A vida no fundo da terra em busca do “ouro branco”
Estejam paradas ou a trabalhar, nas pedreiras de mármore da região de Borba o perigo está sempre à espreita. Umas ainda são o sustento da terra, ensombrada pelo recente desastre que já lhes levou duas pessoas. É uma terra à espera de fazer o luto. E a fazer perguntas sobre quem culpar.
Manuel sai do carro. Dirige-se ao grande precipício e salta de imediato para um enorme bloco de pedra clara, num só impulso, confiante e preciso. Dali, parece que se está nas alturas, quando o olhar se dirige para baixo e se vê a cratera rodeada de pedra mármore, abandonada ao tempo. Era preciso ir a Barro Branco, uma “aldeota” com nome a condizer com a paisagem.
É, na verdade, freguesia de Santiago Rio de Moinhos, concelho de Borba, onde Manuel Clérigo nasceu há 68 anos. Ali, o verde dos campos de oliveiras, das ameixoeiras e das vinhas, perde-se entre montes de pedras que parecem erguer-se até ao céu, gruas velhas, que ajudaram no negócio das pedreiras que foi escavando em direcção ao interior da Terra. É daqui que se retira “ouro”. “Ouro branco”, chama-lhe Manuel porque foi (e ainda é) o sustento das gentes de Estremoz até Pardais. “Era uma forma de nós sobrevivermos. O ouro branco dava de comer a toda a gente”, diz. Borba não é excepção.
Desde segunda-feira da semana passada que aquelas terras alentejanas lamentam que um deslizamento de terras e pedras na antiga estrada Nacional 255 tenham matado dois operários que trabalhavam no fundo de uma pedreira. As autoridades acreditam que há mais três pessoas debaixo daqueles escombros, mas ainda não foi possível localizá-las. É uma terra à espera de fazer o luto, obrigada agora a olhar para o passado, para entender como pode, no presente, um desastre destes acontecer-lhes.
No Alentejo profundo, de meados do século XX, a extracção de mármore das pedreiras começou a ganhar força. Havia ali “muita miséria”. “A vida de Borba era pobre. Não tínhamos indústrias nenhumas, não tínhamos nada a não ser a agricultura.” A Manuel não restou senão aquele destino: fez a quarta classe e, mal chegou aos 14 anos, foi logo para as pedreiras onde o pai já trabalhava.
Aquelas profundezas que se vêem a cada passo, separadas por estradas ou caminhos de terra batida, resultaram das escavações feitas por várias gerações de homens. Famílias inteiras trabalhavam no interior do solo. “Hoje quase tudo abalou”, há-de repetir Manuel, que passou 46 anos no fundo da terra, ao longo de uma manhã em que guiou o P2 por algumas pedreiras de Borba e Vila Viçosa, ora encerradas, ora em funcionamento.
Recuperar paisagem
No início deste século, a extracção de mármore naquela região começou a abrandar. Por isso, algumas pedreiras foram sendo desactivadas.
De acordo com um estudo feito em 2016 pela Direcção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) sobre as pedreiras no Alentejo, das 371 explorações existentes na região, 24 não tinham licença de exploração, embora esse processo estivesse em curso para uma parte delas. Havia 347 pedreiras licenciadas, mas 251 estavam parcial ou totalmente desactivadas. Destas, 143 estavam em situação de abandono e só 47 tinham autorização de suspensão.
Em Borba, contavam-se 55 pedreiras e no município vizinho de Vila Viçosa havia 155. Ambos os concelhos concentravam a larga maioria das 232 pedreiras do distrito de Évora. Em Borba, das 54 pedreiras dedicadas à extracção de mármore, apenas cinco permaneciam activas em 2016. Em Vila Viçosa, das 114 pedreiras licenciadas para o mesmo efeito, só 33 funcionavam. Já pouco se procura pelo “ouro branco”.
Face a este abandono, a lei estipula que o plano de exploração das pedreiras contemple também a sua desactivação. No entanto, os dados da DGEG mostram que mais de metade das pedreiras licenciadas do Alentejo não tinha plano ambiental e de recuperação paisagística válido e aprovado. O que quer dizer que tanto os proprietários das pedreiras, como a entidade fiscalizadora estão a falhar, alertou, por estes dias, o presidente da associação ambientalista Zero. Para Francisco Ferreira, é “necessário um plano de acção” para solucionar este problema, que “constitui um risco para as populações”, com “os poços a céu aberto, ao abandono”, disse ao Diário de Notícias.
