Conhecimento é poder: a ONUSIDA, o Relatório do INSA e o VIH em Portugal

Nada alterou o facto de Portugal manter todas as condições para alcançar a meta dos três 90 em 2020.

1. No último relatório da ONUSIDA sobre a situação mundial da infeção por VIH (Knowledge is power) aborda-se a situação de cada país, relativamente aos objetivos 90-90-90. Para o leitor menos familiarizado com o tema, deve esclarecer-se que estes objetivos significam que, em 2020, do total de pessoas que se estima existirem no país infetadas por VIH, 90% deverão estar diagnosticadas (primeiro 90), que dessas pessoas diagnosticadas, 90% deverão já estar em tratamento (segundo 90) e que, das pessoas em tratamento, o vírus não será detetado no sangue em 90% delas (terceiro 90). Atingir este objectivo em 2020, em cada país, é crucial para alimentar a esperança de eliminarmos a infeção por VIH como ameaça de saúde pública mundial, em 2030.

Nesse relatório, referindo-se aos dados nacionais de 2016, afirma-se que Portugal apenas conseguiu alcançar o primeiro 90. A notícia motivou alguma agitação, originou artigos sobre o tema e a directora do Programa Nacional para a Infeção por VIH/sida e Tuberculose (PNVIH) foi questionada porque, meses antes, as autoridades de saúde tinham anunciado formalmente (com entusiasmo desproporcionado e algum risco) que Portugal já tinha alcançado duas das três metas 90-90-90 previstas para 2020 (sendo que uma delas, curiosamente, já tinha sido alcançada dois anos antes).

Em que divergem, então, as conclusões apresentadas pela ONUSIDA da informação difundida pelas autoridades nacionais? No essencial, trata-se de apresentar os resultados de duas formas diferentes. O PNVIH considerou cada 90 referindo-o em relação ao indicador anterior, tal como descrevi acima. A ONUSIDA apresentou a informação (disponibilizada pelos próprios países) de outra forma: os valores referentes a cada 90 foram calculados sempre em relação ao número de pessoas que se estima existirem infetadas por VIH (indicador inicial) e não em relação ao indicador precedente. Desta forma, se o cumprimento do primeiro 90 é idêntico para ambas as organizações, já o cumprimento integral do segundo 90, para a ONUSIDA, significa que 81% das pessoas infetadas por VIH se encontram em tratamento (90%x90%) e o terceiro 90 que 73% das pessoas infetadas por VIH apresentam o vírus indetetável no sangue (90%x90%x90%).

Assim, o PNVIH afirmou que Portugal, em relação aos três 90, tinha alcançado 91,7-86,8-90,3. mas, se os apresentasse como a ONUSIDA fez, anunciaria 91,7-79,6-71,9, um valor muito próximo do valor anunciado pela ONUSIDA (91-80-71). E se, pelo contrário, a ONUSIDA tivesse utilizado o método de apresentação do PNVIH, os valores apresentados seriam 91-87,9-88,8. Com esta explicação percebe-se que ambos os modos de apresentação são válidos, apresentam resultados semelhantes e apenas devem ser explicados.

A maior vantagem do modelo de apresentação seguido pela ONUSIDA é acentuar a importância do ponto de vista epidemiológico do objetivo final a atingir: 73% das pessoas infetadas não apresentarem vírus detetável no sangue, ou seja, não apresentarem capacidade de transmissão da infeção. E, qualquer que seja o modelo considerado, em 2016 ainda não tínhamos conseguido alcançar este objetivo.

Contudo, o modelo de apresentação da ONUSIDA também apresenta uma desvantagem: não transmite de forma tão evidente as insuficiências existentes em cada um dos indicadores intermédios (que a análise individualizada dos três 90 evidencia), de forma a podermos estabelecer as áreas prioritárias de atuação tendo em vista alcançar o objectivo final (em 2020, 73% das pessoas infetadas não apresentarem vírus detetável).

