Joana Marques, Cátia Domingues e Beatriz Gosta querem “escavacar estereótipos”
São humoristas que seguem um guião que elas próprias escreveram. Nenhuma faz questão de empunhar a bandeira da luta de género, mas inevitavelmente a condição de mulheres é-lhes devolvida a toda a hora.
Não há muitas como elas no universo da comédia. São humoristas que seguem um guião que elas próprias concebem. Nenhuma faz questão de empunhar a bandeira da luta de género, mas inevitavelmente a condição de mulheres é-lhes devolvida a toda a hora, sendo reflectida na forma como se posicionam e comunicam através da sua actividade. Joana Marques é guionista e humorista, tendo-se afirmado nas Produções Fictícias, ao mesmo tempo que é uma das caras do emblemático programa Altos & Baixos do Canal Q e tem hoje, segundo ela, “uma rubrica diária nas manhãs da Antena 3 que se chama Extremamente Desagradável, que é um dos [seus] principais traços de personalidade”.
Da mesma geração, 36 anos, é Marta Bateira, mais conhecida por Beatriz Gosta, seja como humorista, ou ao lado da rapper Capicua, com quem partilha o palco nos concertos. “Estava exaurida no meu trabalho de designer de moda numa empresa e a Capicua, um dia, disse-me: ‘Tu és óptima contadora de histórias.’ Então fui para o YouTube contar histórias e virei youtuber.” É isso. O YouTube foi a sua porta de entrada no espaço do humor, mas hoje podemos vê-la e ouvi-la em todo o lado, da rádio à televisão. “Agora faço uma rubrica no 5 para a Meia-Noite, a avacalhar bonito, assim, e a despentear o povo”, afirma.
Um pouco mais nova, 30 anos, é Cátia Domingues, publicitária, criadora do blogue e página do Facebook humorístico One Woman Show, que se apresenta como “argumentista” que faz “essencialmente sátira política”. Trabalha actualmente no Canal Q “onde tem algumas rubricas”, para além de ter o desejo de “salvar o mundo”. Brinca, claro. Mas, a sério, apanhou o ano passado um avião até à ilha grega de Chios, onde esteve como voluntária num campo de refugiados, cerca de 800 imigrantes à mercê da neve. Nela, o activismo rima com humor. Encontrámos as três, há dias, de manhã. E a conversa começou por aí.
Culto – O mundo pode dividir-se entre homens e mulheres, mas também entre pessoas que gostam de acordar cedo e começar logo a trabalhar ou as que só conseguem fazê-lo à noite. Como é que é com vocês?
Joana Marques (J.M.) – Essa divisão faz até, em algumas áreas, mais sentido do que ser-se homem ou mulher. Uniram-nos aqui sob o pretexto de falar das mulheres no humor, mas faz mais sentido separar-nos assim. Felizmente – porque o meu trabalho na rádio é matinal – sempre funcionei muito melhor de manhã. Não me importo nada de acordar às seis da manhã. Às sete da tarde já ninguém pode quase falar comigo, porque estou pronta para ir dormir.
Cátia Domingues (C.D.) – É a mesma coisa. Gosto de trabalhar de manhã. Tenho um biorritmo de passarinho. Quando começa a escurecer, sou uma idosa e tenho vontade de dormir. Limita bastante a minha vida social. Gosto de trabalhar de manhã e pronto, à noite, não me chateiam. À noite, geralmente, é arranjar material. Como escrevo muito sobre a actualidade, à noite é lamber tudo o que se passa, para depois no dia a seguir, de manhã, acordar cedo e começar a escrever sobre isso.
Beatriz Gosta (B.G.) – Eu é à noite. Porquê? A culpa não é minha! São os concertos. Até faço um esforço para treinar logo às 9h da manhã, para começar o dia mesmo em bom. Mas nem sempre posso. Às vezes, estou sempre lá e cá [vive no Porto], tenho concertos em que me deito às 3h da manhã. Nunca tenho horários. À noite, até quando escrevia rap, baixa ali uma coisa criativa ou, pelo menos, estás contigo própria. Mas adoro a manhã e até uma certa idade conseguia conciliar deitar-me tarde e acordar de manhã, mas aos 36 anos já não é bem assim.
Qual é o vosso primeiro gesto quando acordam? Lavam os dentes, vão para as redes sociais, vêem o email? O que fazem exactamente?
C.D. – A primeira coisa: agarro no Twitter e vejo tudo o que se passa. Eu tenho aquela coisa, cenas modernas — o fomo (fear of missing out). Então a primeira coisa que faço é ir ao Twitter.
J.M. – Ver se aconteceu alguma coisa enquanto estavas a dormir.
C.D. – Exactamente! Se alguém já bateu em alguém.
B.G. – Tu vais para o Twitter?
J.M. – Sim, mas esqueço-me que tenho e só vou lá de mês a mês. As redes sociais são um bocadinho divididas por estilos de pessoas. No Twitter estão os mais ressabiados de todos. O Facebook é mais para toda a gente. Tenho lá a minha avó! O Twitter é mais de nichos. Tem gente muito recalcada. Há ali assim uns ódios muito viscerais. Não vou lá muito, mas tenho, infelizmente, o mesmo hábito da Cátia de estender logo a mão para o telefone, não [vou] ao Twitter, mas ao email. Queria erradicar isso, mas ainda estou longe de o conseguir.
B.G. – Também tenho essa coisa de ir para as redes e ponho logo música. Mas faço um esforço para deixar o telemóvel na sala e ir tomar banho. É a primeira coisa que faço, mal possa é ir tomar banho senão fico logo preguicenta e fico no café e no telemóvel, então vou logo tomar banho e aí obrigo-me a começar o dia.
C.D. – Isso é uma boa técnica. Vou tentar adoptar isso.
B.G – Deixas o telefone na sala por causa da ansiedade, sabes? A minha cama já está com insónia.
C.D. – Tu não levas o telefone para a casa de banho?
J.M. – Muito raramente.
C.D. – Ai, eu levo!
B.G. – Eu levo com a coluna, para bombar no banho.
E cantam no chuveiro?
J.M. – Olha quem! Claro.
B.G. – Canto e danço. Sinto-me muito assim no espelho. Não é todos os dias. Todos os dias ponho a coluna. Nos últimos meses, quando me sentia assim mais em baixo, tinha este vício.