Algumas pedreiras desactivadas já se encheram de água, com ajuda da chuva e de lençóis freáticos. Já nem se lhes vê o fundo. Em algumas já se criam peixes, como a carpa e o achigã, conta Manuel. É impossível perceber exactamente qual é a sua profundidade. Umas têm protecções à volta e ainda se vêem as placas com avisos de perigo; noutras, o tempo encarregou-se de ir desbotando esses avisos.
“As pedras pregam-nos partidas”
Além de presente na fachada do Paço Ducal de Vila Viçosa, do século XVI, o mármore está em todo o lado nestas terras. É o negócio que lhes deu desgostos, mas que lhes foi pondo o pão na mesa. Como que em jeito de homenagem, há uma rotunda, à entrada de Borba, dedicada ao Trabalhador do Mármore. Em Vila Viçosa, o chão das paragens do autocarro é ladrilhado na mesma pedra.
As pessoas destas terras alentejanas habituaram-se a perder família, amigos ou conhecidos nos grandes fossos de mármore que preenchem a paisagem. “As pedras pregam-nos partidas. Ficou aí muita gente assim sem a gente pensar.” Quando a confiança exagerada desafia a sorte, os acidentes acabam por acontecer, diz Manuel. “Eu tive muita sorte que só levei uma porrada de um cabo numa perna. Fiquei com uma feridazita. Olhe, não teve de ser”, conta.
Mas “antigamente era muito pior”. Nos últimos 20 anos, o sector evoluiu mais do que nos outros 30, conclui o antigo pedreiro, que arrumou definitivamente luvas e botas em 2009.
Hoje a pedra é serrada com “fio de diamante”. Antigamente, recorriam ao fio helicoidal. “Era serrado a poder de areia e água e o fio rodava”, o que criava umas ranhuras na pedra. Punham-se dois homens a trabalhar, metiam-se “os guilhos” e batia-se com marrões, uma espécie de martelo, e separava-se uma pedra da outra. Tudo à força de braços. “Muitas vezes, falseavam as pessoas porque a gente pensava que [as pedras] abriam para um lado e abriam para o outro. Houve muitos que ficaram entalados no meio das duas partes”, recorda Manuel. E, desde o fundo da pedreira, tinham de fazer deslizar os grandes blocos de pedra sobre rolos de madeira. Às vezes, quando falhavam as forças, lá vinha uma desgraça.
“Era um trabalho duro. Era tudo à força. Levávamos dias inteiros a partir pedra com um marrão. Havia muita lama e os invernos eram piores do que são agora. Depois não tínhamos botas de biqueira de aço, nem fatos de borracha”, diz Manuel.
Depois de cortado o bloco de pedra do grande maciço, é que se definem “os que são bons e os que não são bons”, explica. O mármore com muitos fios, veios, “não tem valor”, porque os fios não dão polimento à pedra.
Quanto mais limpa e uniforme for o mármore, maior o seu valor. Quer-se branco e rosa, “liso, liso”, diz Manuel. É por isso que algumas pedreiras foram fechando. O material que a terra esconde deixou de ser bom.
“Cantando o fado”
Depois de 46 anos a furar a terra, Manuel Clérigo diz que ficou com a “barriga cheia de pedreiras”. João Ratado, de 62, diz que sempre tentou “fugir” de trabalhar nelas. Que nunca se apaixonou pelo ofício, sobretudo pelos perigos que antigamente representava. “As pessoas dizem que já não é tão perigoso. Acredito que sim, mas a perigosidade existe sempre.”
Assim como Clérigo, Ratado nasceu em Santiago Rio de Moinhos, mas vive em Vila Viçosa há mais de 40 anos. O pai e o irmão trabalharam nas pedreiras. É por isso que diz que cresceu a ouvir falar de acidentes. “Ui, se cresci. Sempre houve mortes nas pedreiras. A maior parte dos acidentes que se dão aqui são por negligência, demasiada confiança, descuidos fatais”, acredita. Tem muitos amigos que ainda hoje são funcionários do mármore.
