“Os meus inimigos derrotaram-me, mas o Dr. Ricardo traiu-me!”

A queda do BES, em Agosto de 2014, continua a fazer correr rios de tinta. Um novo livro da autoria do ex-jornalista e ex-director de comunicação do Benfica João Gabriel regressa aos momentos mais marcantes do colapso daquele que foi um dos principais centros de poder em Portugal. O ex-CFO do banco, Amílcar Morais Pires, que chegou ser indigitado como presidente executivo, é um dos protagonistas.

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A editora Prime Books propôs ao P2 a pré-publicação de excertos do livro A Mentira – A Culpa, as Manobras e as Traições de Ricardo Salgado, da autoria do ex-jornalista e ex-director de comunicação do Benfica João Gabriel, que dá a conhecer uma versão dos acontecimentos que rodearam a queda do BES, no dia 3 de Agosto de 2014. Um trabalho que, entre outros temas, sustenta a tese de que Amílcar Morais Pires, ex-CFO do banco e um dos protagonistas dos capítulos enviados ao P2 foi vítima do antigo presidente do BES, de quem foi braço-direito durante dez anos.

O P2 aceitou a pré-publicação de excertos do livro com a condição de enquadrar a relação profissional entre o autor, João Gabriel, e Amílcar Morais Pires, de quem é próximo. No período crítico que antecedeu a derrocada do BES, o antigo jornalista da SIC e da TVI prestou a título pessoal serviços de comunicação a Morais Pires. No Benfica, clube de que ambos são adeptos, cruzam-se, por exemplo, na tribuna presidencial do Estádio da Luz. E Morais Pires tinha, aliás, uma torneira aberta para o universo empresarial de Luís Filipe Vieira, com créditos no BES, em 2012, de largas centenas de milhões de euros, com reflexos também na tesouraria do clube. Hoje, Gabriel passa parte do tempo no Dubai, onde diz ter “uma empresa de consultoria”.

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Enric Vives-Rubio

“São 20 horas do dia 3 de Agosto de 2014. O Conselho de Administração do Banco de Portugal vai reunir para decidir o desaparecimento do maior banco privado português, o BES.” É assim que João Gabriel arranca o primeiro capítulo, que intitula O vazio de poder, uma menção a um dos episódios mais dramáticos da história do GES/BES, quando o BdP e o Governo de então se concertaram para decretar o seu colapso. No livro, o consultor de comunicação apresenta documentos e relatos de vários intervenientes que acompanharam, directa e indirectamente, o fim daquele que foi o maior centro de poder em Portugal. Agora, João Gabriel pretende contrariar as teses que sustentam as acusações do Banco de Portugal (BdP) e do Ministério Público (MP) ao ex-CFO do BES.

Entre outras coisas, o BdP acusa Morais Pires de ter “concebido, dado instruções para a implementação e acompanhado a execução de um plano”, com o aval de Ricardo Salgado, para retirar do banco, entre 2009 e 2014, três mil milhões de euros. Num das acções movidas pelo BdP ao antigo gestor do banco, em Abril deste ano o Tribunal do Comércio de Santarém reduziu-lhe a multa que lhe tinha sido aplicada pelo supervisor de 600 mil euros para 350. O prazo de inibição do exercício de cargos no sector financeiro passou de três para um ano. Por seu lado, em Janeiro deste ano o MP apontava Morais Pires como um dos principais arguidos do caso BES, designadamente pela venda irregular de centenas de milhões de títulos de dívida do GES a clientes do BES, entre 2011 e 2014, e pagamentos ocultos da Espírito Santo Enterprise, que funcionava como saco azul do grupo para pagamentos não-declarados.

A Mentira chegará às bancas nesta terça-feira.

Pré-publicação:

Em comunicação, o primeiro impacto é sempre o que marca a direcção das notícias, que determina a agenda mediática, a culpa ou inocência, o carácter, ou a falta dele, das pessoas apanhadas na rede. E contra esse primeiro impacto é difícil de resistir, muito me­nos contrariar.

Vivemos tempos em que a percepção se torna realidade, mesmo que a realidade nada tenha que ver com a percepção criada. O frene­sim mediático assim o determina. Já o sabia, tive oportunidade de o constatar mais uma vez.

