A ascensão dos “homens-fortes”
Negócios e assassínios são coisas completamente diferentes. Assim vai o mundo.
1. Na sexta-feira, o site da BBC publicava uma série de fotografias com a chegada dos principais líderes do G20 a Buenos Aires, cuja reunião decorreu nos últimos dois dias. Quase todas nas escadas dos respectivos aviões. A sequência não era agradável de ver, mas não deixava por isso de simbolizar o mundo em que vivemos e o que mudou, drasticamente, em meia dúzia de anos.
Mostrava ao vivo e a cores de que forma caminhamos para um mundo de “homens fortes”, sejam eles em países que há bem pouco tempo podiam ser considerados democracias, mesmo que imperfeitas, ou os que gostariam de o ser mas não podem, graças à força das respectivas democracias. A agenda mundial que esteve em cima da mesa corresponde a uma crescente desordem internacional, plena de conflitos, de atropelos aos mais elementares direitos humanos, de violações da lei internacional, de intolerância, de destruição democrática e do regresso dos nacionalismos.
Sinal dos tempos, faltava o rosto que ainda hoje simboliza melhor a resistência a esse mundo em que os valores ocidentais são sistematicamente postos em causa. O avião de Angela Merkel foi obrigado a uma aterragem de emergência, atrasando irremediavelmente a chegada da chanceler.
2. Vale a pena recuar até aos anos em que o G20 tomou forma. A ideia foi acarinhada inicialmente pela França de Sarkozy em 2008. O espoletar da crise financeira internacional nesse mesmo ano deu-lhe o ânimo que lhe poderia faltar. Os líderes do G7 (nessa altura transitoriamente G8, com a cooptação da Rússia) já tinham o hábito de convidar para os seus encontros anuais os seus congéneres dos grandes países emergentes, reconhecendo que o mundo mudara o suficiente para exigir uma cooperação mais alargada.
Foi a época de ouro dos BRIC, de que hoje se fala cada vez menos, de tal modo cada um seguiu o seu caminho. As grandes economias emergentes (ou as potências que reemergiam, no caso da Rússia) não eram todas democracias. A China já tinha um lugar de destaque, com o seu crescimento económico vertiginoso. Ao contrário dos cálculos iniciais, a globalização foi uma bênção dos céus para a economia chinesa e não tanto para as economias ocidentais. Putin estava a dar início à viragem audaciosa da sua política externa, que resolveu testar nesse mesmo ano com a intervenção militar na Georgia.
As duas grandes democracias emergentes, a Índia e o Brasil, contrabalançavam o pendor autocrático de Pequim e de Moscovo. O Brasil era ainda o mais perfeito e o mais admirado dos BRIC, com a sua democracia e a sua economia pujantes. A África do Sul democrática haveria de se juntar ao clube. Os grandes países emergentes reivindicavam, com justiça, uma ordem internacional mais equilibrada, em que o poder fosse mais equitativamente distribuído entre as potências ocidentais, lideradas pelos EUA, e o então chamado “resto”.
O G20 acabou por fazer jus à sua constituição, permitindo uma gestão da crise financeira mundial e da Grande Recessão, que foi capaz de minorar danos ainda maiores na economia mundial. Foi possível evitar a tentação proteccionista que inevitavelmente surge nas grandes crises, coordenar os estímulos económicos nacionais para contrariar os seus efeitos mais negativos, criar um clima de cooperação sem o qual as suas consequências teriam sido muito mais devastadoras, incluindo do ponto de vista politico. A China desempenhou um papel relevante, continuando a puxar pela economia mundial enquanto as economias ocidentais mergulhavam na recessão.
3. Dez anos depois, vivemos num outro mundo. A única superpotência entrou numa deriva política que a transformou, graças ao seu poder ainda sem equivalente, num factor de desestabilização da ordem internacional que os Estados Unidos criaram depois da II Guerra e depois da Guerra Fria. Morreu na noite de sexta-feira em Houston o homem que pôs termo pacificamente ao grande confronto bipolar que dividiu o mundo durante quarenta anos e que anunciou uma “nova ordem” que se previa de paz e de maior prosperidade para o mundo. Chamava-se George H.W. Bush.