No chuveiro somos todos grandes cantores. O problema começa quando se sai do banho e nos confrontamos com os outros, como nas redes sociais. E como é no humor? Existe em Portugal essa ideia de que existem poucas humoristas, pelo menos que sejam também autoras, para além de intérpretes. É verdade?
J.M. – Comecei a colaborar com as Produções Fictícias em 2006/2007 e tinha um bocadinho essa ideia, mas reparei que havia muitas mulheres como guionistas. A capacidade autoral sempre esteve muito presente. Muitos sketches que vimos do Herman José eram escritos por mulheres e nem o sabíamos, porque depois acabaram por não ser as pessoas que vieram a dar a cara, como o Ricardo Araújo Pereira. Muitos guionistas deram aquele passo em frente e apareceram. As mulheres não fizeram tanto isso. Mas já havia algumas e agora cada vez mais.
Conseguem explicar isso?
J.M. – Há menos mulheres no lado da performance, de subir ao palco e fazer, mas nunca reflecti muito sobre isso.
B.G. – No rap é a mesma coisa. Não fui criada a ser incentivada. A ter essa confiança.
C.D. – As mulheres sempre estiveram no público, não é? Historicamente o fenómeno de as mulheres estarem no palco é relativamente recente. A questão da exposição, com todo o contexto, e expectativa, tudo isso retrai um bocadinho as mulheres de se exporem tanto.
J.M. – Até porque muitas vezes o olhar do outro é diferente para a mulher e para o homem. Numa mulher vão-se centrar mais rapidamente se está gorda, se está magra ou se está despenteada.
B.G. – Fizeram várias vezes isso comigo!
J.M. – No homem não vês muito esse tipo de comentário. Mesmo as pessoas que querem, por exemplo, criticar o Herman José, não vão dizer que está gordo — isso não interessa. Acham graça ou não. Nas mulheres observa-se isso muitas vezes. Não se liga tanto ao conteúdo, mas à forma.
B.G. – É por ter o cabelo curto e chamarem-me fufa, como se fosse um insulto! Ou quando apresentei os prémios com o Fernando Alvim e eu “não estava bem naquele macacão, [tem]o rabo demasiado grande”! E o Alvim com uma barriga! Mas não! Ele estava imaculado e eu é que estava péssima!
J.M. – Às vezes as próprias reacções de terem mais medo do ridículo, uma coisa que vem desde sempre, não é? Muitas vezes o palhaço da turma é mais o rapaz do que é a rapariga, não é? Acredito que já não seja bem assim. Se formos às escolas, já vemos miúdas que se destacam e que escolhem outras profissões que não são aquelas tão habituais.
B.G. – Mas uma mulher para se rir dela própria tem de ser espontânea, só agora é que dão mais liberdade para tu não estares tão direitinha. A estares descabeladona.
C.D. – É bom estares diferente. Sou ligeiramente mais nova, mas na minha altura tudo aquilo que era “fazer parte da matilha” não era grande coisa. Tu destacares-te e seres diferente é que era uma cena fixe.
B.G. – Destacares-te por teres piada e não porque és a boazona da cena.
J.M. – Da mesma forma que há profissões ao contrário. Não são tão faladas, mas vais a uma creche e quase todas as educadoras de infância são mulheres e as pessoas ficam espantadas quando há um homem e fazem muitas perguntas como nos fazem a nós.
B.G. – Ficam preocupadíssimas quando têm lá um homem.
J.M. – “O que é que este homem está aqui a fazer?”
B.G. – Há preconceito. “Ai que ele pode abusar.”
J.M. – Tudo o que é diferente chama a atenção. Não é preciso querermos criar aqui a obrigação de que vai ter de ser igual. Acho que nunca vai ser 50/50. Nunca vai haver tantas humoristas mulheres como homens. Acho isso natural. Como nunca vai haver tantos educadores de infância masculinos como femininos – mas isso não é grave.
B.G. – Não concordo. No humor? Acho que as mulheres têm um humor mesmo muito bom!
J.M. – Têm, mas não vão ter naturalmente esse interesse profissional mais do que os homens. Nunca vai ser algo neutro.
O humor, em termos do universo da comunicação, até poderia ser um espaço preferencial para as mulheres desconstruírem estereótipos.
C.D. – Mas começam a fazer isso, não é? Parte do nosso trabalho é escavacar estereótipos e partir com isso tudo. Mas é todo um caminho. O facto de estarmos aqui três pessoas e, de repente, a maior parte das entrevistas que damos é sobre ser mulher no humor é significativo. É o que existe. A minha esperança é que com o tempo deixe de haver esta necessidade.
B.G. – Quanto mais normal for, menos chama à atenção e menos se justifica.
C.D. – Ou seja, a coisa já estará normalizada.
Incomoda-vos quando sentem que poderão estar a representar uma ideia de colectivo, no caso as mulheres humoristas? É como se a vossa individualidade pudesse ser passada para segundo plano?
J.M. – Não é estar farta. É uma discussão interessante de se fazer. Mas vejo-me como humorista, ponto final. Não por ser mulher ou homem. Identifico-me com outras mulheres humoristas como podia não me identificar nada com a Marta ou com a Cátia e identificar-me muito com o Bruno Nogueira ou com o Ricardo Araújo Pereira ou o Salvador Martinha. A mim, o que me interessa é produzir e não qual é a fonte.
B.G. – Mas consideras importante incentivar outras mulheres.
J.M. – Gosto de receber mensagens de miúdas mais novas a dizer: “Quero ser humorista.” É engraçado que elas possam sentir que têm ali uma mulher como referência: “Se ela faz, eu também posso.” Isso é óptimo. Agora sempre que me ligam, sei que a primeira coisa que me vão perguntar é: “Então e como é que é ser uma mulher no humor”?
C.D. – E a segunda é: “Quais são os limites do humor?”
B.G. – Sim! Mas tu já sentiste, por seres mulher, alguma insegurança quando começaste? Também começaste pelo jornalismo, não foi?
J.M. – Não. Quer dizer, estudei Jornalismo, mas nunca exerci. Sempre fiz isto. Comecei como guionista a escrever para outros.
B.G. – E nunca sentiste insegurança?
J.M. – Por ser mulher, não. Sentia as inseguranças normais de quem faz uma coisa nova.
