De África para o Mundo: como descolonizar a história da Primeira Guerra Mundial?
Se dos soldados africanos pouco se fala, destes corpos de trabalho não há memória, perdidos no rasto amargo da história.
O mundo comemorou no início do mês o centenário do armistício que marcou o fim da Primeira Guerra Mundial. Porém, na África Oriental, uma das importantes frentes desta guerra, o armistício entre as forças aliadas e os alemães foi assinado a 25 de novembro. Aqui, como noutros palcos de guerra, milhares de vidas foram marcadas pela violência deste conflito. Mas quando o mundo comemorou este centenário, o continente africano foi um dos principais ausentes desta celebração. E assim se apagaram as razões da entrada de Portugal neste conflito, e se esquecem os milhares de vidas africanas perdidas quer no continente, quer fora defendendo os interesses de potências estrangeiras e as vidas de pessoas desconhecidas.
As razões da Primeira Guerra Mundial, exógenas ao continente, envolveram mais de dois milhões de africanos, simbolizando a confirmação da partilha do continente realizada 30 anos antes, na conferência de Berlim. Esta lembrança é importante, porque se grosso modo as modernas fronteiras africanas se definiram neste pós-guerra, convém não esquecer que os principais países envolvidos neste conflito – o Reino Unido, a França, a Alemanha, a Bélgica e Portugal – tomaram assento na conferência de Berlim, partilhando o continente. Assim, uma comemoração ‘global’ da Primeira Guerra Mundial foi, de facto, a comemoração da história colonial europeia sobre esta guerra, uma interpretação parcial deste conflito. E as vozes que escrevem esta história são europeias. As pequenas ações realizadas pelas potências envolvidas na Primeira Guerra Mundial para lembrar o papel das ex-colónias destinam-se a confirmar a narrativa dominante sobre a grandeza dos impérios coloniais.
E talvez os mais esquecidos de todos sejam os carregadores, essa força humana fundamental à realização desta guerra nos palcos da África Oriental. Ao longo da campanha da África Oriental, talvez a mais longa e mortífera frente de guerra no continente, as tropas britânicas, alemãs e portuguesas estiveram dependentes dos carregadores (muitos dos quais eram mulheres), na proporção de quatro carregadores por um soldado. Aos carregadores cabia não só o transporte, com o seu corpo, do equipamento militar; também era sua tarefa cozinhar, limpar e recolher informações, assegurando parte importante da logística. E, tal como os soldados envolvidos numa guerra de guerrilha, sofreram, ao longo de quatro dolorosos anos, exaustão, desnutrição e doenças.
Se dos soldados africanos pouco se fala, a não ser em ambientes académicos especializados, destes corpos de trabalho não há memória, perdidos no rasto amargo da história.
No contexto africano, o século XX inaugura, com violência inaudita, a chegada do moderno colonialismo de ocupação, um projeto político estruturado em torno de uma linha abissal onde, de um lado, existiam cidadãos que urgia proteger e, do outro, sujeitos sem nome, corpos úteis apenas para o trabalho braçal, para servir os agentes da civilização. É assim que aos africanos é negado o direito a estar representados nas negociações que levaram ao Tratado de Versalhes, que marcou o fim deste episódio de violência.
Parte dos políticos europeus que celebraram recentemente, na Europa, o fim de uma guerra mundial são líderes de países que, ainda hoje, participam em episódios de guerra. Os EUA, a França e o Reino Unido estão envolvidos diretamente em conflitos no Afeganistão, no Iraque, na Síria, na Líbia, entre outras regiões. Como vários autores têm vindo a chamar a atenção, de acordo com as normas de direito internacional estes líderes políticos são criminosos de guerra. Porém, não são penalizados porque se têm projetado como vítimas, argumentando o direito legítimo a se defenderem de ‘agressões externas’. E de países agressores transformam-se em países vítimas, que venceram um conflito. Mas se alguma coisa aprendemos com a Primeira Guerra Mundial é que a guerra é o crime supremo, que mais tarde será definido em Nuremberga como um ‘crime contra a paz’. Projetando-se como os defensores da democracia e da liberdade, os EUA e os seus aliados estão envolvidos numa aventura militar mundial, numa guerra que inaugurou o século XX e que ameaça o futuro da humanidade. Atualmente, os EUA participam, no palco africano, em várias missões militares, operando em mais de 20 países. De acordo com a revista Vice, estas tropas realizaram mais de 3500 ações e exercícios militares anuais no continente, o que corresponde a uma média diária de cerca de dez missões. Estes dados levam-nos a perguntar qual a razão desta guerra silenciosa que os EUA (e outros aliados) estão a levar a cabo no continente.
Dar a conhecer a história da Primeira Guerra Mundial pela voz dos que nelas lutaram expõe experiências subalternizadas e expressa o desejo de um reconhecimento mais amplo da contribuição do Sul global à luta contra qualquer projeto hegemónico opressor. Reclamar uma outra história feita de história em rede denuncia a continuidade do projeto colonial, que se traduz, entre muitos outros exemplos, no silenciamento da violência experimentada pelos africanos nesta guerra. Denunciar as injustiças epistémicas sobre o conflito mundial que iniciou o seculo XX é um dever de memória, central à produção de uma outra história, a partir de outras experiências vividas nesta guerra. É parte da luta pela democracia, pela dignidade.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico