Fifty Seconds: “Claro que há um Martin Berasategui lisboeta”
O chef basco que conquistou dez estrelas Michelin no conjunto dos seus restaurantes não esconde que com o Fifty Seconds, no Parque das Nações, em Lisboa, sonha também “tocar o céu da gastronomia”. Para começar, já paira mais alto do que os outros.
Há convites irrecusáveis. E abrir um restaurante na Torre Vasco da Gama, em Lisboa, com uma vista excepcional sobre o rio Tejo e uma subida estonteante num elevador que demora 50 segundos a chegar ao topo, era um desses.
O chef basco Martin Berasategui, 58 anos, já tinha recusado outras propostas para abrir um restaurante na capital portuguesa, mas desta vez não tinha como dizer não ao Grupo Sana, proprietário do Hotel Myriad e da Torre Vasco da Gama. Na semana em que Lisboa acolheu a gala do Guia Michelin e o basco recebeu mais duas estrelas, somando agora um total de dez, a Fugas conversou com ele no recém-inaugurado Fifty Seconds by Martin Berasategui.
Quando nos recebe, o chef ainda não sabe que no dia seguinte vai ter mais duas estrelas mas confessa, sem rodeios, que a gala da Michelin é o momento alto de cada ano de trabalho. “A minha vida tem sido um sonho, mas desse sonho as melhores horas são as do anúncio das estrelas Michelin porque vão dar o resultado do que eu e a minha equipa fizemos durante aquele ano.”
E não esconde que com o Fifty Seconds – “eu prefiro chamar-lhe 50 segundos, em português”, confidencia, sorrindo – tem exactamente o mesmo objectivo. Este é um restaurante para chegar às estrelas. “Todos os que trabalham comigo sabem o que é alcançar a excelência e quando tocas uma estrela é como tocar o céu da gastronomia, se alcanças a segunda é outro escalão muito maior, e a terceira, maior ainda.”
Por isso, respeita mas não se identifica com chefs que vêem a atribuição de estrelas como um peso pela responsabilidade que traz. “A vida passa muito rápido para que não a aproveites. Não me perdoaria se não aproveitasse. Quando te dão um prémio com que nunca sonhaste, é bom.”
A primeira estrela chegou quando não tinha ainda feito 25 anos. Foi o reconhecimento do trabalho que estava a realizar no Bodegón Alejandro, o restaurante da família que assumiu depois da morte do pai, trabalhando ao lado da mãe e da tia. São daí as suas mais queridas memórias de infância. “O meu pai era talhante, tinha aprendido esse ofício no mercado [o Mercado de la Brexta], que ficava mesmo ao lado do bodegón, mas como a minha mãe e a minha tia eram cozinheiras, decidiram abrir o restaurante.”
O início não foi fácil, teve que provar que tinha a garra necessária, mas cresceu como cozinheiro, foi abrindo outros restaurantes e hoje tem um pequeno império que, para além dos espaços em Espanha, incluiu projectos no México, na República Dominicana e agora em Lisboa. Mas, sublinha, apesar de terem em comum os pratos de assinatura e o estilo, cada um tem uma identidade ligada ao lugar onde está. “Claro que há um Martin Berasategui lisboeta, como há um mexicano, um basco, um madrileno, porque onde vou sou agradecido à terra que me acolhe.”
Em Portugal, não poupa palavras para elogiar os produtos. “Os pratos que pensámos para aqui são feitos a partir do que nos dão os nossos pescadores em Lisboa, os nossos agricultores, os nossos criadores de gado, os nossos apanhadores de cogumelos. Todos os produtos me parecem incríveis, se escolhesse cinco estaria a ser injusto para com os outros.” Mas acaba por eleger um, que o surpreendeu particularmente: “Os pinhões portugueses são os melhores que comi na minha vida. A subtileza, a delicadeza do pinhão português é brutal.”
Fez parte do grupo de chefs que nas últimas décadas revolucionaram a cozinha espanhola e a tornaram uma referência mundial. Sublinha, contudo, que, apesar de muito se ter falado de algumas técnicas popularizadas por estes cozinheiros, para ele o mais importante sempre foi o produto. “A técnica esteve sempre ao serviço do produto e do cozinheiro. Para cozinhar é preciso começar pela inteligência da natureza. Todos os dias a natureza nos dá um livro. E, como cozinheiro, tens muito a ganhar com o livro que nos escreve a natureza em Lisboa. A cesta de compras que nos dá o mês de Novembro é incrível, na Primavera igual, no Verão igual. Não é assim em todo o mundo.”
