A vez de AMLO: México troca de Presidente e de regime
López Obrador toma posse como Presidente mexicano, rompendo com décadas de governos de direita e com a onda conservadora e liberal que que está a varrer a América Latina.
Ao fim de cinco meses de espera, o México vai pôr finalmente em marcha a revolução prometida com a eleição, em Julho, de Andrés Manuel López Obrador para o mais alto cargo político do país, com mais de 30 milhões de votos. AMLO (a sigla pela qual é conhecido), toma posse neste sábado como Presidente dos Estados Unidos Mexicanos (o nome oficial do país) e inaugura um capítulo inédito na história política mexicana, que não teve um governo de esquerda em quase 90 anos.
O líder do Movimento Regeneração Nacional (Morena), que conquistou as duas câmaras do Congresso nas eleições que o aclamaram Presidente e que tem, por isso, uma ampla margem de manobra para pôr em prática o seu programa de ruptura com status quo, sucede a Enrique Peña Nieto, do Partido Revolucionário Institucional (PRI, centro-direita) – que esteve no poder entre os anos 30 do século passado e a viragem para o novo milénio, com a eleição do Presidente Vincent Fox. Só então houve uma alternância com o Partido de Acção Nacional (PAN, direita), mas o PRI voltou ao poder em 2012.
Num país com uma fortíssima tradição política de direita, numa América Latina também ela tombada para esse lado do espectro político – com partidos e políticos conservadores e ultraliberais à frente dos governos brasileiro, argentino, colombiano e chileno, entre outros – e tendo como vizinho o proteccionismo revisionista dos Estados Unidos de Donald Trump, o triunfo de AMLO, com 53% dos votos, foi uma autêntica extravagância.
Aos 65 anos, este carismático veterano da política mexicana, nascido no PRI, com passagem pelo Partido da Revolução Democrática (PRD, centro-esquerda), ex-presidente da câmara da Cidade do México, e candidato duas vezes derrotado nas presidenciais (2006 e 2012), assume-se hoje como representante de uma extrema-esquerda adormecida, que despertou em Julho para acabar com o consulado do PRI e do PAN.
Promovendo a imagem do político do povo e das classes desfavorecidas, de paladino da justiça social e através de um discurso com tiques de populismo, nacionalismo e muito eleitoralismo, López Obrador apontou baterias à “máfia do poder”, uma espécie de mão invisível que, de acordo com dirigente, controlou o poder político, os mercados, os media e as urnas durante anos a fio. “A sua teologia foi a conspiração”, escreveu em vésperas das eleições, no El País, o professor mexicano de Ciência Política Jesús Silva-Herzog Márquez.
AMLO terá pela frente uma missão hercúlea e um verdadeiro teste à sua capacidade de cumprir promessas: satisfazer as expectativas altíssimas de um povo cansado do establishment político mexicano e da sua incapacidade para combater a violência, a pobreza, a desigualdade e a corrupção generalizadas. E, claro, atascado no flagelo do narcotráfico – a guerra às drogas fez mais de 200 mil mortos e cerca de 30 mil desaparecidos em pouco mais de dez anos.
Aprovação ou cansaço?
As expectativas não se dissiparam com o passar dos meses. Segundo uma sondagem publicada no início da semana pelo El Financiero, a taxa de aprovação do Presidente eleito é de 66%, com apenas 18% dos inquiridos a reprovarem a sua actuação nos últimos cinco meses. O mesmo estudo conclui ainda que 70% dos mexicanos acredita que, durante os próximos seis anos de Governo de López Obrador, a economia e os níveis de pobreza vão melhorar.
Direitos humanos (69%), liberdade de expressão (68%), segurança (67%), justiça (66%), democracia (66%) e combate à corrupção (63%) são igualmente referidas, na sondagem, como áreas nas quais a população acredita que haverá melhorias com AMLO.
No outro lado da barricada, o Presidente cessante obtém uns tristonhos 26% de aprovação, que colocam em evidência, mais do que a sua própria figura, o desprestígio que tomou conta do PRI nos últimos anos, devido ao fraco desempenho económico do país e aos casos de corrupção e de desvio de fundos públicos revelados em catadupa, envolvendo figuras de topo do histórico partido.
Não faltam, por isso, analistas e investigadores políticos a defender que, mais do que um encanto por AMLO, no México há um desencanto pelo status quo e pelo PRI. E foi ele que ajudou a catapultar o candidato da extrema-esquerda.
“O triunfo de AMLO nasceu de um liberalismo condescendente e medíocre que andava há décadas a pedir paciência às pessoas para apresentar resultados”, argumenta Viridiana Ríos, académica e especialista em Políticas Públicas, num artigo de opinião publicado no El País. “Foi a falta de visão destes liberais que os impediu de criar plataformas políticas para questionar os resultados económicos magros do país e perceber a raiz do descontentamento. Não fizeram mais do que rotular os seguidores de Obrador de ‘zangados’. E isso deu ainda mais poder a AMLO”.
Prioridades e dúvidas
A célebre frase do general-ditador Porfirio Diaz – “Pobre México, tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos” – continua a soar bastante actual, pelo que prioridade de política externa do novo Presidente será encontrar soluções para lidar com as vagas de migrantes oriundos da América Central, que passam pelo México antes de chegar aos EUA.
O próximo ministro dos Negócios Estrangeiros, Marcelo Ebrard, já assumiu que vai apresentar muito brevemente a Washington uma proposta que interessa aos dois países. Em cima da mesa estará uma espécie de Plano Marshall para os países centro-americanos, destinado a apoiar e promover o desenvolvimento económico das Honduras, El Salvador, Guatemala, entre outros – através de assistência económica e financiamento de grandes obras públicas.
Aos eleitores de AMLO interessa-lhes, porém, saber de que forma o Presidente vai causar impacto no seu dia-a-dia. Promessas eleitorais como a alocação de dinheiros públicos para reformas sociais, aumentos de pensões, distribuição de bolsas académicas e de estágios profissionais, ofertas gratuita de fertilizante a todos os pequenos agricultores, colocaram os mercados internacionais em alerta máximo. Mas López Obrador assegura que não vai abdicar delas.
Entre os pontos mais polémicos do seu programa, alguns deles já propostos e debatidos no Congresso, destacam-se a possibilidade de se amnistiarem criminosos, a descriminalização da venda e consumo de marijuana, a proibição de um funcionário público receber mais do que o Presidente – cujo salário vai reduzir em 60% –, a venda da frota área presidencial ou a criação de uma Guarda Nacional, uma nova força policial e militar com poderes e competência para actuar em todos os estados mexicanos.
Está ainda prevista a construção de duas novas linhas de caminhos-de-ferro, em Yucatán e Oaxaca, e de uma refinaria de petróleo em Tabasco. Projectos que, tal como o investimento de 13 mil milhões de dólares (cerca de 11,4 mil milhões de euros) num novo aeroporto na Cidade do México – que foi rejeitado –, AMLO levou a consulta popular.
Uma forma incomum de fazer política num país ávido por mudança, que a partir deste sábado terá aos comandos um Presidente que se diz diferente, mas que anda na política mexicana há mais tempo do que a maioria dos seus adversários. Os próximos meses tratarão de confirmar ou desmentir se esta é a melhor versão política de López Obrador. Indesmentível é que traz com ele um novo capítulo na atribulada história do México. O PRI que o diga.