A cultura como política

O nosso problema, para dar a volta, é de escala - essa viragem, possível, muito amadorismos deixará pelo caminho, mas é a única via de crescimento interior, de qualificação da democracia como acesso a uma vida possível de todos.

A questão cultural como política é um problema de democracia e é esse o problema que há com a cultura — a dimensão do que é criação cultural inscrito na democracia é o seu sentido possível, a sua amputação, o estabelecimento da mediocracia como paradigma. É mais consensual falar do direito de todos acederem a bens culturais considerados universais, por razões objectivas, de qualificação e reflexão, exposição, do especificamente humano, que explicar as razões necessárias da estruturação da democracia como espaço crítico, modo de gerar de um debate público pela actividade ideal das fontes de criação crítica radicadas na sua génese.

O problema com a nossa democracia é esse: a falta de qualidade do que resulta do debate público - e o exemplo das touradas como a epidemia de casos de bola a encher ecrãs de um culto constante da irrelevância, boçalidade e tacanhez clubista estão aí para o provar - alimenta a sua desqualificação permanente, é um círculo vicioso. Nesse espaço engole-vomita tudo, de lixo informativo-ideológico em enxurrada imparável, a dimensão do que seja crítico, culturalmente informado, mal emerge, desaparece e só serve o circuito restrito que dessa informação qualificada necessita — voltámos aqui ao “entre nós entre nós” de que falava O’Neill com as adequações de quantificação que o tempo trouxe, há mais universitários, gente “preparada”, mesmo que isso signifique uma formação intelectual falhada em muitas áreas, as da qualificação da língua e da invenção estimulada por um fundo de referências culturais, de leituras, rico. A perda que verificamos - e quem dá aulas sabe isso - de um universo vocabular alargado substituído por um vocabulário de serviço ao imediato virtual-real, é assustadora — as abreviaturas marteladas são língua, a mão não desenha, não manusescreve, tecla, o mundo sai da cartola-ecrã já pronto a consum’olhar.

Voltando à vaca fria: o que é que é necessário inscrever no corpo da democracia — imperfeito como é podia ser em busca de melhor democracia — para que ela se qualifique desde a base, capaz de se autogerar constantemente como aprofundamento das suas qualidades de diversidade e homogeneidade positivas. Trocado por miúdos: a nossa democracia necessita de alimento vital: o que possa “fabricar” uma ideia de futuro estimulante de experimentar segundo princípios universais de “tolerância, dignidade, igualdade, direitos reais, inteligência pública partilhável” e o que possa justamente esclarecer essa perspectiva como um bom caminho que se trilhe.

E chegámos ao que somos trilhando caminhos concretos, impostos por terceiros mais que escolha própria, a integração europeia que quase impunha o paradigma social-democrata mas que agora vende perigosos descaminhos e não dá passos para uma integração maior. Estamos num ponto de escolha possível — será que essa Europa mais tolerante e aberta ao outro somos nós, mesmo depois do trauma da troika, agora que a Europa se deseuropeiiza?

O problema é de convergência entre o potencial criativo-crítico da sociedade civil e os seus destinos orgânicos, só essa dimensão estruturada das artes e ciências permite uma relevância de criações capaz de se inscrever na nossa vida como riqueza constante sensível e perceptível por todos.

E isso o que é? É o salto que vai da dimensão achafaricada real, num tipo de vida produtiva entre o desenrasca criacionista, espontaneísta, o acaso “genial” e o evento exitoso à peça, para uma dimensão em que as estruturas de criação e investigação, de arte e ciência, tenham as condições logísticas, meios financeiros e de equipa, testados como tal nas práticas da experimentação e invenção específicas, que são o seu desígnio de vida diário e actividade de criação permanente.

Por exemplo: um teatro instalado numa sala sem pé direito nem teia, com um técnico e meio de serviço, sem poder ter um mínimo de elenco residente - fazer um jornal é, sabe-se, trabalho de  equipa e de anos de equipa - assoberbado com as exigências de papelada impingidas de cima para cumprir regras de apoio, absurdas quase todas e inexistentes as necessárias (o controlo não deve ser policial mas estímulo ao devir criativo) não tem a possibilidade de alargar a “experimentação” a um quadro de diálogo verdadeiro com os clássicos e com os contemporâneos, cujas escritas têm pressuposto complexos de acção técnico-humanos — em tempos equivaleu-se à ideia de fábrica — para a sua concretização. Não podemos materializar o legado europeu, Shakespeare, por exemplo — estou a falar da maior parte das estruturas — estando condenados a fazer de Hamlet um eterno monólogo e a fazer a Mãe Coragem só com a carroça — isso é engraçado uma vez mas não é caminho, é negação da experiência, feita sem quadro, não gera lastro de que se alimente, sempre na relação com um outro autor.

Para o labor científico a mesma coisa: não se faz ciência sem tradição de equipa, resultados enquanto património identificado de gestação constante e condições técnico-logísticas-financeiras-administrativas de escala apropriada.

O nosso problema, para dar a volta, é de escala - essa viragem, possível, muito amadorismos deixará pelo caminho, mas é a única via de crescimento interior, de qualificação da democracia como acesso a uma vida possível de todos.

E o país sem essa vertente emancipadora pode reduzir eventualmente a dívida - “o trabalho liberta”, diziam - mas não sai desta tourada de vulgaridade em que está imerso. A qualidade da democracia depende do ar descontaminado de ideologia publicitária e fechamentos provinciano-massivos-glocais e que se possa respirar, da qualidade do cinema próprio, dos teatros de criação e arte, das orquestras e programas, das colecções permanentes dos museus e serviços educativos qualificados, de escolas superiores e universitárias de práticas artísticas autonomizadas, desligadas de politécnicos e universidades, elas próprias a sua universalidade identitária e técnica de perfil, etc.

Dizer também que isso, bem urdido como fazer dos dias, é antídoto contra as violências que espreitam, nomeadamente essas dos populismos - gerados pelo à solta que a economia impôs. E isso, mesmo que saibamos que “a morte é uma flor”.

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