Como fazer uma torre em Lisboa
Um promotor imobiliário com a ajuda da câmara lançou um concurso de ideias para construir a Torre FPM 41. O que é que um edifício que desafia a tradição lisboeta pode ensinar às cidades portuguesas?
Aqui em cima sente-se o formigueiro das alturas e a vista da nova torre lisboeta é quase de 360º graus, não fosse a nesga que tapa o edifício do Hotel Sheraton. O vizinho, que foi durante muitos anos o edifício mais alto de Lisboa, dá a impressão de estar ao alcance da mão para quem está no terraço da Torre de Picoas. “Parece que as coisas se aproximam. O Estádio do Sporting está mesmo aqui e o do Benfica ali”, comenta Patrícia Barbas, responsável pelo atelier Barbas Lopes que desenhou a Torre de Picoas — a arquitecta prefere chamar-lhe FPM 41, nome que identifica as iniciais da Av. Fontes Pereira de Melo e o número da porta principal. Conseguimos ver o perfil de toda a colina do Castelo, marcada pela mancha verde dos pinheiros, as duas pontes sobre o Tejo, a Serra da Arrábida e ainda o Mar da Palha.
Estamos na cobertura do FPM 41, a 67,87 metros do solo e a 144,95 metros do nível do mar, espaço que normalmente não será visitável. Há um outro terraço mais abaixo, acessível do 14º andar, mas as experiências com vistas deslumbrantes estão previstas para serem gozadas a partir do interior. E já se sabe quem as vai desfrutar: a sociedade de advogados PLMJ e a consultora KPMG. Estarão distribuídas de forma não uniforme pelos 17 andares, de forma a todos terem as vistas que dão a sensação de estarmos no topo do mundo.
Foi no final dos anos 60 do século XX que se concretizou pela primeira vez a ambição de construir Picoas em altura. Primeiro com o Edifício Imaviz, erguido entre 1966 e 1969 no lugar do lendário Aviz Hotel onde morou Calouste Gulbenkian, e depois com o Hotel Sheraton, terminado em 1972, ambos feitos pelo arquitecto Fernando Silva (1914-1983), também autor do Cinema São Jorge.
O Sheraton ficou com o recorde do edifício lisboeta mais alto até à viragem para o século XXI, quando surgiu a Torre de São Gabriel no Parque das Nações, consequência do crescimento da cidade para Oriente depois da Expo-98. Já o edifício do Hotel Myriad, instalado na recordista Torre Vasco da Gama, que atinge os 145 metros de altura na sua haste mais alta, não chega a ultrapassar os 92 metros de altura.
Só para a esquina da Rua Latino Coelho com a Av. Fontes Pereira de Melo, a arquitecta Patrícia Barbas conhece três outros projectos de torres que nunca passaram à fase de obra, com assinaturas de arquitectos como Francisco Conceição Silva, Tomás Taveira ou Ricardo Bofill, com o último datado já de 2006. Apenas com a revisão em 2012 do Plano Director Municipal (PDM), as restrições urbanísticas à construção em altura nestes terrenos de Picoas de 22,5 mil metros quadrados, que juntam vários lotes urbanos e levaram à demolição de quatro edifícios, desapareceram e a Câmara Municipal de Lisboa permitiu o licenciamento de uma torre.
Com o envolvimento da câmara, o gestor da obra, a Rockbuilding, antecipando o nervosismo que sempre provoca um projecto com esta dimensão em Lisboa, lançou um concurso de ideias de arquitectura feito por convites no final de 2013.
Um investimento de 70 milhões, um edifício com 17 andares de escritórios e comércio, um projecto que envolve a construção de uma praça arborizada e um especial cuidado com o impacto na Maternidade Dr. Alfredo da Costa e na Casa Museu Dr. Anastácio Gonçalves, desenhadas no início do século XX pelos arquitectos Ventura Terra e Norte Júnior.
Em 2004, o atelier Barbas Lopes Arquitectos, liderado pela dupla Patrícia Barbas e Diogo Seixas Lopes, saiu vencedor com uma torre constituída por dois volumes paralelepípedos. Ainda houve controvérsia pelo caminho, depois do promotor imobiliário ter cravado parte de uma estrutura em terrenos municipais subterrâneos, o que envolveu uma permuta de terrenos entre o município e a empresa Edifício 41, a dona da obra, um fundo de investimentos português, que optou sempre por não falar do projecto e da obra.
O arquitecto Manuel Aires Mateus, presidente do júri do concurso de arquitectura, explica que é importante a cidade aprender com o FPM 41 que o processo para construir um edifício desta importância tem que ser qualificado: “Devia aprender com o processo do concurso, sem vergonha, sem preconceito. Somos uma sociedade em geral com preconceitos: pequeno é melhor do que grande, nada é melhor do que alguma coisa, antigo é melhor que novo. Este é um bom exemplo para se perceber que não é assim, que a cidade tem que evoluir, crescer. Tem que absorver os edifícios com qualidade como este e deixar em stand by os edifícios que não têm qualidade para uma futura substituição. Este processo de andarmos à procura da qualidade é aquilo que a cidade tem que fazer.”
Manuel Aires Mateus, Prémio Pessoa 2017 e autor da sede da EDP, o edifício mais alto que o seu atelier já fez até hoje em Lisboa, defende que a cidade deve mobilizar-se sempre que há um edifício importante para construir. É aquilo que já viu acontecer em França, onde tem várias obras com o irmão Francisco. “Em Paris, é um hábito corrente e todos os edifícios significativos são feitos assim, procurando pôr de acordo o promotor e a câmara, que funciona como representante da cidade. Esse hábito parte da ideia de que a arquitectura é uma arte muito pública e tem também que ser incentivada e sancionada pelos poderes públicos autárquicos.”
A Rockbuilding convidou seis arquitectos de uma determinada geração, entre os 40 e os 50 anos, todos com obra relevante e prémios internacionais. Foram os ateliers de João Favila, Paulo David, João Trindade, Telmo Cruz, Barbas Lopes e Ternullo Melo. “As seis propostas eram muito fortes. Foi uma escolha difícil, mas foi feita pelo caminho das possibilidades. As que estavam dentro da lei, as que eram aceitáveis pela Direcção-Geral do Património Cultural ou pelo Metro de Lisboa. A escolha tinha que ser muito clara, não baseada em gostar mais ou menos.”
Alguns projectos caíram logo no início, como o do atelier Ternullo Melo, por causa de informação incompleta. Os dos arquitectos Telmo Cruz e Paulo David obrigavam à elaboração de um plano especial para a zona, porque não se encaixavam no PDM, conta o presidente do júri. “O do Paulo David talvez fosse o mais forte a nível de desenho, o mais radical. Às vezes não conseguimos fazer passar projectos que aparecem nos concursos, mas não deixam de ser propostas muito importantes do ponto de vista da arquitectura.” A torre de João Trindade, também muito bem desenhada, tinha coisas consideradas excessivas.
À segunda fase do concurso passaram as propostas dos ateliers Barbas Lopes e João Favila (com Pedro Domingos e João Simões). Como os comentários positivos e negativos do júri, os dois ateliers foram convidados a desenvolver os projectos.
“O projecto de João Favila era muito delicado. Tinha uma base muito bem assumida, procurando diminuir ao mínimo o impacto sobre o lugar.” A torre, que fazia os mesmos alinhamentos com os eixos da Latino Coelho e da 5 de Outubro do que o da proposta vencedora, tinha uma solução muito diferente para a entrada. Afundava-a em relação ao nível da rua, procurando proteger visualmente do trânsito o espaço de recepção, e utilizava o lioz de Lisboa ao nível do embasamento e dos primeiros pisos.
“Os dois projectos finalistas eram muito interessantes, até pela sua diferença. O do atelier Barbas Lopes tinha a grande vantagem de responder exactamente ao problema — a construção de um edifício de alguma maneira genérico. O do João Favila respondia a um programa mais particular, era menos adaptado à função. Esse equilíbrio na resposta, em que olhámos do lado da cidade e do promotor, acabou por ajudar à decisão pelo da Patrícia e do Diogo.”
A torre que lá está já terminada tem grande autonomia formal, explica Manuel Aires Mateus. “É muito objectual. Tem, de alguma maneira, um desejo escondido de não pertencer propriamente a nenhum tempo. Esse desejo escondido foi talvez o que introduziu maior interesse no projecto. Tinha esse grau de autonomia e essa ideia de que sempre ali esteve. Claro que criou a sua polémica, porque todos os edifício desta escala criam, mas hoje quando o vemos achamos que podia estar ali desenhado há 20 anos. Com a sua beleza e a sua inteligência, pacificar-se-á muito bem com a cidade.”
O que é inesperado, dizemos nós, é que um atelier com obra escassa — o projecto mais conhecido dos Barbas Lopes é o Teatro Thalia, feito em parceria com Gonçalo Byrne — tenha conseguido um resultado tão seguro num edifício com esta escala.
Sobre a qualidade do FPM 41, Aires Mateus diz que o que vê agora na Av. Fontes Pereira de Melo é o que o júri aspirava a que a obra fosse, uma peça com grande autonomia formal e também intemporal. “Infelizmente o Diogo já não está [morreu em 2016], mas aquele é um atelier com uma capacidade enorme para reflectir sobre a condição do tempo. O que é divertido é que se isso se passa com a torre, mas também com as remodelações que fazem.” Neste momento, por exemplo, o atelier tem também em mãos a recuperação do Palacete Barão de Santos, no Príncipe Real, em Lisboa.
“A resposta do atelier Barbas Lopes era muito segura, eficaz. É ser capaz de entender o que é uma torre e fazer o projecto a partir disso: a distribuição horizontal; a fachada e a comunicação com a cidade; a maneira como toca na terra.” Apesar da autonomia, a obra não deixa de estabelecer um diálogo com os elementos à volta. “Como é um objecto com qualidade arquitectónica e formal, acaba por redesenhar os outros edifícios e resgatá-los.”
Para saber o papel das torres numa cidade, é preciso saber exactamente do que estamos a falar. E talvez aqui não se esteja a falar mesmo de uma torre. “Essa também é uma confusão que fazemos. Os franceses chamam a isto um edifício de bela altura. São os edifícios que andam nos 50, 60, 70 metros. A partir dessa cota, chamamos torres às excepções.”
O arquitecto chama a atenção para o facto de o FPM 41 acompanhar a escala criada pelo Sheraton e Imaviz. “É uma zona que ganhou outra escala com a evolução. É diferente da ideia de uma torre.” Claramente, uma excepção seriam as torres de Álvaro Siza para Alcântara, junto à Ponte 25 de Abril, uma das estruturas mais altas da cidade. “Quando se fala de uma torre, o primeiro problema que se põe, o tal edifício de grande excepção, é o lugar dela. Em que sítio é que uma torre se pode fazer? Aqui é o problema não é esse, porque trata-se antes de coser a cidade.”
Lisboa, defende Aires Mateus, não é por tradição uma cidade de torres. “Cidades com esta densidade e história podem ter torres, que é uma coisa diferente de dever tê-las, mas é um jogo difícil e arriscado. Obriga a pensar muito bem e a escolher pontos muito específicos.”
A arquitecta Patrícia Barbas, que está prestes a entregar a torre FPM 41 aos futuros inquilinos, defende na entrevista ao Ípsilon que a construção de um edifício em altura não é um bicho de sete cabeças e que é preciso apreciar cada caso e oportunidade: "Em Lisboa essa desconfiança do edifício em altura é uma questão histórica, mas ele abre possibilidades de se poder devolver espaço público, espaço verde, à cidade."