Havia uma guerra de poder e parte dessa guerra era comunica­cional. As armas usadas para derrubar [Ricardo] Salgado seriam também usadas para travar [Amílcar] Morais Pires. A hipótese de este substituir Salgado não era novidade, mas os desenvolvimentos recentes precipitavam a sucessão.

A sede do BES era, para mim, apenas um edifício visto repeti­damente a cada passagem pela Avenida da Liberdade ou, do seu in­terior, em imagens televisivas ou fotografias de imprensa. Nada mais do que isso.

Por isso, naquela manhã, no dia 23 de Junho de 2014, à entra­da do estacionamento e enquanto esperava autorização para entrar, tinha imagens difusas de uma sala que repetidamente vira em tele­visão quando o banco apresentava os seus resultados semestrais ou anuais.

Quando finalmente recebi autorização para prosseguir a marcha com a indicação do lugar que me estava destinado, não pude deixar de sentir a sensação de estar a entrar no porão de um navio apanha­do no meio de um forte temporal. As notícias sucediam-se a um ritmo frenético, os danos reputacionais eram enormes.

À minha espera, no 15.º andar do edifício, estava o adminis­trador financeiro, indigitado há menos de 72 horas como sucessor de Ricardo Salgado na presidência da Comissão Executiva, Amílcar Morais Pires.

Ao contrário da simplicidade exterior do edifício, dos logos do banco e de um rendilhado metálico que o rodeava, o interior do an­dar do Conselho de Administração reflectia o poder autocrático da família Espírito Santo, numa decoração conservadora, onde predo­minavam os móveis clássicos em madeira, com pouca luminosida­de. Os corredores eram estreitos e as paredes municiadas por um sem-número de quadros de pintores de referência, parte de uma das mais importantes colecções de arte em Portugal, e que eram a ex­cepção a um ambiente quase todo monocromático.

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Amílcar Morais Pires Miguel Manso

Não conhecia Amílcar Morais Pires e, se pudesse ter escolhido um timing para o conhecer, seguramente teria escolhido outro, mas também é verdade que foram as circunstâncias que me levaram na­quele dia ao coração do maior banco privado português.

Reunimos num gabinete usado indistintamente por quem dele pudesse necessitar. Morais Pires, tal como os restantes administrado­res funcionavam em open space na sala da Comissão Executiva.

Já no interior do gabinete despido de qualquer cunho pessoal, fui surpreendido pela calma e ponderação do meu interlocutor. As notí­cias fustigavam o banco com a mesma força que o atingiam a ele. Se­reno, de gestos pausados, não parecia ter pressa apesar de todo o tur­bilhão que se vivia em redor.

Só em Março de 2004, Morais Pires tinha ganho o direito a ocupar um lugar no andar da administração, dezoito anos depois de entrar no BESCL (Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa), ao tempo nacionalizado, como técnico de nível 8, no apoio ao Departa­mento Financeiro.

Doutores e patrões

Foram necessárias quase duas décadas para Morais Pires “dei­xar de ser o tipo que vinha do BESCL para ser um entre iguais”. Ven­cido o estigma, o até então administrador financeiro foi responsável por inúmeras operações que consolidaram a notoriedade e a robus­tez do banco. Falou-me do percurso, da visão e dos problemas que sabia que havia, mas falou-me também das soluções e da forma como ponde­rava sair da tempestade. Houve uma frase que fixei, porque respon­dia a uma das críticas que mais se ouviam por esses dias: “Sou leal a uma instituição a quem dei tudo nestes vinte e oito anos. A mais ninguém.”

Já com a indigitação ameaçada por Carlos Costa, vários jor­nalistas, numa rara convergência de opiniões, escreviam que “Sal­gado ficaria a mandar por interposta pessoa”, questionando desta forma a autonomia e independência do sucessor indigitado. Havia uma concertação tão grande que era difícil de acreditar em coinci­dências.

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A Mentira – A Culpa, as Manobras e as Traições de Ricardo Salgado, de João Gabriel, edição Prime Books, 2018

Morais Pires notava-se magoado com a crítica, principalmente porque, como me disse nessa manhã, assumia a história “indepen­dentemente de não ter participado em todos os capítulos que foram escritos”.

Parecia determinado em lutar, mas sabia que seria uma travessia difícil. Por um lado, as práticas ilegais no GES tinham posto o ban­co numa situação de enorme fragilidade, por outro, havia resistências da oposição interna com assento na administração e do próprio supervisor.

Não era um Espírito Santo, não tinha no sangue a linhagem da família e, por isso, levou tantos anos a chegar àquele 15.º piso. A sua ascensão no banco não assentou no apelido ou na origem dos pais, mas naquilo que tinha demonstrado enquanto gestor.

Os funcionários da cantina sabiam distinguir perfeitamente a “li­nhagem” dos seus clientes. Morais Pires e todos os restantes colegas de administração eram “doutores”. Salgado e restante família eram os “patrões”. Tão simples quanto isso.

Frio na análise e objectivo em relação ao que queria para o ban­co, Morais Pires impôs, na sua chegada à administração, dez anos an­tes, a necessidade de planear a médio e longo prazo e foi por isso que o BES resistiu sem problemas à crise do subprime em 2008.

Quando chegou à administração, definiu como prioridade o re­forço da base de capital do BES, que até aí tinha crescido de forma orgânica debilitando a sua liquidez, abrindo o capital aos investidores internacionais, o que reforçaria a capacidade de expansão e um novo posicionamento.

Objectivos alcançados com sucesso e que lhe permitiram, a par­tir daí, discutir a orientação estratégica do banco, ganhando notorie­dade interna e externa. Partilhava ideias e objectivos comuns com Salgado, com a mesma frequência que dele discordava. E assim che­gamos a 2014.

A tempestade à volta do BES parecia não ter fim, mas a verdade é que o discurso de Amílcar Morais Pires denotava uma serenidade que contrastava com o ambiente tenso e frenético desses dias.

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Nunca tivera ambições de chegar a presidente executivo, era algo conjuntural. Nunca o tinha querido, sentia-se bem na pele que até aí tinha vestido, mas também não recusaria a indigitação.

(...)

A visão e o plano do até então administrador financeiro do BES eram claros. Já adivinhava as possíveis reservas que o regulador levan­taria. Não em função das suas capacidades, mas nas palavras de Mo­rais Pires “em relação ao que querem fazer com o banco”. A frase ga­nharia o seu real significado semanas mais tarde.

“Com uma solução interna, conseguimos sair daqui, vamos le­var tempo, mas temos soluções e bases que vão permitir recuperar a solidez do banco, mas, se o regulador optar por uma solução externa, tenho muitas dúvidas de que o BES sobreviva, porque quem aqui chegar de novo, primeiro que perceba onde chegou e consiga estar a par de todos os dossiês e da sua complexidade, terá perdido o tempo necessário para implementar qualquer estratégia”, conti­nuou Morais Pires.

Já havia um plano de contingência para a autonomização financeira e reforço de solvabilidade do GES em relação ao BES, sim­plificando o modelo organizativo. Na cabeça de Morais Pires, estava tudo muito claro, num processo que permitiria ao banco evitar o precipício.

O primeiro desafio passava por assegurar a saída dos membros da família Espírito Santo sem afectar o goodwill que o apelido representava, nomeadamente a nível internacional. Tinha participado em vários aumentos de capital e sabia exactamente a necessidade de preservar a marca da instituição, mesmo que quem desse o nome ao ban­co já não tivesse nada que ver com a operação.

Depois, sabia que a situação financeira em que a família se encontrava era preocupante, que o GES precisava de apoio especializa­do de entidades internacionais credíveis e que da parte do BES tam­bém seria necessário encontrar soluções, “provavelmente com recurso a entidades externas para lidar e negociar com o GES todas as ques­tões que nos ligam”. Estava convencido de que dessa forma consegui­ria proteger os interesses de todos os stakeholders do banco.

Morais Pires falava baixo, revelava conhecimento profundo das áreas que supervisionava e tinha a exacta noção dos trabalhos a fazer a partir do momento em que a Assembleia Geral o confirmasse como Chief Executive Officer (CEO) do BES. Tinha um caderno de encargos bem definido.

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Miguel Manso

O segundo desafio, assumido naquela conversa, passava por “re­construir a base de accionistas de referência”, de forma que estes as­segurassem a estabilidade necessária para implementar um programa de desenvolvimento estratégico de longo prazo.

(...)

Mais do que o conhecimento evidenciado e resultante de vinte e oito anos de casa e um rumo de acção definido, havia convicção nas palavras de Morais Pires.

Perguntei-lhe se o facto de o seu mandato ser de apenas dois anos não seria limitador no desenvolvimento da sua estratégia. “Eu quero assim”, respondeu, “a minha experiência diz-me que, em qual­quer turnaround, o esforço exigido a uma organização, aos seus melho­res quadros, aos seus trabalhadores em geral, é altamente desgastante e, por isso, não se pode prolongar no tempo. Depois, porque dois anos é tempo suficiente para avaliarem a minha capacidade para o cargo e comprovarem as razões porque cheguei até aqui”.

Não havia receio do desafio, mas havia receio de não o poder as­sumir. Disse-lhe que era importante reunir-se com os principais edito­res económicos e transmitir-lhes o que me acabara de expor. O tem­po era crítico e a percepção pública era a de que o BES era cada vez mais um barco descontrolado, quando não era. O descontrolo estava acima no GES, e embora tivesse efeitos de contaminação não eram irrecuperáveis e muito menos suficientes para condenar o banco.

“O problema”, disse Morais Pires, é que o “BdP está a agir em função do GES e não do BES”. O tempo dar-lhe-ia razão, mas para já era necessário baixar o nível de alarme, era necessário falar, dar-se a conhecer, mostrar-se ao público e demonstrar que havia soluções.

“Nunca falei com um jornalista e não sei se o devo fazer”, repli­cou Morais Pires. Foi a minha primeira surpresa. O administrador fi­nanceiro do BES e recém-indigitado para substituir Salgado nunca tivera nenhum contacto com jornalistas. “Subi à conta do meu tra­balho, não de lóbis ou favores dos média”, continuou. Só mais tarde perceberia o alcance desta afirmação. Contrapus que, na situação em que nos encontrávamos, não havia grandes alternativas, era necessá­rio comunicar e tentar baixar os níveis de alarme. Em comunicação, temos de estar disponíveis para assumir alguns riscos e, naquele caso, estava convencido de que o maior risco era não assumir nenhum.

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Carlos Costa, governador do Banco de Portugal Enric Vives-Rubio

Morais Pires era um tecnocrata, muito bom por sinal, mas tinha descurado dois aspectos. A gestão das sensibilidades internas ao ní­vel da administração, por um lado, e a absoluta ausência de um plano pessoal a nível da comunicação, por outro.

Tinha uma visão anglo-saxónica da banca, mas em Portugal, e apreendeu isso de uma forma tremendamente cruel, há outros mean­dros para além da tecnocracia e da competência que ditam o destino das pessoas. Estava prestes a sabê-lo.

(...)

Convenci-o a deixar-me organizar alguns encontros com jornalistas, mas não sem antes registar um reparo feito num tom muito céptico. “Durante anos”, disse Morais Pires, “ouvi de gente crescida e res­ponsável nesta casa, mas também do BESI”, a maneira como falavam “dos aliados da imprensa, de como os usavam e se socorriam deles”. Falou-me de alguns nomes, todos generais nos seus meios, mas, por razões óbvias, e até haver prova factual e suficientemente sólida, be­neficiarão, da minha parte, de total reserva e presunção de inocência.

Apesar de indigitado por Ricardo Salgado, Morais Pires sentia-se magoado. “O meu dia-a-dia, a minha preocupação, o meu esforço sempre foi este banco. Estão aqui vinte e oito anos de trabalho e creio que dei provas de dedicação suficientes para não ter sido traído em relação a algumas situações que nos empurraram até aqui”, desa­bafou Morais Pires.

Era a primeira vez que estava com ele e, embora intuísse o alvo, não me senti com o à-vontade suficiente para lhe perguntar directa­mente. Nem foi necessário, porque, de seguida, mencionou que tinha sido uma completa surpresa, “uma má surpresa” nas suas palavras, “quando soube, em princípio de Dezembro, do passivo oculto” que tinha precipitado toda aquela situação.

De facto, foi a 26 de Novembro de 2013, numa reunião de tra­balho do chamado “grupo da sala do piso 14”, que Ricardo Salga­do comunicou que havia uma subavaliação material do passivo da Es­pírito Santo International (ESI). A equipa, na sequência da reunião, deu conta disso ao BdP.

O pior mesmo é que só meses mais tarde, já durante o primeiro semestre de 2014, surgiu a notícia de que a subavaliação resultava de uma decisão deliberada de ocultação do passivo da ESI, o que teve, naturalmente, impactos na reputação do BES.

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Ricardo Salgado

A ocultação de dívida feita de forma negligente ou dolosa só po­dia ser do conhecimento de quem tinha acesso ao perímetro total do GES. Só nove pessoas estavam nessas circunstâncias: Ricardo Salga­do, José Manuel Espírito Santo, Ricardo Abecassis Espírito Santo, Manuel Fernando Espírito Santo, Pedro Mosqueira do Amaral, José Maria Ricciardi, António Ricciardi, Mário Mosqueira do Amaral e Fernando Espírito Santo. Os administradores do BES, fora da famí­lia, não sabiam. Não tinham forma de o saber.

O instinto de sobrevivência de Salgado ditava a direcção que to­mava em cada momento. E se Morais Pires se sentira traído pela ac­ção de Salgado nas contas da ESI, poucos meses depois voltaria, pela segunda e última vez, a ser traído por este. Já lá iremos. (...)

A “traição”

De facto, Morais Pires tinha conseguido uma solução para o problema do BESA, dando estabilidade e um rumo a uma filial que estava, antes da sua chegada, em completa roda livre. Mais, o BdP estivera sempre a par de todas as diligências feitas em Luanda. Invocar o BESA como razão para não avalizar a solução Morais Pires é penalizar o bombeiro que foi chamado a apagar o incêndio quando este já ardia com violência. À falta de razões objectivas, qualquer pretexto era válido.

Carlos Costa apostava numa nomeação política, mas não o podia assumir. Valeu-lhe o instinto de sobrevivência de Salgado, que foi também, naquele momento, o seu maior erro estratégico. Salgado aceitou deixar cair Morais Pires, submetendo-se à vontade discricionária do regulador.

Pouco passava das 20 horas quando, no dia 1 de Julho, recebi um telefonema de Celso Filipe, ao tempo subdirector do Jornal de Negócios. “Tenho a informação de que Ricardo Salgado já propôs outro nome em substituição de Amílcar Morais Pires para a presidência”, disse, perguntando-me se eu podia confirmar. Não podia porque, na verdade, a informação apanhou-me de surpresa. Respondi que ia tentar saber. Mal o telefonema terminou, liguei a Morais Pires. Quando disse ao que vinha, houve uma longa pausa e, finalmente, um doloroso “não me surpreende, falamos amanhã”.

E o amanhã levou Ricardo Salgado ao BdP para entregar a nova composição do Conselho de Administração do BES, em que constavam os nomes de Vítor Bento para presidente do Conselho Executivo, e de José Honório, vetado em Luanda por Morais Pires, para vice-presidente, e José Moreira Rato para administrador financeiro.

Tinham passado três dias após o telefonema de Celso Filipe. Estávamos a 4 de Julho de 2014.

Depois de sair do BdP, Salgado reuniu com Morais Pires para comunicar-lhe a decisão, pedindo-lhe que ficasse com o pelouro internacional, fundamentalmente para concluir o processo de turnaround do BES Angola.

O facto de não ter sido apanhado de surpresa não diminuiu a indignação de Morais Pires, que tinha sabido do volte-face não pelo meu telefonema, soube-o depois. Dois dias antes, Daniel Proença de Carvalho já o tinha informado das manobras de bastidores e do acordo alcançado entre o governador e Salgado. “Os meus inimigos derrotaram-me, mas o dr. Ricardo traiu-me!”, atirou Morais Pires. “Vocês, o dr. Ricardo e o governador, vão acabar por dar cabo do banco!”, prosseguiu, desiludido e agastado perante o que Salgado lhe fizera. Já não via nele a autoridade ou a perspicácia de outros tempos, mas alguém derrotado, desorientado e diminuído perante a vontade do governador. Morais Pires não sairia do gabinete de Salgado sem lhe comunicar que ia resignar aos órgãos sociais do BES e demitir-se do banco, terminando aí um vínculo de vinte e oito anos. Estava consumada a segunda, mas também a última traição de Salgado.

Salgado não tinha preparado a sua sucessão, uma vez que, em poucos dias, por pressão do regulador, se consente fazer um flick-flack como o que fez, é porque tinha perdido não apenas a autoridade, mas a argúcia e a visão que, em outros tempos, todos lhe reconheciam.

Salgado capitulou perante o governador, e isso representou o princípio do fim.

Continuemos, porém, por enquanto, nos dias — poucos — em que Amílcar Morais Pires, apesar de #congelado”, ainda era a solução do BES.

Já vimos que foi a custo que o convenci a encontrar-se com alguns jornalistas. Não estava à vontade, não era o seu território, mas a verdade é que, à medida que a conversa começava a fluir, mostrava a razão porque fazia parte da solução.

Num desses encontros, no primeiro andar do Hotel Dom Pedro, junto às Amoreiras, com Helena Garrido, repetiu quase ponto por ponto tudo o que anteriormente me tinha transmitido. A sala era ampla e tinha uma televisão ao fundo, por essa altura jogava-se o mundial de futebol do Brasil. A televisão estava ligada, sem som. Tal como a maior competição do mundo de futebol que tinha data anunciada para terminar, o BES também tinha. A diferença é que o fim do mundial estava previsto e a data era conhecida, a do BES ainda não.

A Helena tomava notas, fazia questões. Morais Pires foi exactamente igual ao que eu conhecera dias antes, espontâneo, genuíno, ponderado. Nunca disse que era fácil, assumiu as dificuldades, mas apontou o caminho para ultrapassar a crise. António Costa, ao tempo director do Diário Económico, Ricardo Costa e Pedro Santos Guerreiro, do Expresso, fecharam o circuito de jornalistas com quem o administrador financeiro se encontrou partilhando a sua visão em relação ao presente, mas sobretudo ao futuro do banco.

Pela primeira vez em vinte e oito anos, Morais Pires tinha falado com jornalistas sobre o BES, mas também sobre ele, cedendo ao meu pedido. Mas há momentos em que falar ou estar calado é igual porque não se consegue contrariar o caudal provocado por uma tempestade. Como viria a perceber, poucos dias depois, falar ou estar calado teria sido igual naquele tempo e nos anos seguintes. A percepção que o regulador ajudou a criar era tão forte que era impossível contrariar. (...)

“Atirado contra uma rocha”

A 3 de Julho de 2014, a Reuters noticiava que o BdP não aceita­va o nome de Amílcar Morais Pires para presidente da Comissão Exe­cutiva. Tinham passado treze dias sobre a sua indigitação. O super­visor não assumiu a notícia, mas bastou não a ter desmentido para o mercado a interpretar como uma confirmação. Estranha forma de o regulador comunicar.

O Espírito Santo mais graduado da família submeteu-se à von­tade do regulador, e Vítor Bento foi o nome que o BdP aceitou como novo líder do BES.

Quando Salgado chamou Morais Pires para lhe dizer o que este já sabia, o ainda CFO do BES, na mágoa e na revolta do momento, informou-o de que iria sair, que já não fazia sentido continuar. E disse-lhe, como atrás vimos, bastante mais, num tom alterado e firme. Já todos nós passámos por momentos semelhantes, pelo menos na frustração e na intensidade. Para Morais Pires, o líder tinha sucumbido à pressão do regulador e entregue a direcção do banco a quem não tinha qualificações para o salvar.

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Paulo Pimenta

Salgado alinhou na estratégia do BdP, não por convicção, mas por puro oportunismo de quem ainda acreditava que assim consegui­ria salvar o banco e salvar-se a ele. Estava enganado!

A reunião foi breve. Salgado estava tão perdido e desorientado que admitiu o que nunca antes teria admitido a quaisquer dos seus su­bordinados. Um administrador confrontá-lo e gritar-lhe a revolta de uma traição e o prognóstico de um desastre.

Mesmo assim, não perdeu a compostura e a fleuma de sempre, tinha essa capacidade. Pediu apenas a Morais Pires para não se preci­pitar, que o banco precisava dele, “pelo menos ouça o Vítor Bento”, rematou Salgado já com o administrador financeiro a encaminhar-se para a porta.

Morais Pires, que duas semanas antes tinha sido indicado para o papel principal, não estava disponível para representar um papel se­cundário, principalmente porque não acreditava na solução impos­ta pelo regulador e suspeitava que a visão estratégica que tinha em relação ao futuro do banco era divergente da nova liderança. E era.

Vivia-se um período de transição, Vítor Bento ainda não tinha assumido os comandos, mas já tinha sido indigitado e contava com um espaço na sede do banco. Ocupava um gabinete no 8.º andar. Já não havia incerteza quanto à governação do banco, a incerteza agora residia na capacidade da nova equipa.

O avião tinha perdido demasiada altura em pouco tempo, e os ventos continuavam a fustigá-lo. Era urgente estabilizar o avião e co­meçar a recuperar a altitude perdida.

Quando Vítor Bento foi anunciado como sucessor de Salgado, os jornais apressaram-se a noticiar que, dada a credibilidade da pes­soa e o facto de ser uma solução de ruptura, os mercados tinham rea­gido bem.

Na verdade, os mercados não reagiram ao nome, reagiram ao facto de a incerteza quanto ao governance do BES ter finalmente acaba­do. Mas a boa reacção dos mercados foi de curtíssima duração. Pou­cas horas. Ao fim do dia em que o nome de Vítor Bento foi anuncia­do as acções já voltavam a cair, e, dias mais tarde, quando foi coopta­do não teve qualquer efeito positivo.

Dois dias depois da conversa — a última — com Salgado, Morais Pires é chamado ao 8.º andar. Vítor Bento queria falar-lhe. A aborda­gem foi cordial. Salgado já tinha informado o novo CEO das inten­ções de Morais Pires, mas mesmo assim Vítor Bento tinha intenções de insistir na sua permanência. E assim fez. “Sei que teve um papel muito importante em relação ao turnaround do BESA e à garantia soberana de Angola. Gostava que conti­nuasse nesse contexto”, deu conta o novo presidente indigitado. Mo­rais Pires disse-lhe que não se sentia confortável. A conversa foi fran­ca, mas curta.

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Vítor Bento Enric Vives-Rubio

Responsável por quatro aumentos de capital, com um know-how invulgar em relação aos investidores internacionais, pediam-lhe para ficar e tratar apenas do turnaround do BESA. Não estava surpreendido, afinal, depois do abalo, esse sim violento, que tinha sofrido nos últi­mos dias, já estava preparado para tudo. Mas a sua intenção era mes­mo deixar o BES.

Vítor Bento pede-lhe para pensar melhor, “pondere e diga-me”. O ainda CFO foi educado, acenou e saiu!

(...)

A incerteza alimentada de forma desastrada pelo regulador du­rou quinze dias e gerou uma corrida aos depósitos e uma desvaloriza­ção accionista nunca antes vista.

No domingo, dia 13 de Julho, o BdP determinou a convocação de uma reunião extraordinária do Conselho de Administração, para acelerar a entrada em funções da nova equipa dirigente. A reunião, que terminou às 21 horas, serviu para cooptar para a administração Vítor Bento, João Moreira Rato e José Honório, que assim assumiam funções efectivas num domingo ao princípio da noi­te. Invulgar, mas necessário, na tentativa de travar a curva descenden­te em que o BES se encontrava.

Morais Pires não tinha estado na reunião. Já se sentia um corpo estranho naquela engrenagem e não acreditava na solução. Ainda nessa noite, Vítor Bento telefona-lhe. Comunica-lhe que não contava com ele. Afinal a vontade de que tinha há um par de dias tinha desaparecido. Foi frontal e correcto no trato, resta a dúvida se era mesmo essa a sua vontade, ou se a vontade agora manifestada era de outro.

É que logo de seguida deixou escapar uma observação que não sendo surpreendente era deselegante, não para Vítor Bento, mas para o governador: “O BdP não gosta de si”! A afirmação dava, ao mesmo tempo, outro sinal. O novo líder do BES afinal já não estava na Avenida da Liberdade, estava na sede do BdP.

(...)

Pouco mais de doze horas depois, a meio da manhã de segunda­-feira, voltaram a encontrar-se, Vítor Bento já tinha subido ao 15.º an­dar. Foi uma conversa de despedida, curta, elegante, mas o ambiente era pesado. Seria difícil ser de outra forma. Vítor Bento perguntou a Morais Pires se este estaria disponível, mesmo já fora do banco, a aju­dar se fosse necessário no dossiê do BESA. A resposta foi positiva. Já não havia muito mais a dizer, mas Bento não deixou sair o demissio­nário administrador financeiro sem fazer uma observação que reflec­tia o que Morais Pires tinha vivido nos últimos dias: “Você foi atirado contra uma rocha!”

E assim terminaram os vinte e oito anos de serviço de Morais Pires no BES, e os acontecimentos que se seguiram já não contaram com a sua participação.

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