O segredo do donut de David Lynch
Espaço para sonhar é a nova biografia de David Lynch, escrita num pingue-pongue entre o cineasta e a jornalista e crítica de arte Kristine McKenna. Um capítulo dela, um capítulo dele, e uma conversa com ela para perceber como é ser avatar ou intérprete circunstancial de David Lynch. Todos os detalhes, nenhuma explicação, e um donut.
David Lynch é magnético. Tem o porte do homem mais simples e mais especial – pelo menos é o que parece ao longe, nas entrevistas, nas aparições, nas conversas dos outros e nos ecrãs distantes. Kristine McKenna é a sua biógrafa, suficientemente amiga para ter sido autorizada a entrar na sua mente e para não insistir em falar do que ele não quer. Sim, sobre o bebé perturbador de Eraserhead ou sobre a animada vida amorosa. A escritora americana é momentaneamente o seu avatar nas conversas sobre Espaço para sonhar, o livro com capítulos dela e capítulos dele, “basicamente uma pessoa a ter uma conversa com a sua própria biografia”. Andar à procura do sr. Lynch, num livro ou num festival de cinema, é pura pornografia Lynch.
“Ele tem um ego de artista ferozmente forte. É indómito no que toca ao seu trabalho e sabe o que deve ser e ninguém lhe pode dizer o contrário”, diz Kristine McKenna numa manhã límpida de Lisboa, convidada pelo Leffest – Lisbon & Sintra Film Festival a vir a Portugal para apresentar Espaço para sonhar (ed. Elsinore) e participar num festival de cinema com duas exposições sobre o cineasta (em Sintra até final de Dezembro), um cartaz e um programa intitulado “Waiting for mr. Lynch” - afinal, ele até veio em 2007, mas não voltou em 2018.
“Noutros aspectos, é muito humilde. Gosta de viver de forma simples. Gosta de varrer. Gosta de mexericar com coisas. Adora arranjar coisas. É tão engraçado, estava com ele numa coisa há dois meses e o meu sapato estragou-se. Os olhos dele iluminaram-se e ele disse ‘posso arranjar-te isso’. Fui para casa só com um sapato e ele levou o meu sapato para casa dele e arranjou-o.”
É nesta dualidade que vive Espaço para sonhar, cuja estrutura - um capítulo da jornalista e crítica de arte seguido de um capítulo do realizador e pintor, apenas ordenados cronologicamente - foi ideia de McKenna, para dar proeminência à voz de David Lynch. Dá espaço ao fétiche Lynch - a frases ou revelações com o encanto corriqueiro de quem procura num génio os traços do dia-a-dia. Em Junho, numa rara e longa entrevista à revista New York, o entrevistador até da sanita tão especial de David Lynch fala com enlevo.
Haverá, por isso tudo, dois livros em Espaço para sonhar? “É uma pergunta interessante… Se fossem só os meus capítulos, o David pareceria ausente. E se fossem só os capítulos do David, o leitor não teria muitos factos – o David não se interessa nem se lembra de coisas como orçamentos, datas, esse tipo de coisa. E eu queria que fosse um livro definitivo.” Kristine McKenna esteve na origem de Espaço para sonhar e “não foi preciso nada para o convencer. Fiquei muito espantada. Tive a ideia de fazer o livro, telefonei-lhe e disse ‘há toneladas de livros sobre ti, estas pessoas estão a fazer dinheiro com a história da tua vida, porque é que não fazemos o nosso próprio livro. Será a tua versão, e tudo estará correcto e tu farás algum dinheiro com ele’”. E ele disse que sim.”
A partir daí, trabalharam. Entre sandes repetitivas e a honra. “Ele cumpre sempre com a sua palavra.”
O jogo foi aparentemente simples e dele saem muitas pepitas Lynch sobre as primeiras namoradas, a sexualidade, os filmes e a televisão que o influenciou, a infância em Boise, no Idaho. O nascimento de alguns dos seus vocábulos estéticos - “Quando visualizo Boise na minha cabeça, vejo o optimismo cromado e eufórico dos anos 1950” - ou a mulher nua e ensanguentada que viu na rua e que “apesar de estar traumatizada, era linda”. Quando tiveram de se mudar de Boise, “a música parou”.