No sábado, em Buenos Aires, o palco foi irmãmente repartido pelo líder da superpotência instalada e pelo que lidera a principal candidata a superpotência mundial. À noite, os dois tinham pendente uma trégua na “guerra comercial” declarada por Donald Trump à China (e a outras grandes economias como a europeia, ainda que em muito menor escala) logo que chegou à Casa Branca. Trump vê na máquina exportadora chinesa, que se traduz num saldo muito negativo na balança comercial entre os dos países, uma “violação” inadmissível dos interesses da América. As negociações entre Pequim e Washington continuam. No jantar entre ambos que decorreu na noite de sábado, os mais optimistas esperavam fumo branco.
Os analistas lembravam que Trump precisa de uma vitória para fazer esquecer as atribulações crescentes dentro de portas. Faltava saber o que significaria para ele uma vitória. “Suspeito que Trump ficará a satisfeito em qualquer dos casos. Ele fica feliz quando faz acordos com a China, e fica igualmente feliz quando a ataca”, disse Danielle Pletka, do Enterprise Institue, ao Financial Times. Uma guerra comercial prolongada entre os dois gigantes terá efeitos no crescimento mundial. Xi Jinping aproveitou a política do America First para ocupar o terreno vazio e arvorar-se em líder da liberdade de comércio (e do multilateralismo), no respeito pelas regras da OMC, o que não quer dizer que as aplique internamente.
A Europa que faz frente com a China contra o proteccionismo, junta-se à América para denunciar as dificuldades de entrada no mercado chinês de mercadorias e de investimento, as suas sistemática violações da propriedade intelectual, já para não falar no desrespeito por muitas normas de protecção social e ambiental. Junta-se agora às preocupações europeias o receio de que Trump possa fazer um acordo com Xi à custa da Europa. Para satisfazer a América, Xi pode ter de prejudicar alguém. Até agora pode dizer-se que Tump têm levado a melhor com outras partes do mundo. Não se acanha em ameaçar a Europa.
4. Mas a coreografia deste G20 vai muito além da “guerra comercial”. Vladimir Putin acaba de lançar a sua última provocação militar para testar a determinação e a unidade ocidental face à sua política expansionista de recuperação, a bem ou a mal, das velhas zonas de influência. A crise ucraniana regressou em força, com o ataque e o apresamento de barcos ucranianos no Mar de Azov pela marinha de guerra russa. Putin dá como adquirida a anexação da Crimeia (em 2014), que o mundo não reconhece como legal. Tem no Presidente americano um amigo “compreensivo”, mas com a margem de manobra muito limitada internamente pelos sucessivos escândalos do eventual conluio entre a sua campanha eleitoral e a interferência russa nas eleições.
O último rebentou na quinta-feira, “obrigando-o” a cancelar, alegadamente por causa da Crimeia, um encontro previsto com Putin. O que pode fazer a Europa? Pouca coisa. Mais uma vez, cabe a Merkel e aos europeus (enquanto os conseguir manter unidos) manter a pressão sobre Moscovo. No G20, a chanceler contou com o apoio de Theresa May e de Emmanuel Macron, com alguns líderes europeus com direito de presença (da Holanda e da Espanha) e com os presidentes das instituições europeias. O governo de Salvini e de Di Maio já não pode ser dado como aliado seguro: não esconde a sua preferência por Trump e Putin. Os líderes do Canadá e do Japão tentam adaptar-se o melhor que podem à viragem americana, o que não tem sido fácil.
5. De resto, o desfile dos “homens fortes” foi impressionante. Xi, Putin ou Erdogan mais os candidatos ao título como parece ser infelizmente o caso de Narendra Modi, da Índia. Jair Bolsonaro está prestes a entrar em cena, engrossando a fila. No México, López Obrador vai provavelmente tentar um novo regime hegemónico, desta vez à esquerda. Resta o lado mais “obsceno” da coreografia de Buenos Aires.
O príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohamed bin Salman, suspeito de ter dado a ordem para o macabro assassínio do jornalista saudita Jamal Khashoggi, teve alguns momentos de “solidão”, mas foram escassos. Putin reservou-lhe uma recepção mais do que calorosa. Sentou-se com May, embora a primeira-ministra britânica argumentasse que o encontro foi para protestar. Uma fotografia mostra-o em conversa com Macron numa pose bastante amistosa. Xi não tem o menor problema em falar com ele. Não há fotografias com Trump mas já se sabe o que pensa o Presidente: negócios e assassínios são coisas completamente diferentes. Assim vai o mundo.