Finalmente, é realmente importante a diferença entre os valores apresentados pelo PNVIH e pela ONUSIDA? Francamente, essa discrepância parece-me irrelevante. É verdade que, pelos dados da ONUSIDA, Portugal ainda não alcançou o terceiro 90 (88,8 em vez de 90,3) como foi proclamado mas, em 2016, isto só vale pelo seu simbolismo, como bandeira ou fator motivacional ou como tema de propaganda capaz de colher atenção mediática. Objetivamente, nada alterou o facto de Portugal manter todas as condições para alcançar a meta dos três 90, em 2020. Independentemente de, em 2016, 90,3% ou 88,8% das pessoas em tratamento manterem o vírus indetetável (...ou, se preferirem, 71,.9% ou 71% das pessoas infetadas).

2. Também esta semana foi conhecido o relatório Infeção VIH e sida: a situação em Portugal a 31 de dezembro de 2017. Toda a comunicação social fez, e bem, eco de alguns desses dados sublinhando aspetos essenciais cuja discussão é cada vez mais urgente.

É nesse campo que me coloco, reconhecendo que existe um esforço para tornar a informação disponibilizada mais completa e uma ferramenta mais útil. Isso permite afirmar que encaramos hoje alguns desafios que podem condicionar a evolução da infeção por VIH em Portugal: 1) a existência de lacunas no conhecimento, limitadoras dos objetivos que Portugal tem assumido, mesmo quando existem as ferramentas indispensáveis à superação dessas lacunas; 2) a dificuldade em desenvolver uma análise mais profunda da situação epidemiológica em Portugal e, consequentemente, apresentar uma estratégia mais consistente e orientada nalgumas áreas; e 3) a necessidade de transformar informação em conhecimento e este em acção orientada para um objectivo estratégico.

Recorrendo a elementos do citado relatório, eis alguns exemplos que ilustram esses desafios e alguns contributos para a sua discussão:

Portugal é o 2.º país europeu com maior número de casos de morte associada a sida. Se já sabemos, pelo próprio relatório, que 20% dos casos ocorreram nos 12 meses subsequentes ao diagnóstico, falta avaliar quem são estes casos. Com origem em Portugal ou provenientes do estrangeiro, integrando populações mais vulneráveis ou não? E quais as causas do óbito? E os restantes 80%? São pessoas em seguimento regular ou com falta de adesão ao seguimento e tratamento? Com diagnóstico tardio ou recente? Só a análise mais fina destes e doutros parâmetros permitirá avaliar se este é um indicador mais ou menos preocupante e assumir medidas efetivas para alterar a situação.

Em Portugal, 51% dos novos diagnósticos foram tardios. Então, qualquer unidade de saúde numa área em que a taxa de prevalência de infeção seja superior a um limite prédefinido deve ser responsável por promover a realização regular do diagnóstico de infeção por VIH aos seus utentes. Conhecemos essa taxa, por região, concelho ou localidade? E também não devemos avançar rapidamente para a implementação estruturada do self-testing, uma medida com impacto potencial bem maior que a realização de testes rápidos nas farmácias comunitárias?

Em 2017, 25% dos novos diagnósticos ocorreram em pessoas acima de 50 anos e, nos novos casos de transmissão por via heterossexual, 40% têm mais de 50 anos. Então, para além de medidas de prevenção adaptadas a este grupo etário, devemos incentivar decisivamente a realização dos testes para diagnóstico de VIH, nomeadamente através dos cuidados de saúde primários, onde esta população recorre com maior frequência, dando o devido relevo a este ato clínico.

Cerca de 1/3 do total de novos casos diagnosticados em 2017 ocorreu em população imigrante. Então, porque não disponibilizar, à entrada em Portugal, a todos os migrantes uma avaliação geral de saúde, incluindo as principais doenças transmissíveis até como forma inicial de integração dessas pessoas, contribuindo para o diagnóstico precoce e a diminuição do risco de transmissão de infeção nas suas comunidades?

O conhecimento é, na verdade, o ponto de partida (necessário mas não suficiente), para a transformação da realidade.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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