C.D. – Mas há coisas que tu não sentes diferença por seres mulher?
J.M. – Nunca senti isso e quando comecei a trabalhar já havia outras mulheres. Nunca fui a única num grupo de guionistas só de homens. E nunca fiz essa separação, nunca penso nas pessoas assim.
B.G. – Também não me intimida estar no meio de homens.
J.M. – Nunca me trataram de maneira diferente por ser mulher. Podemos sentir isso depois da parte do público, quando já estás a comunicar para muita gente. Se faço uma piada, por exemplo, sobre futebol, sei que mais tarde ou mais cedo vem o argumento de “As mulheres têm de estar na cozinha”. Ainda há pessoas que vivem numa fase mais primitiva, mas das minhas relações, com quem eu trabalho, nunca me trataram de forma diferente.
C.D. – Há coisas que são inconscientes. Tu falas de futebol e é uma coisa mais masculinizada. Com a política é o mesmo. Não quero ser injusta, acredito que é de uma forma inconsciente, mas até nós podemos participar nisso de forma involuntária. No outro dia estava a escrever sobre isto que é: parece que só há lugar para uma. Tu competes com o teu género, não competes entre o género de humor. Dentro daquilo que eu faço existe o Ricardo Araújo Pereira a fazer. Mas não compito com ele, mas com o meu género, o que não tem absolutamente nada que ver. Mas, mesmo assim, a própria indústria, os teus pares fazem-te sentir como se só houvesse espaço para uma. E fazem-te competir. E isto vai contigo. Quando eu comecei... Tornas-te e parte disto e se aparecia uma miúda a fazer isto, tu ficavas tipo: “Oi?”
J.M. – “Só há uma vaga e já está ocupada.”
C.D. – Para mim, isto foi muito poderoso. Quando tomas consciência disto, que não têm de competir umas com as outras, que há espaço para toda a gente.... O país sofre deste problema de escala.
B.G. – Se há um leque de homens, porque é que não pode haver um leque de mulheres?!
J.M. – Quando alguém está a organizar um festival e quer uma mulher, ligam-me, e por vezes não quero ou não posso, e nesses casos dizem-me logo: “Mas pode-me sugerir outra mulher?” Querem que vá lá um representante daquele género e não dizem: “Pode-me sugerir outro humorista que considere ter graça?”
C.D. – Fazem isso de forma automática. Dei por mim a olhar por cima do ombro quando via uma miúda aparecer. E tomo consciência disso, percebo o quão injusto é, mesmo para mim. E, a partir daí, [é] conhecer as minhas colegas e ter um amor imenso e um apoio. Não sou nada sindicalista nesta coisa do género, mas acho que apercebermo-nos disto e unirmo-nos mais, ou pelo menos não termos este sentimento de competitividade umas com as outras, é libertador.
J.M. – É uma ideia que se quer formar, mas depois, se formos analisar a realidade, todas trabalhamos em coisas diferentes e que não chocam umas com as outras.
A vossa reflexão espelha que as identidades de género é qualquer coisa que acaba por estar presente no vosso humor.
B.G. – Reflecte-se e muito. Como o meu conteúdo é hardcore, assim para o espontâneo, fico muito espantada, porque não levo com muito ódio. Falo de temas bastante polémicos, sem tabus, sem filtros, e achava que ia ter muito mais hate do que acontece realmente. E eles são uns doces. Só tive duas ou três mensagens de ódio.
J.M. – Que sorte!
B.G. – Agora, o meu público é muito mais mulheres e LGBT total. Os homens só curtiram o [vídeo] da papaia ou o coelhinho.
Os homens sentem-se postos em causa pelo tipo de humor?
B.G. – Sim, é aquele abanão. “Tu falas mal dos homens”, dizem-me. Eu não! Amo homens! Eu é que me ponho a jeito de me ridicularizarem. Acham que a feminista quer os homens na fogueira. Nada disso. Só estou a contar uma história, em que estou ridícula, e está tudo bem.
Têm áreas de interesse preferenciais em termos temáticos ou são mais de abordar a notícia ou a polémica de determinada ocasião?
C.D. – Sou específica. Seja a actualidade política, nacional ou internacional. Se aparecer alguma coisa de “assunto do momento”, depende.
As touradas, por exemplo?
C.D. – Para mim, é político. Agora, se for tipo a Maria Leal, que apareceu e que roubou um miúdo… não me interessa. Se for um tema que possa ter um ângulo fixe, eu faço. Nunca faço alvo com o humor, partindo do pressuposto que existe sempre um alvo, a vítima. É sempre o agressor que me interessa. É natural. E nunca é com algo que uma pessoa não escolheu. É sempre com algo que uma pessoa escolheu fazer. Há coisas que já sei que não vou fazer. Quando comecei, foi importante perceber primeiro o que não queria fazer, mais até do que encontrares a tua voz. “O que é que eu não quero fazer mesmo?”
J.M. – Foi algo natural. Como na escola não terias vontade de gozar com o miúdo que já está no chão, não é?
C.D. – Claro. Tudo isto começou com uma página que eu tenho que se chama One Woman Show, mas se tu tirares a palavra woman da minha página, tu não consegues perceber se é um homem ou se é uma mulher a fazer aquilo, ou seja, tudo o que sejam temas de género “Então e os homens que não sabem baixar a tampa?” — sem desprimor, mas eu não faço, não é isso que me interessa.
B.G. – Concordo com a Cátia. Quando queremos ridicularizar alguém, o alvo de qualquer piada deve ser pelo que a pessoa está a fazer e não pelo que é. É a diferença entre ser e fazer. É o que ela escolhe fazer.
C.D. – Sim, posso falar do Cláudio Ramos, não por ele poder ser homossexual, mas porque teve um problema com o ar condicionado. É um bocado isto.
J.M. – Como faço uma rubrica diária na rádio, ando sempre à volta da actualidade. E pode ser tudo. Não é só a actualidade política. É qualquer área que me interesse e que para a qual encontro um ângulo diferente do que já foi dito – o que é difícil. Hoje nas redes sociais temos milhares de humoristas a competir uns com os outros. E temos de fazer algo diferente sobre esses temas que o dia-a-dia nos traz. Desde a reportagem sobre a golpada da Maria Leal até às horas e horas de directos de Bruno de Carvalho sem se passar nada. Tento encontrar o que é que me indigna em cada questão. É essa a minha escolha. Não estou centrada em nenhum tema específico e também não sinto que seja uma coisa marcadamente feminina. Não acho que tenha um traço muito feminino naquilo que faço.
B.G. – A mim marca mais. Se fosse um homem a falar o que eu falo, não chocaria.
Têm uma identidade muito definida o que é óptimo, claro, mas também se pode ficar dependente ou preso nessa mesma identidade.
B.G. – Beatriz Gosta é uma personagem. Não quer dizer que a Marta não tenha nada que ver, mas sempre senti a necessidade de abordar esses temas. A minha preocupação principal é fazer rir. Independentemente se estou a mandar a dica de que alguém está a queimar a ficha de outrem. Quero é ter graça. Se uma história tem graça, eu pego e conto. O que acabo por abordar são questões que sempre me incomodaram desde nova. Estar num grupo de rapazes e ter de me destacar pela beleza ou por ser toda boa e não poder ter conversas de igual para igual. Eu esforçava-me para estar gata, assim com 14 anos, e depois cruzei-me com a Capicua e, de repente, coisas que não questionava, comecei a ganhar consciência delas e a ter voz. Em Beatriz Gosta as histórias são engraçadas, acabo por abordar várias coisas que mexem com homens e mulheres. A mulher de 2018 tem mais camadas de cinzento. Não é só a mulher pronta para se casar.
Há quem defenda que através das redes sociais as mulheres têm mais possibilidades de se auto-representarem, no sentido em que escolhem o que mostrar, estando menos dependentes do olhar, da aprovação ou dos arquétipos projectados pelos homens.
C.D. – Isso é muito fruto desta época. Na altura do Picasso as representações femininas proliferavam. As mulheres não tinham a sua própria voz e de repente no humor tens isso e é incrível. Poderes fazer a tua própria representação.
J.M. – Isto entretanto já deu a volta, porque, quando falamos daquelas influencers e bloggers, já temos algumas que escravizam namorados e maridos, não sei se já viram, sendo eles os fotógrafos. Eles são os empregados delas. Elas estão impecáveis a posar na praia, com aquelas marcas patrocinadas. E lá vai o pobre coitado atrás para fotografar.
B.G. – Eu estive agora na gala dos Blogues do Ano e eles tiram cursos de fotografia só para irem para o mar, com ela na rocha!
C.D. – Temos as mulheres a contarem as suas próprias histórias e a auto-representarem-se, mas sinto que, às vezes, o mundo à volta não está ainda preparado para isso. Aquilo que faço, ao contrário da Marta, que é uma coisa que eu sei que tenho de equilibrar, é ter uma mensagem.
B.G. – A minha mensagem, a chapada na cara, passa de outra maneira.
C.D. – Eu faço alguma pedagogia, tens de equilibrar as palmas e o riso. “Tudo aquilo que tu escreves é para quê?” “É para teres palmas no final ou para teres risos no final?” E este equilíbrio para quem faz sátira política é lixado. Aquela é sempre a minha verdade, o meu ângulo.
B.G. – E não podes correr o risco de ser só palmas, senão aquilo parece um comício.
C.D. – Exactamente. Eu tenho dado alguns comícios! Estou na profissão errada.
Há uns tempos, numa entrevista com um cientista, este dizia-me que não era tanto o resultado final das suas experiências que o entusiasmavam, mas o processo. Com vocês acontece o mesmo?
C.D. – Não tenho controlo sobre a mensagem (a interpretação), mas enquanto o Ricardo Araújo Pereira diz que o humor não é uma arma e é para fazer rir, eu acho que o humor é uma arma. O humor tem um papel. Não é uma arma de destruição maciça, mas aleija um bocadinho. E só o aleijar faz dele uma arma. Aleija, tem um efeito e um resultado. No dia em que deixar de acreditar nisso, deixo de fazer isto. Imagina, o cidadão comum vê os debates do Orçamento do Estado, e diz: “Não percebo um cu e sei que me vão lixar no final.” E depois vêm os comentadores e também não percebem nada. O que faço é descomplicar o Orçamento do Estado de uma forma que as pessoas queiram consumir, aprendendo alguma coisa. Acredito que a informação é poder.
J.M. – Por isso é que disseste no início que queres mudar o mundo.
B.G. – Também acredito nisso. Há sempre intervenção e no rap, volto a dizer, está sempre tudo ligado.
C.D. – Claro. O rap pode ser de intervenção, como o humor também pode ser.
B.G. – O rap não começou como intervenção. O rap começou em festa com o DJ que depois chamou o MC, ou declamador. E foi aí que a voz das desigualdades se fez ouvir.
J.M. – Em relação ao Ricardo Araújo Pereira, o ideal seria um misto das duas coisas. Ele tem essa noção. Ele insiste muito na ideia de que “é só para fazer rir”, mas sabe que, quando pôs aquele cartaz a criticar o PNR no Marquês de Pombal, aquilo tem algum efeito. Obviamente, não acabou com o PNR, mas gerou qualquer coisa. Tanto que eles ficaram enfurecidos com aquilo. Ele percebe isso, mas põe em primeiro lugar o fazer rir e com isso concordo. Essa tem de ser a intenção. Se pelo caminho conseguimos passar a mensagem e fazer a pessoa pensar um bocadinho naquilo, mesmo que no fim não mude de ideias, tanto melhor. Por exemplo, quando falo das touradas, recebo muitos insultos. Sei que é uma batalha perdida. Eles não vão ouvir aquilo e dizer: “Olha, isto foi muito engraçado e afinal já não gosto de ver os touros ali a serem espetados”, mas trago aquilo para o debate. Mas o meu objectivo final é sempre ter graça. Não consigo ter graça a defender uma tourada, porque é completamente diferente daquilo que eu penso, isso não consigo fazer.