A obsessão por café, cigarros e batidos do Bob’s, os quatro casamentos, ter estado no leito mortal de Federico Fellini, a sua teoria sobre quem matou John F. Kennedy (o vice-presidente Lyndon B. Johnson, que sucedeu a Kennedy na presidência), ou aquela noite em que conduzia com amigos e ficou hipnotizado pelos traços da auto-estrada até parar em plena via, num preview de Lost Highway: Estrada Perdida (1997).
Ter a primeira filha, Jennifer, “não foi como ter um cão, mas como ter uma nova textura em casa”. As dificuldades com Anthony Hopkins na rodagem de O Homem Elefante (1980), a cuja estreia nem foi de tão nervoso que estava. O amor da sua vida: o cão Sparky. Os muitos empregos e biscates, a entregar jornais ou a fazer suportes para paus de incenso, quando o cinema não lhe dava sustento. Ou como foi aos Óscares perder “para Oliver Stone, que ganhou com Platoon – Os Bravos do Pelotão”, mas como nessa festa de derrota de Veludo Azul (1986) conheceu e beijou demoradamente, numa primeira de várias vezes, Elizabeth Taylor, o seu sonho.
É expansivo quanto a Duna (1984), uma adaptação do clássico de ficção científica que foi um flop a todos os níveis, e graças ao qual nasceu um novo Lynch, que só filmava o que podia controlar do princípio ao fim. “O [produtor do filme] Dino de Laurentiis não entendia conceitos abstractos nem poéticos, de forma nenhuma – ele queria acção. (…) O Dino queria ganhar dinheiro”, diz Lynch em Espaço para sonhar. “Só quando se tratava de filmes é que eu e o Dino não nos entendíamos. O Dino ama o cinema, mas não o meu tipo de filme.” Lynch e McKenna conversam sobre as marés, os elogios e a perda dos favores da crítica, a importância de encontrar o público certo, a fama depois da televisão.
Estes relatos, e os que McKenna coligia falando com toda a gente desde os primeiros agentes, melhores amigos de infância, mulheres, Sting ou Mel Brooks, compuseram-se em duas mesas. “Eu fazia um capítulo, dava-lho e ele supostamente lia-o. Mas nem sempre o fazia”, ri-se a autoria no Chiado lisboeta.
“Depois encontrávamo-nos, ele almoçava – eu levava-lhe o almoço, uma sandes de salada de ovo, ele comia sempre a mesma coisa ao almoço - e era suposto ele responder [ao capítulo anterior] no [seu] capítulo. Mas às vezes ele nem sequer o lia. E noutras vezes, mesmo que o tivesse lido, simplesmente ia para outro lado. É assim que ele é.” Na entrevista à New York, apura-se que o tema alimentar mudou ligeiramente. “para almoço, como uma fatia de pão torrado com maionese e frango. Só isso. Depois, ao jantar, como uma fatia de pão com maionese e frango e como sopa de legumes. Todos os dias.”
McKenna esteve em todas as filmagens de David Lynch desde Veludo Azul. “Foi simplesmente mágico, estar lá. Porque foi uma rodagem muito longa para eles, durante nove meses, ficaram todos muito próximos, o David estava felicíssimo por estar a fazer aquilo depois de Duna. Na noite em que levam Jeffrey Beaumont [Kyle MacLachlan] de carro, Dennis Hopper beija-o e borra-o de baton - nessa noite foi espantoso estar lá. Estava muito frio, a [stripper] Bonnie estava a dançar em cima do carro, foi espectacular.”
O sorriso não se desvanece. “Em Coração Selvagem, a cena no Palomino em Los Angeles, em que Lula [Laura Dern] e Sailor [Nicolas Cage] estão a dançar e é um speed metal, louco, lembro-me muito bem disso.” Mais recentemente, para televisão: “Em Twin Peaks: O Regresso, estava lá em algumas das filmagens na Sala Vermelha. Os plateaus dele são divertidos”.
Uma sala vermelha também seria o centro do trailer que David Lynch, cineasta com mais de 80 créditos como realizador que não toca numa longa-metragem para o cinema desde 2006, com Inland Empire, fez para Dangerous (1991), 30 segundos para o álbum de Michael Jackson. “Tudo o que ele queria fazer era falar do Homem Elefante”, escreve Lynch.
Puzzle Lynch
A ausência de descodificação de uma obra é tudo menos invulgar no cinema, ou nas artes em geral, mas num autor como David Lynch, que tanto toca o culto quanto atinge o mainstream, essa despreocupação didáctica no seu trabalho torna-se num mistério. E um mistério é algo a descodificar, a resolver, é um puzzle com satisfação garantida. Há mais biografias de Lynch, e livros onde se tenta descobrir mais sobre como foi feito o bebé de Eraserhead - No céu tudo é perfeito (1997), “esse Santo Graal dos obsessivos de Lynch”, como descreveu o crítico do Guardian John Patterson, e Kristine McKenna está consciente das leituras e duplas leituras de Espaço para sonhar. E também está ciente das críticas ao livro que assina com Lynch e que, em alguns casos, lamentam uma suposta ausência de profundidade.
“Todos ansiamos compreender-nos, particularmente aos artistas. São fascinantes. Sinto que as pistas estão lá. Mas não as disse directamente nem as sublinhei. Algumas críticas disseram que é um livro superficial, mas… quando ele era criança experienciou violência, o pai era uma espécie de rancheiro, havia armas, tiros em animais. E também era doido por raparigas desde o jardim-de-infância e essas duas coisas ainda estão no seu trabalho. Acho que passa a ideia de quem ele é.”
Assinar um livro com Lynch, o Godot do Leffest e de tantos outros eventos que com gostariam de contar com o homem que tem um toque de agorafobia e pouco sai da sua rotina americana, é saber em parte que será lido em busca de pistas, que o subtexto será tão importante quanto o discurso à superfície? “Não é que o David tenha segredos que está a proteger, não está é interessado em explicar-se nem em explicar a vida. Vê ambos como inexplicáveis e isso é central no seu trabalho. Ele não quer que o seu trabalho seja uma experiência de ligar dos pontos, quer que seja experiencial, não uma ferramenta didáctica. Está perfeitamente confortável com o facto de haver aspectos do seu trabalho que as pessoas não compreendem.”
McKenna, que já entrevistou e compilou em vários livros conversas com Brian Eno ou Leonard Cohen e fez a crónica, nos anos 1970, da cena punk de Los Angeles, recorda como mergulhou nos adereços que Lynch faz à mão para todos os filmes. “De Twin Peaks: O Regresso há um frasco de feijões. Perguntei-lhe: ‘O que é isto, por que é que fizeste isto?’. E ele disse: ‘Bom, é uma pista’. ‘Queres dizer que pode ser descodificado?’. E ele diz: ‘Sim, claro, tudo pode ser descodificado’. O que significa que tudo o que ele faz tem um significado mais profundo. Mas ele não vai dizer-te o que é.”
No livro, McKenna resume a certa altura, a propósito de o próprio Lynch não entender inteiramente a história de Veludo Azul, durante cujas filmagens andava sempre com M&Ms de amendoim nos bolsos: “Lynch prefere operar na fenda misteriosa que separa a realidade quotidiana e o reino fantástico da imaginação humana… Quer que os seus filmes sejam sentidos e experienciados em vez de compreendidos”.
Na vida, por vezes, repete frases que o próprio Lynch emprega. “A vida não pode ser explicada. Simplesmente não pode.” Di-lo quando falamos sobre se o fascínio colectivo por David Lynch residirá em parte nessa ausência de explicações, nesse mistério sem chave. Essa impossibilidade de explicar “esse ciclone de beleza e horror” que é a vida - “e todos lutamos para passar por ela” -está no trabalho do realizador.
O rio que corre entre as linhas de Espaço para sonhar afinal sempre esteve à superfície, recorda Kristine McKenna. “O David quereria que o subtexto fosse: ‘você devia meditar’. É a mensagem dele na vida, que toda a gente estaria melhor se meditasse. Isso está no livro até certo ponto, mas ele falaria sobre isso largamente e eu não o deixei.” O hinduísmo e suas crenças filtram a forma como se retrata e como se conduz na vida. Acredita no karma, na reincarnação.
“É muito tolerante. Não tem qualquer problema em dizer ‘aquele gajo é uma besta’, mas também é muito tolerante com as pessoas, não acalenta rancores. Não o conhecia antes de começar a meditar, conheci-o em 1979 e ele começou em 1973. Era uma pessoa muito zangada antes, mas ainda se zanga. Não gosta que ninguém mexa com o trabalho dele. Ele é uma pessoa muito pacífica e amorosa, é invulgar nesse sentido. É por isso que toda a gente que trabalha com ele o adora.”