Para cada um dos seus restaurantes escolhe uma equipa da sua inteira confiança, com a qual fala diariamente a partir do seu restaurante principal, o três estrelas Michelin que tem em San Sebastian. Em Lisboa, o chef executivo é o português Filipe Carvalho, que tinha já trabalhado no Lasarte, assim como Maria João Gonçalves, a chef pasteleira, e o sommelier Marc Pinto (responsável por uma garrafeira com 450 referências). Como chefe de sala, o Fifty Seconds tem Inácio Loureiro, que foi escanção na Fortaleza do Guincho com Vincent Farges.
Berasategui não se cansa de falar na importância da equipa. “Sou muito comunicativo com as minhas equipas, tenho 44 anos de trabalho, tudo bem documentado, dou ideias, e das ideias que dou fazem-se coisas. Há liberdade total, eles dão-me a provar, funciona assim”, explica. O que espera de todos é “garrote”, palavra que já se tornou um ícone do chef basco.
“Garrote é ânimo, brio, autenticidade, é ver sempre a garrafa meia cheia”, diz. “Somos de uma geração em que 90% das coisas negativas que nos diziam que iam acontecer nunca aconteceram. Conheci muitas pessoas que se preocuparam muito com o que se ia passar – mas isso é como ir à farmácia antes de te cortares. Para quê?”.
Garrote é, portanto, algo que devemos esperar encontrar em todos os restaurantes de Martin Berasategui, e, claro, também no Fifty Seconds. “Garrote é dizer que aqui vamos fazer o melhor que eu possa. É dizer aos clientes que vai ser uma viagem inesquecível, que a minha equipa tem uma vontade de fazer as pessoas felizes que é incrível.”
E como é, afinal, uma refeição aqui? Entrar no Fifty Seconds Martin Berasategui num dia de nevoeiro pode ser, inicialmente, decepcionante. Estamos numa das torres mais altas de Lisboa e à nossa volta paira uma densa cortina cinzenta. Mas, dizem-nos, quando o nevoeiro começar a levantar vamos surpreender-nos.
De facto, é isso que acontece. Primeiro surge um tímido azul e um farrapo de nuvem. O nevoeiro está agora abaixo de nós, e parece que pairamos no céu. Depois, a pouco e pouco, despontam os topos dos edifícios do Parque das Nações e da Ponte Vasco da Gama, e a cidade revela-se lentamente. É um privilégio assistir a este espectáculo.
Mas, entretanto, o nosso almoço começou e desfilam já na mesa os aperitivos do menu de degustação (existem dois, um mais curto a 120€ e outro mais longo a 160€, além do serviço à carta). Surgem, logo nas entradas, alguns dos pratos mais famosos de Martin Berasategui, a brandade de bacalhau com maionese de manzanilla e yuzu e um no qual tem especial orgulho, o mil-folhas caramelizado de foie-gras, maçã verde e enguia.
Os sabores são intensos e os pratos são coloridos, festivos, tão bem desenhados quanto bem pensados. Na ostra com sumo de azeitonas verdes, emulsão de wasabi e crocante de algas, a gordura com acidez das azeitonas é equilibrada pelo cortante wasabi. No prato seguinte, a gema de ovo levemente cozinhada desfaz-se numa deliciosa carbonara de ervas e as finas fatias de beterraba largam o vermelho no verde da carbonara, transformando o prato numa tela.
A salada de verduras, ervas e pétalas com lavagante vive muito de um gel de água de tomate que une todos os sabores num prato de enorme frescura. No salmonete com escamas crocantes é uma surpresa o falso risotto feito com funcho e o amido do arroz.
Segue-se o prato mais arriscado, dominado pelo sabores intensos e a cor negra, num contraste com os anteriores: “trufa” de cogumelos fermentados, couve lombarda, cristas de galo e emulsão de cogumelos trompetas da morte. Por fim, pá de borrego de leite a desfazer-se na boca, com soro de parmesão e cogumelos silvestres. A refeição termina com uma sobremesa delicada mas calorosa e envolvente: infusão de arroz, leite e cardamomo, pistácio, yuzu e kalamansi.