O Último Tango em Paris: inquietante em 1972, inquietante em 2016

A estreia em Portugal só aconteceu no Verão de 1974 e durante dois meses houve filas à porta do Cinema São Jorge. Agora que Bertolucci morreu, desfaz-se por completo o triângulo de um filme-ícone que foi sinónimo de controvérsia, mas também de libertação.

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Marlon Brando e Maria Schneider em O Último Tango em Paris DR

8 de Agosto de 1974. O passeio da Avenida da Liberdade junto ao Cinema São Jorge está cheio. Largas dezenas de pessoas esperam que chegue a sua vez de comprar bilhete para uma das estreias mais aguardadas desse primeiro Verão da Lisboa pós-revolução. Será assim durante dois meses. O Último Tango em Paris, filme de Bernardo Bertolucci (1941-2008) que a palavra “escândalo” precede e persegue, chega pela primeira vez a um cinema português, quase dois anos depois da sua estreia mundial, em Nova Iorque.

Em Portugal a censura do Estado Novo tinha colado o rótulo de “proibida” a esta obra controversa que viria a ocupar um lugar de destaque na história do cinema. Pelo que é, como objecto, mas também pela circunstância de se ter transformado num símbolo de libertação que está longe de se circunscrever às questões da moral e do sexo. Mesmo que tenham sido sobretudo as cenas de sexo — entre Paul (Marlon Brando), um americano de meia-idade que tenta recuperar do suicídio da mulher, e Jeanne (Maria Schneider), uma francesa muito jovem que vê numa relação exclusivamente física com um desconhecido a fuga possível a um quotidiano rotineiro — a alimentar polémicas.

Em Itália, onde o filme foi censurado à estreia, em 1972, e só teve distribuição na íntegra em 1987, Bertolucci chegou mesmo a responder em tribunal por obscenidade, e acabou sentenciado a uma pena de prisão suspensa e impedido de votar durante cinco anos. Em Inglaterra, a célebre cena de sexo anal entre Paul e Jeanne que haveria de reacender a polémica passados mais de 40 anos (já lá iremos) foi encurtada. Em Portugal, e já no pós-25 de Abril, foram muitos os protestos que se ouviram dentro e fora das salas, com os jornais a referirem-se-lhe como “filme voyeur” ou “escândalo de celulóide”, lembra Joana Stichini Vilela no seu LX70 (D. Quixote, 2014).

“Sabíamos de antemão que a cena da sodomia, ‘a da manteiga’, era, de todas, a esperada com maior ansiedade, mesmo com um nervosismo quase histérico. (…) Aconteceu o que esperávamos: um chorrilho de gritos, apupos, incitamentos e alarvidades. Pena. Como se o filme fosse só isso”, lamentava Carlos Plantier nas páginas do diário O Século Ilustrado. “Desassombrada bofetada no convencional modo de nascer, crescer e morrer, este filme constitui um documento urgente e bem-vindo por tudo isso. E pelo resto”, escreveu João Alves da Costa no Diário Popular, que pôs nada mais, nada menos que oito jornalistas a escrever sobre O Último Tango em Paris.

O regresso da polémica

Dividindo claramente as águas entre os que o aplaudiam como gesto corajoso e inovador, ajudando a transformá-lo num ícone, e os que o viam como um atentado aos valores da família e um apelo à “depravação”, palavra muitas vezes usada nos protestos de rua e nos púlpitos dos políticos mais conservadores nos países em que se estreou ainda na década de 1970, o filme de Bertolucci manteve, a avaliar pelo debate mediático que desencadeou já em 2016, a sua natureza inquietante.

Evocando declarações feitas por Maria Schneider (1952-2011) ao jornal britânico Daily Mail em 2007 — em que a actriz acusara Bertolucci de se ter aproveitado da sua juventude em O Último Tango em Paris, informando-a  da cena de sexo anal que não vinha no guião apenas minutos antes de a rodarem —, o realizador voltou a indignar muitos dos espectadores, alguns deles até então seus “aliados”.

Num comunicado enviado à revista Variety cinco anos depois da morte de Schneider, o italiano reconheceu que combinara com Brando (1924-2004), nos bastidores, que o actor usaria manteiga como lubrificante, decidindo ambos que não informariam Schneider para que a sua resposta fosse espontânea. Tanto um como outro queriam que reagisse como mulher e não como actriz. Bertolucci era já um cineasta respeitado, Brando, então com 48 anos, uma estrela em Hollywood, e Schneider uma actriz desconhecida que começara a rodagem ainda com 19 anos.

“O Marlon disse-me: ‘Maria, não te preocupes, é só um filme’, mas durante aquela cena, mesmo que aquilo que o Marlon estava a fazer não fosse real, as minhas lágrimas eram verdadeiras”, contou a actriz ao Daily Mail. “Para ser sincera, senti-me humilhada e um pouco violada, tanto por Marlon como por Bertolucci.”

Maria Schneider referia-se sempre ao cineasta como um “manipulador”. Bertolucci, esse, só se desculpou pelo que acontecera quando a actriz morreu com um cancro, aos 58 anos: “A morte [da Maria] chegou demasiado cedo. Apesar de não ter conseguido dar-lhe um abraço, gostava de lhe dizer que sempre me senti ligado a ela… E, pelo menos desta vez, pedir-lhe que me perdoe.”

Uma admissão de culpa que chegou tarde e que antecipou, de certa forma, o movimento #Me Too, desencadeado em Outubro de 2017, quando duas publicações norte-americanas puseram definitivamente o foco sobre a cultura predatória de Hollywood ao dar conta de que dezenas de mulheres acusavam o produtor Harvey Weinstein de violação, assédio e abuso sexual.

Schneider já não pôde juntar-se aos que, desde então, denunciaram outros nomes fortes da indústria, como Kevin Spacey, Oliver Stone ou Morgan Freeman, mas o que com ela se passou no plateau de O Último Tango em Paris, naquele triângulo que Bertolucci comandava, continua aí para lembrar que, mesmo numa relação que se pretende apenas profissional entre um realizador e os seus actores, há limites a respeitar.

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