Ser investigador é doar o corpo à ciência, mesmo antes de morrer

Anseio pelo dia em que a investigação em Portugal seja uma profissão merecedora de reconhecimento; anseio pelo dia em que fazer ciência permita estabilidade e uma vida normal; anseio por uma só, a última, oportunidade.

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Miguel Manso

Em Portugal, ser-se investigador é usar a camisola com mais orgulho que o vermelho, o verde, o escudo e a esfera armilar. É preciso ter “muito amor à camisola”, seja ela de que área for — ainda que o protagonismo de algumas permita um sentimento um pouco mais leve.

A montante, ser-se um jovem investigador é ir à guerra nas botas de um soldado raso. É uma luta constante, batalha atrás de batalha, quando tudo o que nós queremos é uma oportunidade. Nós queremos trabalhar, aprender, partilhar e dar conhecimento. Para alguns de nós, a investigação pode ter sido a última opção, no quadro de desemprego generalizado que vive a geração das vacas que já não são gordas. Para os que cá ficam por vontade, fazer ciência requer vocação, requer dar tudo de nós. As oportunidades são escassas; grande parte dos novos editais para admissão de bolseiros de investigação têm um destino escolhido mesmo antes do concurso abrir; por mero acaso, por sorte e por vezes mérito, alguns de nós conseguem um lugar, uma oportunidade. Mesmo que essa oportunidade signifique deixar tudo, “ir para fora cá dentro”, nós lutámos. A primeira batalha está ganha.

Passamos meses, ou mesmo anos, deixando tudo o resto em segundo plano. A vida pessoal pode estar a centenas de quilómetros de distância e é assim que damos tudo de nós à ciência. Porém, os projectos financiados acabam e com eles vão as bolsas. A continuidade depende de novos financiamentos que podem não existir. A única coisa que permanece é a vontade. Podemos ter trabalhado continuamente durante três ou quatro anos, mas nos nossos direitos não consta o subsídio de desemprego. Caímos então no vazio escuro onde continuam a existir contas da luz para pagar. Uma batalha perdida.

Presumivelmente, o currículo enriquecido pela oportunidade que nos foi dada favorece uma nova ofensiva, mais legítima e justa. Alguns de nós lutam por uma bolsa de doutoramento financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). Julgo que esta seja a primeira vez que nos deparamos com a realidade de ser cientista em Portugal, numa batalha que se repetirá ciclicamente até ao fim de uma carreira na investigação. Estamos sozinhos e a competição é louca e voraz. Podia continuar esta exposição descrevendo a incoerência nas avaliações por parte da FCT, as alterações anuais nos critérios de avaliação, a disparidade nas bolsas atribuídas por painel, mas tudo isto já é certo e sabido por todos os que alinham nesta frente de combate. Opto apenas por vos resumir a estratégia de avaliação da FCT numa só palavra: cortar — e talvez contar o mérito que resta, a metro. As classificações sofrem cortes por tudo e por nada, a argumentação é demasiado abrangente ou demasiado específica e, por vezes, somos incapazes de lhe atribuir algum sentido que nos apazigue.

Demos tudo de nós e o que recebemos de volta é um julgamento infundado. Outra batalha se perde. Depois de muita luta, eventualmente conseguimos. Com sorte, voltamos para casa. Com muita sorte, voltamos a ter uma vida pessoal, ainda que esporádica. Contudo, todas as bolsas acabam. Até para investigadores sénior as bolsas acabam, os diminutos contratos acabam. Permanece apenas o inseguro autofinanciamento a prazos de quatro a seis anos. Os investigadores que me orientam e me inspiram a investir na ciência, que passaram os últimos 15 ou 20 anos nesta luta por bolsas, continuam exactamente onde eu estou: à procura de uma oportunidade.

Eu sou uma jovem investigadora. Sou jovem, tenho muita vontade de cá ficar e dar tudo de mim à ciência. Anseio pelo dia em que a investigação em Portugal seja uma profissão merecedora de reconhecimento; anseio pelo dia em que fazer ciência permita estabilidade e uma vida normal; anseio por uma só, a última, oportunidade.

Por agora, desenganem-se. A guerra de um investigador não tem fim. Investigação é ir doando o corpo à ciência, mesmo antes de morrer.

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