A "desforra" de Scolari depois do "vexame"
Aos 70 anos, Luiz Felipe Scolari levou o Palmeiras ao título de campeão brasileiro. Sem abdicar do seu estilo, o técnico volta a ser respeitado depois da goleada sofrida no Mundial 2014.
Era uma madrugada quente de Verão em Lisboa quando o telefone de Luiz Felipe Scolari tocou. “Felipão” despertou assustado e atendeu. Era Alexandre Mattos, director de futebol do Palmeiras, com um convite para dirigir a equipa paulista. Scolari não conseguiu mais dormir, porque não planeava voltar a treinar, e passou a sonhar com a hipótese de renascer aos 70 anos. Agora, ao erguer o troféu de campeão brasileiro, conseguiu provar a sua relevância após a derrota por 7-1 frente à Alemanha, nas meias-finais do Mundial 2014, quando era o seleccionador do Brasil.
Na manhã seguinte, ainda em Lisboa, contou seus planos à mulher. Não queria deixar angustiada a família, que sofreu com as críticas após a goleada no Mineirão. Scolari já tinha recusado um convite do Sporting, que seria cómodo. “Felipão” vivia em Portugal, onde é acarinhado em qualquer lugar desde que levou a selecção portuguesa à final do Euro 2004 e ao quarto lugar do Mundial 2006. Sentia-se em casa na capital portuguesa, mas estava certo de que, com muito trabalho, o regresso ao Brasil poderia ser triunfal. Decidiu fazer as malas. “A mim, qualquer situação não me chateia em nada: 7-1, 0-0, 5-5. Só afecta algumas pessoas da minha família”, disse na época da apresentação.
Quando assumiu pela terceira vez a equipa de São Paulo, então sexta classificada, “Felipão” não tinha sequer a confiança dos adeptos, que temiam um destino semelhante ao descalabro sofrido pela selecção. O mais velho treinador do campeonato brasileiro era considerado ultrapassado pelos críticos. Lembrou, a propósito, Nelson Mandela como justificação para o risco que corria, recordando que o icónico líder sul-africano só chegou à presidência da África do Sul com 76 anos.
Antes de aceitar, fez uma exigência aos directores do Palmeiras. Scolari, que assinaria por dois anos e meio, não queria ficar preso nem criar constrangimentos, caso precisassem de o demitir. Por isso, ficou decidido que a indemnização seria de um mês de salário, o mínimo exigido.
Que Luiz Felipe Scolari aterrou em São Paulo? O mesmo, asseguram as pessoas próximas do treinador, que manteve o hábito de assistir a várias partidas de futebol por dia e é leal aos amigos de décadas e aos jogadores que comanda. Em palestras que deu após a eliminação do Brasil pela Alemanha, no Mundial 2014, “Felipão” sempre disse: “Todo o mundo tem um 7-1 pessoal. Pode ser uma demissão, um falecimento na família. E o que é que você faz? Acorda no dia seguinte e vai trabalhar.”
Mas junto do relvado a mudança era visível. O seu fiel “escudeiro”, Flávio Murtosa, preferiu cuidar da sua fazenda no Brasil e deixar de ser técnico adjunto, cargo agora ocupado por dois profissionais com os quais tinha trabalhado recentemente durante a sua passagem vencedora pela China (tricampeão chinês com o Guangzhou Evergrande e sete títulos ao todo): Carlos Pracidelli e Paulo Turra. Pracidelli é amigo de “Felipão” há 21 anos e esteve na equipa técnica no Mundial 2002, quando o Brasil conquistou o pentacampeonato. Turra, um ex-defesa central como “Felipão”, que actuou no Boavista e no V. Guimarães, ajudou a organizar a defesa, a melhor do campeonato brasileiro, com 24 golos sofridos.
Com a equipa disposta num 4x3x3, Scolari apostou num futebol objectivo, sem lateralizar o jogo em excesso. Pragmático, o Palmeiras privilegia a posse de bola e detém o melhor ataque do campeonato, com 61 golos. O “verdão” está invicto desde que o treinador chegou, na 17.ª jornada. São 21 jogos (15 vitórias e seis empates), recorde de invencibilidade no Brasileirão.
Para convencer os jogadores de que o seu projecto poderia dar certo em tão pouco tempo, abusou do estilo “paizão” e abraçou-os a todos, dando oportunidades a todo o plantel de entrar no relvado, ao criar duas e até três equipas, principalmente quando o Palmeiras disputava competições simultâneas.
O atacante Dudu, considerado um trunfo desta campanha desportiva, é o líder das assistências. O camisola 7 quase trocou o Palmeiras pelo futebol chinês em Agosto, mas Felipão conseguiu demovê-lo: “Eu estou tentando mostrar que, se ele quiser sair, tem que sair sim, mas com mais um, dois, três títulos pelo Palmeiras”, afirmou “Felipão”.
Outro exemplo de como Scolari ganhou o plantel: “adoptou” Deyverson, autor do golo que ontem derrotou o Vasco da Gama (0-1) e confirmou o título nacional. Com passagens por Benfica B e Belenenses, o polémico avançado de 27 anos era criticado pelos adeptos e parecia sem confiança até à chegada do técnico. Com um historial de expulsões, no final do clássico com o Santos, o jogador começou a dançar ainda no relvado, comemorando com os adeptos. Os rivais entenderam o gesto como provocação e, na saída para o balneário, Deyverson parou para dar entrevistas. “Felipão” apressou-se a encaminhá-lo para o balneário, dizendo aos jornalistas: “Sem entrevista. Vão para o inferno!”
Foi o confronto mais forte com a comunicação social. Mas durou pouco, porque no mesmo dia, na conferência, o treinador pediu desculpas e disse que Deyverson “tem uma chavezinha que não funciona”, pedindo à imprensa que evitasse entrevistá-lo. Caso os jornalistas não colaborassem, proibiria os jogadores de darem entrevistas.
“Felipão” comemorou 70 anos dias após o jogo com o Santos. Sem conceder entrevistas exclusivas, escolheu aparecer no popular programa de TV matinal da apresentadora Ana Maria Braga, da Rede Globo. O programa exibiu vídeos de personalidades do desporto, homenageando Scolari. Entre os testemunhos recolhidos, contava-se o de Dolores Aveiro, mãe de Cristiano Ronaldo.
Enquanto o Palmeiras subia na classificação, “Felipão” recuperava a sua popularidade e credibilidade e seguia firme rumo ao seu segundo título do Brasileirão, 22 anos após a conquista do primeiro, com o Grémio, em 1996. A todos, nos bastidores, dizia sempre: “Não tem nada ganho.” Agora, após o mítico 7-1, Scolari é o mais velho treinador a vencer o campeonato brasileiro. E sem mudar as suas convicções.