E, apesar de ter conseguido fugir às pedreiras, trabalhou cinco anos numa serração de mármores, a cortar a pedra que outros retiravam. É que este negócio é o “motor” da economia local. “Tudo funciona à volta das pedreiras. Há a extracção, que depois precisa do apoio das oficinas de transformação e, por acréscimo, das oficinas de mecânica. É uma envolvente à volta do mármore”, nota João.
Segundo dados da Direcção-Geral de Energia e Geologia, a extracção de mármore no Alentejo foi de quase 200 mil toneladas, movimentando 32,9 milhões de euros, em 2015. Cinco anos antes, foram extraídas 383 mil toneladas de mármore, num total de 43,9 milhões de euros. Há uma tendência de descida desde 2010, com um pico em 2013, ano em que foram extraídas 427 mil toneladas de mármore, envolvendo 47,5 milhões de euros. “Se os mármores um dia acabarem, isto é uma miséria autêntica”, acredita João Ratado.
Ainda assim, gosta de andar pelo meio delas. Todos os domingos percorre um trilho de BTT com amigos, pelo meio das pedreiras, pelos caminhos de terra batida, barrenta, que separam as pedreiras, marcados com rodadas dos camiões que transportam os grandes blocos de mármore.
Passa pela do Monte Del-Rei, em Bencatel, e pela do Cochicho, na zona de Pardais, que é também muito visitada por turistas. É um complexo imenso. Será das maiores da região, também com 140/150 metros de profundidade. Um complexo sistema de gruas é controlado por um homem com um comando na mão, cá de cima. Há um rádio, para o caso de ser necessário falar com os trabalhadores que estão lá em baixo.
É um lugar onde o sol mal entra e onde talvez meia dúzia de operários vão cortando o interior da Terra. Vistos de cima, são meros pontos, de tão fundo que aquele poço é.
Ao longo dos anos, a tecnologia foi fazendo a sua parte. Os processos foram ficando mais rápidos e menos perigosos, ainda que esta continue a ser uma profissão de risco. Já não é preciso rodar as pedras sobre rolos de madeira. As máquinas, gruas, fazem esse trabalho. Dependendo do tamanho da pedreira, os camiões entram lá dentro, carregando blocos com 24,25 toneladas. Às vezes mais, diz Manuel, “e vem por aí cantando o fado”.
A menos de dez minutos de Pardais, em Bencatel, falta pouco para a uma da tarde e já não há muitos trabalhadores na pedreira de Monte d’El Rei, outra das maiores da zona. Esta exploração foi apontada como tendo “problemas de estrutura nos taludes”, disse à agência Lusa o investigador Carlos Filipe, que integra o Centro de Estudos de Cultura, História, Artes e Património de Vila Viçosa.
A Monte d’El Rei situa-se na Estrada Nacional (EN) 254, entre Vila Viçosa e Bencatel. Por lá, os trabalhos continuam normalmente. A 140 metros de profundidade, vêem-se camiões a carregar pedra, a saírem lentamente em direcção à superfície, carregando 40 toneladas, há-de dizer o encarregado da obra, João Rebocho, 55 anos, que começou nas pedreiras tinha 17 anos.
“Ao tempo que aqui não vinha. Não pensava que isto estivesse tão bonito conforme está”, repara Manuel Clérigo. Quando passava por ali há 30 anos, aquela pedreira “era só uma escombreira pequena”.
Em torno do grande fosso, alinham-se grandes blocos de mármore para que segurem as terras. De um lado, avista-se uma espécie de galeria cavada para o lado da EN254, que está a gerar todas estas críticas. O encarregado diz que se está a expor o que “não é verdade”, admitindo que ali estão reunidas todas as condições de segurança, que não há perigo algum de a estrada ruir.
Manuel diz que já não tem coragem de ir até lá abaixo. Hoje a pedreira tem cerca de 20 funcionários, poucos rapazes novos. Ali, “o mármore é de primeira”. Hoje, praticamente toda a pedra que dali é retirada vai para exportação. O melhor mármore dali — branco, mais brilhante — pode custar entre 2500, 3000 euros por tonelada. Ainda há dias estiveram nesta pedreira três indianos, que compram os blocos e depois os trabalham. Mas exportam também para a China e para o Médio Oriente, onde há palácios árabes decorados com o mármore português. Com a guerra no Médio Oriente, as encomendas abrandaram. Algumas pedreiras fecharam, outras acabaram vendidas a grupos estrangeiros. Depois chegou a crise, e os grandes blocos de pedra mármore amontoaram-se, à espera de comprador.
“A gente volta as culpas para quem?”
Ainda hoje soa a campainha que “chama” os trabalhadores para o almoço. Quando Manuel andava nas pedreiras, não havia ordem “para comer uma bucha” fora da hora de almoço. “Se comíamos, era às escondidas. Só àquela hora que eles mandavam comer.” Os mestres eram duros. Chegou a trabalhar com o “engenheiro Portas” — Leopoldo Portas, avô do ex-líder do CDS e ex-vice-primeiro-ministro, Paulo Portas, que era engenheiro de minas.
Era um trabalho mal pago. Ia-se saltando de patrão em patrão para ganhar mais uns tostões. Fizeram-se muitas greves no sector do mármore, conta Manuel, que lamenta nunca terem olhado para os trabalhadores “com bons olhos”. “Era um trabalho mal pago. Isto é um trabalho de risco. É isto e os mineiros. Só [ainda] estamos aqui porque andamos ao solinho e eles andam debaixo daquilo”, diz.
Ali, em Poço Bravo, a poucos minutos de Barro Branco, Manuel Clérigo passou grande parte da vida de trabalho. “Assentei praça aqui no dia 6 de Abril de 1966.” Em 1971, foi para a tropa, na Guiné. Regressou depois a uma outra pedreira, mais abaixo, até entrar na reforma.
Afinal, Manuel fez carreira nas pedreiras. De aprendiz a encarregado geral. Hoje já não tem os calos que tinha. Chegava a lixá-los para que quando ia namorar com a mulher que tem hoje ela não os sentisse.
Foi-se habituando aos estrondos dos tiros para rebentar pedra, às pedras a caírem nas escombreiras. Aos homens a ficarem debaixo de pedra. Na pedreira do Poço Bravo morreu um rapaz com 22 anos. “O engenheiro Portas mandou fazer uma espécie de sepultura caiada a branco e tinha uma faixa azul”, recorda. A campa já desapareceu, mas a lápide continua ali. “Houve uma altura em que era rara a semana em que não morria uma pessoa aqui nesta zona”, diz.
De volta ao presente, o que lhe tem tirado o sono é pensar naquelas toneladas de pedra e terra que caíram na antiga EN 255 — estrada centenária, que já foi real, por fazer a ligação ao Paço Ducal de Vila Viçosa. Talvez pela vida passada nas pedreiras, ali mesmo, à mercê do perigo e nunca lhe ter acontecido nada de pior, jamais lhe passou pela cabeça que acontecesse uma coisa assim.
O mármore da pedreira para onde a estrada desabou — explorada pela empresa Plácido Simões — tinha várias fracturas, admitiram alguns geólogos ao longo da última semana. Essas fissuras na pedra abriram caminho a que a água se infiltrasse, acelerando os processos de meteorização. O que acabou por ir tirando a estabilidade das escavações nestes maciços rochosos. “Com os anos, aquilo foi indo, indo, indo. Com as águas que se infiltraram, aquilo escorregou tudo. Nunca me lembro de ver uma coisa assim.”
“Agora toda a gente vê os perigos”, diz João Ratado, que tinha passado naquela estrada ainda no domingo, um dia antes do acidente. “Nós passamos por aqui. Tínhamos a certeza de que não havia perigo”, diz, apesar de se aperceberam da proximidade das pedreiras às estradas. “Como disse alguém na televisão, não foram as estradas que se aproximaram das pedreiras, foram as pedreiras que se aproximaram das estradas”, diz.
Era por ali que iam a Vila Viçosa para evitar fazer mais quilómetros, poupar mais tempo. “Agora, a gente volta as culpas para quem? A câmara por que é que há-de ter culpa? Eu volto a culpa aos engenheiros que estavam ali”, atira Manuel, que permitiram que a pedreira — que começou a ser explorada na década de 1980 e terá mais de 80 metros de profundidade — se estendesse para o lado da estrada. “E agora vamos culpar quem? E quem é que havia de dizer que aquilo caía?”