Uma aliança pela comunidade do mundo
Ao contrário do que nos quer fazer crer a aliança de nacionalistas e defensores do capitalismo mais desregrado, há mundo para todos.
Burlingon, Vermont, EUA. Para alguém que gosta dos Estados Unidos como país e teve sempre boas experiências com o povo deste país, em várias das suas latitudes e longitudes, a impressão dos primeiros cinco minutos no Vermont é: estes tipos são os mais simpáticos de todos os estado-unidenses. A segunda impressão, 24 horas depois, é: estes tipos são ainda mais simpáticos e acolhedores do que pensei à primeira vista. O estado mais frio — está tudo coberto de neve lá fora, e os zero graus até são amenos para esta altura do ano — parece ser também o mais caloroso.
E como eles são simpáticos, penso, porque não dizer-lhes? “Sabem?”, digo eu, “já conheci muitos americanos e vocês são os mais acolhedores”. A resposta, surpreendente, não é “a sério?! nunca tinha ouvido dizer isso”. Pelo contrário, é: “Eu sei; nós somos um estado onde se acredita no valor da comunidade.”
Burlington é uma cidade pequena. Menor do que a Guarda. Montpellier, a capital do Vermont, ainda mais: é menor do que Rio Maior. E a razão por que estamos aqui, gente vinda de todo o mundo e de várias trajetórias diferentes, do economista Jeffrey Sachs ao candidato presidencial brasileiro Fernando Haddad, tem a ver com o poder que têm indivíduos, mesmo sozinhos, mesmo em estados e cidades pequenas, em lançar debates de importância global. Para dizê-lo personificando nas pessoas que nos desafiaram a estar aqui, tem a ver com Bernie Sanders, o senador dos EUA, e com a sua mulher, Jane Sanders.
Bernie Sanders não é um político comum. Nos seminários políticos que aqui se fazem, há quem aconselhe os candidatos a políticos a contarem as suas histórias pessoas, à americana. Bernie Sanders não faz isso. Quando começa a falar, vai diretamente ao ponto que lhe interessa: a desigualdade. A desigualdade, diz ele, não é só uma questão económica. Porque o dinheiro compra poder, a desigualdade é também — sobretudo — uma questão política. Pensemo-lo assim: quantos canais de TV, quantos partidos e quantos políticos compram a desigualdade? Combater esse diferencial de poder é a causa da vida de Sanders. Quando não o está a fazer, parece que preferiria fazer qualquer outra coisa que não política. Mas quando o abordamos e conversamos com ele, tem todo o tempo do mundo e atenção para o encontro de ideias.
Mas — e é isto que o torna ainda mais invulgar atualmente — Bernie Sanders tem noção de que hoje em dia é possível combater a desigualdade nacionalmente mas é impossível resolver os seus efeitos e consequências sem se lutar para lá de fronteiras nacionais. A emergência de autoritarismos de extrema-direita no mundo, diz ele, está coordenada e organizada para lá de fronteiras. É necessário e urgente que os progressistas de todo o mundo comecem a trabalhar para lá de fronteiras nacionais também.
Nesse momento, Jane Sanders apresenta, em conjunto com o economista grego Yanis Varoufakis, um “apelo aberto” à criação de uma Internacional Progressista. Há um entusiasmo grande na sala, mas como fazer para garantir que este movimento não tem o mesmo destino de sectarismo e cristalização que outras iniciativas de esquerda? Essa é a pergunta que, se não está nas mentes de todos, deveria estar.
Parte da resposta está em algo que diz o economista Jeff Sachs e que não tem nada a ver com tática ou estratégia política. É um simples cálculo aritmético: “O PIB mundial é de 130 biliões de dólares; dividido por todos os humanos daria um PIB per capita de 19 mil dólares anuais”, conclui ele com um montante que está muito acima dos 11.800 euros anuais do salário mediano português.
Ou seja: ao contrário do que nos quer fazer crer a aliança de nacionalistas e defensores do capitalismo mais desregrado, há mundo para todos. Há mundo para todos, há economia para todos, há dinheiro para aquilo de que os humanos precisam para florescer. É a desesperança nas possibilidades de construção de uma política para lá de fronteiras, na Europa como no mundo inteiro, que nos desmobiliza e divide. Para unir e mobilizar, para recuperar o valor da comunidade, como fazem aqui no Vermont, mas saber fazê-lo para todo o mundo, há uma primeira coisa simples que é preciso fazer: explicar que não é preciso um futuro em que o mundo é só de alguns. Explicar que a esperança de um mundo para todos é realista. Vamos a isso.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico