nómada. Uma e outra composição contrastam em termos cromáticos e de conteúdo, mas não se revelam uma sem a outra, entre a vida e a morte, o real e a ficção.
Falou-se de movimento. Regressa nos dípticos que reúnem retratos de pessoas em repouso, quase imobilizadas, com imagens de clarões, raios intensos de verde, amarelo e branco que André Príncipe fez em 1998, apontando a máquina para várias fontes de luz. Os retratos resultam de um olhar que poderíamos partilhar com o artista (sobre o lugar e o retratado, numa sensação comum do que é a realidade), a segunda é feita de espectros que o gesto de André Príncipe trouxe ao mundo na sua dança com a máquina. Brilham como pinturas que escorrem, luzes de néon distorcidas, liquefeitas. Lado a lado, os dois tipos de imagens propõem dialécticas, tensões de ordem cromática, formal, representacional antes de culminarem num sentido comum: são ambas aparições, como a do tigre que, numa das fotografias de maiores dimensões, parece avançar, desperto, cativado pela nossa sombra.