Há humoristas que têm quase uma personagem. Não é o meu caso. A mim dá-me mais gozo tentar ter graça e no tal processo estar a divertir-me, acreditando que os outros se divertem com aquilo também. Se estou a analisar um programa da SIC em que eles se casam com pessoas que nunca viram antes, pode haver ali uma crítica do género “isto parece uma coisa muito moderna, mas já era usada há montes de anos, quando havia casamentos combinados, e agora parece aqui com ar de modernidade”. Depois o que quero é pegar naquelas pessoas e brincar com aquilo que elas dizem. Não quero que aquilo no fim tenha moral, enquanto outros temas poderão ter. Vou mais para o lado do entretenimento. A diversão pela diversão, mas gosto de fazer as duas coisas. Quando é, por exemplo, as praxes, que é uma das questões que suscitam mais ódio: sou completamente contra e dá-me gozo sempre que volta a época das praxes tentar dissecar aqueles discursos e porque é que estamos sempre nisto e nada muda. Isso diverte-me, mas se no outro dia for uma coisa mais fútil, digamos assim, diverte-me na mesma. O meu objectivo, no fim do dia, é que tenha graça. E depois, o resto, logo se vê.
Falam muito nessa ideia de o objectivo ser fazer rir. Mas isso não é, evidentemente, controlável. Não sabem, à partida, o que vai acontecer. Agora, deve haver algumas coisas que fazem que percebem que podem gerar um efeito qualquer.
J.M. – É a tal história de que falavas há pouco do cientista: o processo. Se no processo me divertir muito, tenho quase a certeza que a coisa funciona. Tenho a vantagem da rádio e o impacto nos meus colegas do lado. São uma pequena amostra. E na maioria das vezes não me engano muito. Quando estou em casa a fazer aquilo e me estou a rir, é porque à partida vai correr bem.
B.G. – Mas às vezes achas que tem muita graça, e divertes-te muito com aquilo e depois o feedback é uma coisa que até nem curtes muito.
J.M. – Isso nota-se mais em espectáculos. Há uma frase e achas que vai ter efeito e não tem efeito nenhum e outra que para ti nem era uma piada, era só uma passagem para outra coisa, e as pessoas riem-se.
Como é que se lida com a ausência do riso?
J.M. – Lida-se bem, se não assumires aquilo como um fracasso terrível. Só funciona para quem também não assume o riso como uma vitória incrível. É um bocadinho como as críticas de Facebook. Para não ligares àquelas muito más, também não podes ser o tipo de pessoa que liga às muito boas. Quando alguém diz aquelas coisas: “Genial” ou “És a maior”, não ligo. Do género, obrigada, são simpáticos mas não fico “ah, realmente sou”. Nada. E é isso que depois permite que outras não me deitem abaixo e que eu não saia mais de casa, porque este senhor disse que eu sou isto e aquilo.
B.G. – Mas a primeira vez que tu leste um ódio… Acho que a cara ficou vermelha e fiquei quente.
J.M. – Ah, péssimo. Com o coração a bater.
B.G. – A primeira vez, nunca mais me esqueço. Mas lido bem com o ódio.
J.M. – Também tens pouco. Vamos começar a mandar-te mais.
B.G. – É pouco ódio, mas também não me deslumbro com os elogios. É tipo normal. Não me conhecem.
C.D. – No início recebi muito ódio. E ainda recebo algum. Menos. As pessoas também incomodam-se com tudo, não é? Se tomas alguma posição sobre alguma coisa, há sempre pessoas que se vão indignar. Ao início, recebia muito mais, é curioso. Quando era mais desconhecida, recebia mais ódio e ameaças de processos. Mais do que hoje em dia. O tipo de pessoas que ameaçava é aquele tipo de gente que quer assustar, do género “só para ver se te calas”, mas depois perceberam: “Ela não vai sair daqui, mais vale deixar ficar.”
J.M. – Os meus níveis de ódio têm-se mantido mais ou menos constantes.
B.G. – São temas específicos, não é?
J.M. – Às vezes espanta-me quando é um ódio de que não estou à espera, ou seja, há temas que quando nos vamos meter neles, como o futebol, as touradas, as praxes, a religião, etc., tu já sabes o que aí vem. É muito mais giro quando é uma coisa que eu acho completamente inócua, como a sátira aos youtubers. Abordei o que era ser youtuber com exemplos dos youtubers mais famosos em Portugal e satirizei cada um deles.
A reacção foi também uma coisa geracional?
J.M. – Senti-me velha nessa altura. Fui ver as pessoas que me insultavam, com coisas bastante violentas e muitos tinham oito ou nove anos. Sabiam insultos que, na idade deles, me eram desconhecidos. Até ameaças de morte de miúdos de nove anos recebi, com a fotografia de perfil deles com os pais, num passeio, com a família. E penso: os pais, para já, não fazem ideia de que eles andam a contactar com adultos e a insultá-los nas redes sociais.
Que tipo de críticas é que fizeram detonar essas reacções?
J.M. – Analisava os oito ou nove youtubers mais famosos em Portugal. Quis tentar perceber o fenómeno, mas obviamente é o meu olhar, é o olhar da nossa idade, de quem nós somos. Critiquei um bocadinho aquele universo. E não pensei que fosse a reacção mais violenta de todas. Sentiram-se muito indignados por tudo. O que fiz foi expor ao ridículo aquilo que eu considerava caricato e eles acham isso impensável. É uma afronta terrível. Sentem que são os melhores amigos deles que estão a ser postos em causa. Um sobrinho de um amigo meu não me queria falar cara a cara. Tinha gozado com os amigos dele e o argumento dele era mesmo esse. E provavelmente nem o poderemos criticar a partir dessa situação, porque muitos de nós com nove anos seríamos iguais. Só que não tínhamos esta ferramenta chamada Internet à disposição.
B.G. – Não sentem que por serem humoristas as pessoas acham que são mais íntimas?
J.M. – Sim, sim!
B.G. – Na rua sentem que são minhas íntimas, que me conhecem de outra vida. Vão sem filtro. Chegam, abraçam, até me filmam sem pedir autorização, é uma coisa assim, sabes?
Como é que se lida com isso?
B.G. – Há dias em que eu estou triste como a noite e que não me apetece mesmo tirar fotos, nem conversas. No outro dia estava no metro, a chorar, com um desgosto. E de repente apercebo-me que alguém estava a tentar aproximar-se há imenso tempo. Eu na minha dor, a tentar não chorar em público e ela: “Podemos tirar uma selfie?” Eu desgraçada, disse: “Olha, hoje não dá mesmo. Um dia a gente cruza-se ou até combina, mas hoje não vai dar.” E ele. “Anda lá.” E lá tirei assim com as lágrimas, triste como a noite. Às vezes não apetece e eu digo que não, mas é raro. É chato para quem está comigo. O meu pai, os meus amigos, é chato. Eles até dizem: “Vamos dar-te umas perucas.” Mas é chato, chato, chato.
J.M. – É que a abordagem é logo com muita confiança. E há muito essa coisa do: “Tu é que tens de ir ter com eles.”
B.G. – “Andas cá tu e é se queres tirar uma foto.” Na noite, bêbados. E académicos? Capas pretas, eu fujo. É muito abraço, muito agressivo. Aí a abordagem para mim é tudo. “Vem com calma.”
Há pouco falavam das gerações mais novas. E como é que é em relação às gerações mais velhas do humor? Sentem que há algum tipo de herança? Como é a essa ligação?
J.M. – Tive sorte de escrever para o Herman José, que era uma coisa que eu pensava que nunca iria acontecer e foi muito emocionante. Lembro-me de ter sete ou oito anos e ver o Herman Enciclopédia e, de repente, alguns anos depois poder escrever e contactar com ele. Foi óptimo. Gostei muito. O Herman sempre procurou ter autores mais novos e vemos agora até pela actuação dele nas redes sociais que tenta sempre inovar. Não ficar congelado na sua posição. Gosta de ouvir as pessoas, tem uma curiosidade genuína e as pessoas gostam muito de o ouvir. Tem histórias inacreditáveis, parece que foram noutra vida. E todo os outros com quem tenho contactado e trabalhado é o mesmo. Aliás, eu e a Cátia, daqui a um mês, vamos integrar a equipa do novo programa do Ricardo Araújo Pereira. É uma honra. De todos os humoristas é o que está um passo acima de todos. Está noutro nível.
B.G. – Sou megafã.
J.M. – Para nós é uma oportunidade excelente. Daquilo que já contactámos com ele percebemos que tem muito interesse e é curioso. Vai muitas vezes sem avisar ninguém a um bar qualquer onde sabe que vai haver stand up comedy. Anda sempre à procura de talento e quer saber mais do que se passa na comédia em Portugal. E existe muita coisa: há os mais visíveis, mas fenómenos mais pequeninos também há muitos. E agora com a Internet, muito mais. Às vezes até convida alguém para ir jantar a casa dele, porque quer saber mais sobre aquele humorista. Acho isso fascinante, porque há sempre o perigo de chegar a um certo patamar – ele está no mais alto de todos nesta área – e esquecer o que está lá em baixo. Ele não tem isso. Tem uma curiosidade, quase infantil, de saber tudo o que se passa e está sempre motivado para fazer coisas novas. E isso, para nós, é muito entusiasmante, porque vemos que ele tem a mesma emoção que tinha quando estava na SIC Radical pela primeira vez a fazer os Gato Fedorento. É quase comovente e espero conseguir manter sempre esse entusiasmo depois de já ter feito tanta coisa como ele.
Há muitos humoristas que nunca aprenderam a vertente mais performativa da actividade, o ser actor. No vosso caso, como foi esse desenvolvimento? Como é que se desenrolou essa procura?
B.G. – Sofro muito sempre que filmo. Sofro muito até ao momento em que me dizem: “Avança, está fixe.” Penso sempre que “não estou boa”. Mas tenho sempre uma equipa, ou a Capicua está lá, e é um filtro bacano. Ou então também trabalho com amigos e, se eles dizem que está bom, então está bom. Mas sou muito free style. Se me divirto, a coisa sai bem. Se estou tensa e stressada, vai correr mal.
J.M. – Não é bem assim. Tenho de dizer que estive na primeira vez que a Marta actuou ao vivo, com uma plateia de centenas de pessoas. Antes estava quase a morrer e dizia: “Como é que eu vou falar meia hora?” E depois só saiu de lá ao fim de uma hora e tal.
B.G. – É verdade. Mas é muito raro. Não acredito em mim, tenho dificuldade. Sou bué insegura. Não parece, mas sou. E, então, sou free style. Levo os temas trabalhados e para onde quero ir, mas às vezes quando me perco é quando tem mais graça. Às vezes estou a descrever a cortina e lembro-me ali de uma coisa qualquer e começo a avacalhar. Por isso é que o trabalho de edição é muito importante. Gosto mesmo de me perder e é aí que tenho mais graça quase sempre. E é isso. Sou muito emotiva, muito intensa, mas sou do free style. Quando as coisas saem direitinhas, escritas e não sei quê, quase de certeza que não vai sair nada com muita graça.
J.M. – Não tenho jeito para o humor físico. Não sou muito expansiva e expressiva. O Daniel, que faz comigo o espectáculo Altos e Baixos, é o oposto. É muito mais de humor físico do que eu. Às tantas estou a vê-lo de fora, porque sei que sou a pessoa mais racional e que vai dizer tudo como tínhamos combinado e escrito. Funciona por esse contraponto. Estou sempre a tentar puxá-lo de volta quando ele já está a improvisar tipo a Marta. Aí esse complemento funciona bem. Eu sozinha é uma coisa que acontece menos vezes, pontualmente até para coisas de empresas. E aí tenho mais dificuldade. Sinto que vou ser exactamente eu. Mas muitas vezes as pessoas ouvem-me na rádio, onde tenho este registo, e acabam por não ter a expectativa que eu entre com plumas e que seja uma coisa diferente. O meu registo é o de uma conversa normal de café. Nunca encarei a coisa como uma performance, nunca treinei para isso.
B.G. – Eu exagero. A Beatriz já é assim mais bicha.
C.D. – Eu sou mais aquilo que sou cá dentro. Sempre fui muito Mafaldinha, digo imensos palavrões, sou muito emotiva e falo do coração. As coisas que já fiz ao vivo é do coração, porque faço aquilo mesmo em que acredito. Sou muito apaixonada por isto. Então, como acaba por ter sempre alguma mensagem, adapto aquela coisa quase de comício.
J.M. – Mas vais com texto preparado?
C.D. – Na maior parte das vezes não vou. Tenho dois ou três tópicos e falo.
J.M. – Eu escrevo tudo mesmo que depois não diga.
B.G. – Para interiorizar.
C.D. – Tornas aquilo tão natural e vais sentindo o público. A coisa vai e eles vão contigo. Falo sempre de coração, ou seja, tenho muita paixão pelo que faço. Sou muito mais Mafaldinha, muito mais reivindicativa.
