A sorte de Quintino na “desgraça” que apagou Borba

Habituados a desastres nas pedreiras, nunca os borbenses se recordam de terem vivido um assim, que matou pelo menos duas pessoas. Reconhecem os perigos daquela estrada, mas “toda a gente ainda ali passava”.

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Nuno Ferreira Santos

Era dia de ir buscar a neta à escola. Quintino pegou no carro, saiu de Borba para Vila Viçosa, pela antiga Estrada Nacional n.º 255. Às 15h30, estava ao portão da escola e fizeram-se ao caminho de regresso que era o mesmo da ida. Só que o caminho acabou por ter uma paragem. Sempre que o avô vai buscar a neta à escola, a miúda de seis anos gosta de ir dar um beijo à mãe, que trabalha numa das pedreiras rasgadas por aquela estrada. 

Quintino Freire, de 65 anos, parou o carro. Enquanto esperava pela neta, entreteve-se a descascar uma laranja. De repente, um feixe de luz ilumina o céu. As empresas ficam às escuras. Um barulho ensurdecedor, “como se estivessem a demolir um prédio qualquer”, entoa por todo o lado. 

A “para aí 80 metros” do local em que Quintino descascava a laranja, uma parte da EN 255 — estrada centenária, que já foi real, por fazer a ligação ao Paço de Vila Viçosa — desabou para dentro de uma pedreira. Ao longo de 100 metros desapareceu tudo. Para uma profundidade de 50 metros foram arrastadas uma retroescavadora e dois automóveis. Morreram duas pessoas, trabalhadores da pedreira, mas o número de vítimas pode subir para cinco, admitiu a Protecção Civil.

Nem todos podem dizer que há beijos que salvam vidas, mas Quintino Freire acredita que sim. “Mais cinco minutos...” 

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É a tristeza que se comenta no centro da cidade de Borba. Ainda que o ambiente seja de uma estranha acalmia, a noite não foi fácil para os borbenses. Aquilo que aconteceu teima em não lhes sair da cabeça, toma conta das conversas. “Morreu tanta gente nas pedreiras, mas um desastre assim nunca vi...”, diz Manuel Clérigo, de 68 anos, à conversa nos correios. Também ele trabalhou nas pedreiras — 46 anos. 

Empregava-se ali muita gente. “Tinha que se ir trabalhar para o mármore. Era aí que se ganhava o dinheirinho”, diz Manuel.

Quando se ouviu o estrondo, ainda se pensou que tivesse sido um desabamento na pedreira. As pessoas desta terra alentejana habituaram-se a perder família, amigos ou conhecidos nas grandes montanhas de pedra mármore que pintam a paisagem, como aquele que levou o padrinho da mulher de Quintino, Efigénia, que tem uma loja de pronto-a-vestir mesmo no centro de Borba. “Antes havia mais acidentes”, diz.

O certo é que ao longo daquela estrada já se contaram mais pedreiras a trabalhar do que as que hoje em dia ainda operam. E o perigo sempre espreitou por ali, diz Manuel Clérigo, já que o piso empedrado daquela estrada, agora desaparecida, “sempre foi perigoso para o trânsito”.

A estrada que já era ponte 

Não há como olhar para as imagens aéreas da estrada desfeita em blocos, a passar constantemente nos televisores dos cafés, e não pensar no desastre de Entre-os-Rios, lembram os borbenses. 

O desastre tirou-lhes o sono. “Aquilo nunca mais vai ser estrada, mas nunca passou pela cabeça de ninguém que se passasse uma coisa assim”, insiste Manuel, apesar de se comentar no concelho que já não seria seguro passar ali.

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Na verdade, dizem os borbenses, quem passasse na estrada não tinha real noção da dimensão dos poços das pedreiras que ali estão por baixo. Para António Prates, de 66 anos, “o problema aqui foi, há 40, 50 anos, terem deixado crescer a pedreira para o lado da estrada”. Aquele troço da EN 255 acabou por se tornar “quase como uma ponte”.

António aponta o dedo aos empresários das pedreiras que esta terça-feira admitiram que a “tragédia” podia ter sido “evitada” porque “os problemas” da estrada estavam, pelo menos há quatro anos, identificados. E que tinham, inclusive, proposto à Câmara de Borba o corte daquele troço. Mas, apesar das reclamações dos empresários, António Prates repara que são os camiões deles que ali passam diariamente “com 40, 50 toneladas”. 

Era também essa imagem — a dos grandes camiões carregados de mármore a pisar a estrada — que dava confiança a Florindo Moura, de 56 anos, que largou as pedreiras há duas décadas, depois de lá ter trabalhado 12. Diz que nunca teve medo, que passava ali como se nada fosse, que nunca imaginou que uma tragédia tamanha ali acontecesse. “Tanto carro aqui passava, carros pesados. Nunca pensei que acontecesse assim”, lamenta, virando as costas ao lugar “da desgraça”, onde se concentram os jornalistas e curiosos, que estão impedidos de passar para lá de um perímetro de segurança a 300 metros do local do desabamento. 

Terrenos “instáveis”

Nesse mesmo local, quase 24 horas depois do desabamento, foi retirado o primeiro corpo, o de um homem com 49 anos, trabalhador da pedreira.

Além dos dois mortos confirmados, o maquinista e o auxiliar da retroescavadora, mais três homens poderão estar ali soterrados. Dois serão cunhados e moram em Bencatel, no concelho de Vila Viçosa, e estão dados como desaparecidos desde segunda-feira. Segundo o que uma fonte da junta de freguesia disse à agência Lusa, os homens terão indicado a familiares que se deslocariam, na tarde de segunda-feira, a Borba, passando por aquela estrada. 

A GNR de Évora confirmou também que um homem de 85 anos, do Alandroal, que viajava de carro para Vila Viçosa, está dado como desaparecido, podendo também ser uma das vítimas.

Pouco tempo antes de ter sido retirado o primeiro corpo, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, ainda fez uma visita-relâmpago ao local, mas saiu em silêncio. 

Ao PÚBLICO, por volta das 16h, fonte oficial dos Bombeiros Voluntários de Borba disse que estavam em curso os trabalhos para a retirada da segunda vítima identificada, que está soterrada. O comandante distrital da Protecção Civil de Évora, José Ribeiro, disse, em conferência de imprensa, que esses trabalhos se prolongariam até às 22h. 

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Ao longo do dia, a operação desta terça-feira veio confirmar as dificuldades que o comandante previra ao início da tarde. “O perímetro é muito instável e há um elevado risco de deslizamento de massas, que se foi verificando ao longo do dia, agravado pela precipitação ao longo da tarde”, justificou. 

Por volta das 20h, no local da derrocada, cerca de meia centena de operacionais continuavam a operação de resgate. Com gruas, bombas para retirar água e um íman para procurar as viaturas que estão submersas. 

O que todos os borbenses querem agora é que a poeira não assente e se peçam responsabilidades, para que não fique por responder a pergunta que Manuel Clérigo mais faz: “De quem é a culpa?”

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