Uma história de sangue

Como se Our Madness fosse um filme sobre a falta de imagens da tragédia africana e procurasse combater essa lacuna.

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A “loucura” é colectiva, é histórica, é de todos, europeus e africanos, colonizadores e (pós-)colonizados: Our Madness
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África tem sido o território de João Viana, que antes filmara, na Guiné, A Batalha de Tabatô (no filme que primeiro chamou atenção sobre o realizador, graças ao sucesso da sua passagem pelo Festival de Berlim), e agora se instala em Moçambique. Our Madness, “a nossa loucura”, é um filme mais ambicioso (em termos de estrutura, em termos, até, de acutilância estética), e é também um filme mais conseguido — entre o mito e realidade, é uma evocação, por vezes sonâmbula, por vezes onírica, de uma “história geral” africana, dos séculos de colonialismos, das décadas de guerras civis e violência generalizada. A ambiguidade do título (“nossa”, de quem?), que também se justifica pelo lugar que serve de ponto de partida narrativo (um manicómio em Maputo), é sobretudo retórica: a “loucura” é colectiva, é histórica, é de todos, europeus e africanos, colonizadores e (pós-)colonizados.

Há uma mulher que, sempre em transe (o lado sonâmbulo evoca a Casa de Lava de Pedro Costa), procura marido e filho, que também podem ser apenas fantasmas, há muito desaparecidos, porventura na guerra. No fundo pouco importa, a sua história é mero fil rouge, elemento condutor do olhar do filme, eco das grandes catástrofes africanas. O que importa é a figura da viagem, da deambulação, e a forma como tudo isso combina aspectos físicos e palpáveis com irrupções mitológicas noutra ordem de realidade, a forma como ambientes realistas (barzinhos com as paredes enfeitadas com anúncios de refrigerantes, paisagens de praias, de rios, de savanas) surgem de braço dado com um imaginário tradicional colhido no folclore local. Os enquadramentos rigorosos e sugestivos, a fotografia num preto e branco frio (a imagem é de Sabine Lancelin, umas das maiores directoras de fotografia da actualidade, que trabalhou com Chantal Akerman e Oliveira), tudo isso contribui para que esse vai e vem entre realidade e imaginário, percurso espacial e percurso mental, ganhe uma força peculiar, sobretudo quando se consegue que as duas coisas, “realidade” e “sonho”, se tornem a mesma. Há momentos que explicitam a passagem ao olhar mais vasto sobre a tragédia africana, por exemplo quando se evocam os grandes massacres que a história europeu integrou como “símbolo” (Guernica, por exemplo) ao lado dos massacres africanos de que os europeus guardam na melhor das hipóteses um nome, mais ou menos obscuro. Como se Our Madness fosse um filme sobre a falta de imagens da tragédia africana e procurasse, na medida das suas possibilidades, combater essa lacuna. Donde, a imagem mais sintética e mais drástica, o momento em que o preto e branco surge tintado de vermelho-sangue, transformado na cor dominante de uma história que, mais do que do um país, é de todo um continente.

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