J.M. – A mim aborrece-me de morte. A história do Altos e Baixos, combinámos fazer apenas Lisboa e Porto. E depois acabámos por fazer 16 datas. Existe o efeito de repetição. Já odeio, porque escrevi e já me ri quando escrevi. Fazer a primeira vez já me chateia um bocadinho, porque sinto que é repetir. Fazer mais de uma dúzia de vezes é um martírio. O Daniel diverte-se imenso, porque para ele é sempre diferente. Eu estou mais ligada àquilo que fiz e que preparei e não me divirto muito. Há sempre reacções diferentes das pessoas, mas não é a parte que me diverte. Divirto-me é em casa, de pijama, a escrever. Para mim esse é que é o momento. Quando descubro aquela piada e “isto funciona” e “isto faz sentido” – isso para mim são os momentos felizes.
B.G. – Não te fascina o contacto com as pessoas?
J.M. – Se pudesse não contactar com pessoas, estava bem.
Queriam ser o quê antes de começarem a fazer humor?
B.G. – Nem me considero humorista. Só queria contar histórias. Sempre tive pânico a vida toda, porque nunca tive um dom evidente. E até hoje não sei o que é.
J.M. – É porque tens jeito para muitas coisas e isso é dramático.
B.G. – Não acho que seja isso. Não tenho jeitinho para nada. Não sou boa em nada e não sei para que é que nasci. Mas sou comunicativa e gosto de dar love também. São duas coisas em que não sou assim tão chunga.
C.D. – Quando era pequena, gostava de ser arqueóloga, mas acabei em publicidade — muito fascinante, não é? Mas sempre gostei de escrever e então publicidade foi aquilo que me pareceu melhor. Pensei: “Onde é que eu posso escrever e me pagam?” Na publicidade. E é engraçado que tens muitos humoristas que saíram da publicidade — porque te dá aquela liberdade de te extravasares e de escreveres. Trabalhava em agência e escrevia o que me apetecia nas minhas horas de almoço. Então houve uma altura em que comecei a pensar: “O que é que eu quero mais? Ser mais uma precária, mas fazer o que gosto, ou ganhar dinheiro e ser extremamente infeliz?”
B.G. – Eu também passei pelo mesmo.
C.D. – Então a escolha, na altura, tinha 20 e tal anos, pareceu-me clara. Para os meus pais foi terrível. “De repente vais ficar precária por opção.”
B.G. – Mas estás arrependida?
C.D. – Nada. Agora faço ao contrário. Sou freelancer em publicidade e faço isto a tempo inteiro. Continuo a ter de pagar contas.
B.G. – Eu também estava muito infeliz a trabalhar como designer de moda numa fábrica. Sempre trabalhei em agências de moda e nunca numa fábrica e é mesmo duro. Pica-se o ponto, ouve-se a sirene, as costureiras saem de lá com o ordenado mínimo e em condições mínimas. Eu tinha mais privilégios, mas aquilo foi um choque. Conversar com elas e perceber aquelas vidas. Eu chorava para ir trabalhar, sou sincera. Acordava às 6h da manhã e ia para Paredes de comboio às 7h para estar lá e entrar às 8h30. Foi muito duro e o pessoal: “Ai Marta, sai dessa.” Esperei o tempo certo e estava muito forçada nessa altura e foi quando a Capicua disse: “Tu és uma óptima contadora de histórias, liga aí essa câmara e vamos ver.” Não tinha intenção. “És uma óptima contadora de histórias, ninguém adormece quando contas uma história.” E pronto.
J.M. – Isso para crianças é péssimo. Não podes fazer isso com crianças. Nós contamos histórias às crianças para elas adormecerem. Tu estragavas isso.
B.G. – Aconteceu assim naturalmente, nem me considero humorista. Tudo bem, não é que eu não tenha uma mensagem. Preocupo-me que tenha graça e que passe uma mensagem, claro. Mas quero é que tenha graça, porque, se não tiver, morri.
J.M. – A minha mãe conta que eu queria ser pintora, mas devo ter percebido que não tinha jeito. Quando aprendi a escrever, comecei a dizer que queria ser escritora. E os meus pais começaram a dizer: “Eh pá, isso é capaz de ser complicado.” Gostei sempre de escrever, adorava as aulas de Português. Foi uma ferramenta que arranjei e gostava muito. E a Marta estava a falar de nunca saber bem o que é que havia de escolher. Eu tinha o problema contrário. Fui fazer aqueles testes psicotécnicos que dizem qual é a área para a qual deves ir e a mim dava-me 98% ou 99% de humanidades e letras. Não tenho jeito nenhum para o resto. Matemática, zero. Mesmo para línguas, francês e inglês, nada. Foquei-me no português e, quando chegou a altura de escolher – não havia nenhum curso superior para ser guionista –, fui para Jornalismo, mas rapidamente percebi que também não era por aí. Vejo agora alguns colegas de turma na CMTV a fazer reportagens, coitados, e penso: “Ainda bem que saí disso a tempo. Não é para mim, ia ser infeliz. Nem gosto muito de contactar com pessoas. Então imagina andar atrás de gente com um microfone.” Felizmente, na mesma altura, surgiu um curso de Escrita de Argumento em que pude começar a escrever num tom mais humorístico. Depois convidaram-me para começar a trabalhar e tive a sorte de nunca ter tido um trabalho que detestasse. Respeito muito quando amigos me dizem que têm trabalhos de que não gostam. Deve ser terrível e considero-me sortuda. Obviamente que temos sempre de responder perante alguém que pode dizer: “Olha, isto não presta, faz outra vez.” Mas é mais leve do que ter um qualquer patrão ditador.
Além de humoristas, são também figuras públicas, sendo solicitadas para as mais diversas coisas, algumas com propósitos que pouco ou nada terão que ver com a vossa actividade. Como gerem isso?
J.M. – É bom aprender a dizer não. Ao início queres fazer tudo. Tudo é novo e vais experimentar, porque não? Os anos vão-te fazendo ser mais selectivo por todos os motivos. Tenho feito esse exercício. Claro que ainda hoje há coisas que me entusiasmam menos. Na época do Natal, as empresas dão festas, por exemplo. Nunca sei bem ao que vou e gosto dessa parte do desafio. Mas ainda no outro dia estive na festa de Natal de uma empresa em que estava já tudo bêbado, quando estávamos a entrar. Até fiz sinal ao Daniel a dizer “Vamos tentar ser rápidos”, porque não nos estão a ouvir. Ou seja, é um bocadinho desperdício e isso é chato e é incontrolável.
Mas a verdade é que tem um lado financeiro bom para depois às vezes fazeres coisas que não dão dinheiro nenhum – ou seja, tem de haver este equilíbrio, mas, hoje em dia, não faço nada (já aconteceu fazer trabalhos penosos) se sinto que está a ser penoso. Isso já não vale a pena, porque depois é prejudicial. Tento fazer sobretudo coisas em que tenho mais controlo. Isso é bom. Se escrevo uma rubrica de rádio, faço-o para mim. Se correr mal, é culpa minha. Não há aquela coisa de: “Vou entregar um texto a outra pessoa que vai apagar tudo e fazer de novo e vou-me irritar.” Claro que continuo a gostar de escrever para outros. Esta oportunidade de escrever para o Ricardo Araújo Pereira... estou feliz. Sei que ele vem também desse lugar do texto e respeita-o. Não é daquelas pessoas para quem escreves um texto, deita fora e faz ele. “Para que é que estive a perder cinco horas em casa”? À medida que vamos crescendo e fazendo mais coisas, também aprendemos a escolher e a perceber esse equilíbrio que não é fácil. De repente, pode-nos aparecer alguém com muito dinheiro, mas é uma coisa que sabes que vais odiar. Tens de dizer que não e pensar que vai aparecer outra coisa.
C.D. – Eu sou das que sofrem menos assédio de marcas. Claramente. Sou pouco atractiva para marcas e ainda bem. O modelo de negócio das marcas é uma coisa que me interessa e portanto chumbam-me todas. O assédio que sofro é de colectivos e outras organizações, e aí penso se faz sentido ou não. De repente, têm uma pessoa que consegue engajar o público que é deles e consegue transmitir mensagens da forma que as pessoas querem consumir. É fixe ter uma pessoa assim no nosso lado e eu tento gerir bem isso. Faço o que para mim faz sentido e não tenho qualquer associação a partidos. Em escrita de humor faço o que quero e para pagar contas faço copy em publicidade e campanhas, porque é extremamente difícil para mim fazer, dentro desta área, uma coisa de que não goste.
B.G. – Eu também tenho esse filtro bem marcado. Abri uma excepção no outro dia. Sempre disse “não, não, não” e abri uma excepção por ser a Soares dos Reis, uma escola do Porto muito querida. Os meus amigos saíram de lá e pronto, não me arrependo, porque foi mesmo incrível. Adorei aquele pessoal. Muito mais à frente do que nas faculdades. Nas tunas estão sempre bêbados e embebedam-me e eu saio de lá descabeladona. Os académicos têm uma forma com que não me identifico muito. Mas depende. Vou lá, cheiro de perto, gosto de ver como é que aquilo está. Às vezes fico surpreendida e também deixo lá a minha semente. Acho que consigo matar sem o pessoal me levar a mal, não sei porquê.
C.D. – O ódio que recebo ultimamente é mais selecto. São pessoas que estão firmadas na sociedade e que ficam lixadas se tu as pões em causa. E eu sinto que é por ser mulher. Esta é a minha sensibilidade. Sinto que se fosse um gajo, se fosse um humorista qualquer homem a dizer aquela graça, passava. Agora, como é mulher, sentem uma humilhação diferente.
B.G. – Concordo. E ainda dizem mais: que és uma ressabiada, de mal com a vida e tal, mal fodida mesmo.
C.D. – Mas o que é que estas pessoas sabem da minha vida?
B.G. – É porque estás a tocar na ferida.
C.D. – “Como é que esta pessoa ousa estar a pôr-me em causa”, parecem dizer. Quem me conhece sabe bem que aquela máxima do “respeitinho é muito bonito” não é para mim. Nunca. E não era agora com 30 anos que a vou perceber. Sempre gostei de me meter com os mais crescidos, os “lá de cima”. Os problemas por norma estão lá em cima. Então, nós temos de olhar um bocadinho para cima, pelo menos é o que eu faço.
Começámos a conversa pelo despertar. E qual é a última coisa que fazem antes de se irem deitar?
B.G. – Depende de onde venha. Há alturas que chego a casa, tiro a roupa e meto-me na cama. Fica ali pelo chão e piscininha na cama. Por vezes vejo filmes ou séries tipo viciada. E a novela da SIC Segundo Sol. Dou uma puxada. Ou então, como dá muito tarde, à meia-noite menos cinco, colo na novela e depois vou dormir sem ir ao telemóvel, que é para não dar insónia.
C.D. – Sem querer parecer uma Twitter junkie, vou ao Twitter, perceber se o mundo está bem, se a vigilante pode ir dormir. Isto afecta mesmo a minha vida. E ler um livro. Às vezes as duas coisas ao mesmo tempo. Antes tinha o hábito de ler muito e agora sinto que está cada vez pior.
J.M. – Ganhei o hábito de ir espreitar o meu filho, ver se está a dormir em alguma posição estranha, acho querido. E percebi que é um bom calmante. Passamos o dia em Twitters e Facebooks e, de repente, uma pessoa vê aquilo e pronto. É o mais engraçado lá de casa e dorme em posições cómicas. Depois vou dormir e já não tenho aquela tensão do dia. Às vezes ia ver coisas estúpidas na Net e chegava a sonhar com coisas que via. Sinto que aquilo é um bom calmante natural, é ainda melhor do que Valdispert. Por outro lado, isto não é tão idílico como parece, porque, ao fim de algum tempo, ele acorda e tenho de ir lá. Ele acordar já não tem graça nenhuma e a minha noite é muito acordar e adormecer.
B.G. – Vocês aterram logo ou ainda ficam a matutar no trabalho?
J.M. – Caio na cama, logo.
B.G. – Fogo, tenho uma inveja desse povo. Eu tenho muita insónia.
J.M. – Às vezes sonho com coisas que podiam ser úteis e depois esqueço-me. É isso.
O PÚBLICO agradece à Livraria Ler Devagar, na LX Factory, em Lisboa pela cedência das suas instalações para fazer a entrevista.