Território Lynch
Em Estrada Perdida, a personagem Fred Madison comenta: “Gosto de me lembrar das coisas à minha maneira”. “David lia as recordações dele de outras pessoas e dizia ‘Não me lembro disso dessa maneira’, mas percebia. [Só] houve um par de casos que disse ‘isso não aconteceu’. Esses cortámos”, explica Kristine McKenna, que vive na mesma Los Angeles cuja luz tanto enfeitiça David Lynch, sobre o processo de edição do livro.
A área verdadeiramente sensível para tratar em Espaço para sonhar foi a vida amorosa “incrivelmente complicada” de Lynch, confirma McKenna. David Lynch é focado e concentrado a trabalhar, e as suas mulheres e namoradas testemunham a sua facilidade em apaixonar-se, um homem disponível para a alegria e para o encantamento em todos os aspectos da vida, mas também de se desligar. Delas, de um casamento, de um longo namoro como o que terminou com Isabella Rossellini com um seco telefonema. O trabalho está sempre primeiro e, como diz a sua mulher actual, a actriz Emily Stofle, “ele é muito egoísta”. “E ele sabe que é”, diz Kristine McKenna.
“Tenho o olhar fixo no donut, não no buraco do donut”, escreve Lynch.
A sua história é uma história americana. “Lynch é, em primeiro lugar, um artista americano, e embora os temas do seu trabalho sejam universais, o território das suas histórias é a América – onde foram impressas, de forma indelével, as memórias da infância que caracterizam o seu trabalho; e onde Lynch viveu os casos amorosos e arrebatadores da sua juventude, que moldaram as suas representações subsequentes do amor romântico como um estado de exaltação. Depois, há o próprio país: as árvores enormes do noroeste do Pacífico; os bairros suburbanos do centro-oeste e o som dos insectos nas noites de Verão; Los Angeles, onde o negócio do cinema devora as almas; e Filadélfia, a terrível provação em que foi forjada a sensibilidade estética do realizador durante a década de 1960.”
É assim que Kristine McKenna resume, em parte e em Espaço para Sonhar, o seu biografado. Esse terreno é o da imagem de Lynch, e inscreve-se na sua linguagem: “A cena precisa de um pouco mais de vento”, diria a certa alguma num plateau. A autora acrescenta-lhe “o fascínio pela complexidade do corpo humano”, desde Eraserhead a Um Coração Selvagem passando pelo pedido, dentro da sua obsessão por texturas, a Raffaella de Laurentiis sobre se podia ficar com o seu útero depois de uma histerectomia (os médicos não deixaram).
Jennifer Lynch, que colaboraria com o pai e passou parte da infância nas filmagens, lembra a McKenna nas páginas de Espaço para Sonhar que “o seu cérebro funciona segundo a ideia de que as coisas devem acontecer de uma certa forma e de que existem pequenos milagres. O seu interesse por matrículas de carros e superstições? Tudo isso são estratégias que ele usa para fazer algo mágico e transformador. Foi sempre assim”.
David Lynch produz aforismos com facilidade, e sempre o fez nos seus 72 anos de vida. “Podemos dizer que a Laura Palmer é a Marilyn Monroe e que Mulholland Drive [2001] também é sobre a Marilyn Monroe. Tudo é sobre a Marilyn Monroe.” Ou: “sinto que há muito de rock ‘n’ roll em Um Coração Selvagem. O rock é ritmo e amor, sexo e sonhos, tudo junto. Não é preciso ser-se jovem para o apreciar, mas o rock é uma espécie de sonho de juventude sobre aproveitar a vida em liberdade”. Parte do fetichismo sobre a personagem David Lynch é deliciar o leitor com os seus hábitos - afinal, era um adolescente que andava sempre de blazer e gravata, ou laço. “Sempre apertei o primeiro botão das camisas porque não gosto de sentir o ar no pescoço e não gosto que ninguém toque no meu pescoço. Deixa-me louco, não sei porquê.”
Kristine McKenna, amiga de décadas de David Lynch, sabe que está a falar nesse lugar onde se procura outrem. “Tento representá-lo como ele quereria ser representado, mas ele é tão imprevisível. É muito difícil saber o que ele vai dizer a cada minuto.” Quis contar a sua história “de uma forma com a qual ele conseguisse viver. E tentar transmitir quão cómico ele é, porque ele tem um óptimo sentido de humor”. Quem é David Lynch? “David Lynch é uma pessoa mesmo boa. É generoso e dado. Isso, e arranjou-me o sapato.”
Notícia corrigida a 3/12: Kristine McKenna viajou a convite do Leffest