Paris quer novo líder na Renault para salvar aliança com a Nissan
Governo francês diz que Carlos Ghosn "não está em condições" de continuar. Mas só a saída dele pode não chegar: os japoneses mostram ter muitas dúvidas.
O líder da aliança Renault-Nissan, Carlos Ghosn, parece ter o destino traçado. O Estado francês, que é um dos principais accionistas da Renault, com 15% do capital, acaba de puxar o tapete ao gestor que, na segunda-feira, foi detido em Tóquio por suspeitas de fraude fiscal e outras irregularidades. Paris é cautelosa em relação às suspeitas e à investigação judicial, mas assume sem rodeios a substituição do executivo.
"Carlos Ghosn não está em condições de liderar a Renault", disse o ministro francês da Economia e das Finanças, Bruno Le Maire, acrescentando que iria abordar a questão da presidência da Renault-Nissan com os parceiros nipónicos que, na segunda-feira, foram duros com Ghosn, prometendo demiti-lo na quinta-feira.
"Nós não pedimos formalmente a saída de Ghosn da equipa de gestão por uma razão simples: não temos qualquer prova e respeitamos os procedimentos legais", contrapôs Le Maire. Apesar destas cautelas, entende no entanto que "a Renault foi enfraquecida, o que obriga ainda mais a uma rápida actuação", salientou o governante nesta terça-feira de manhã, horas antes de a administração da Renault se reunir para analisar o assunto.
Nas bolsas, a detenção de Ghosn e Greg Kelly, director não executivo de Nissan, continua a fazer mossa: na bolsa de Paris, a Renault (líder de vendas de ligeiros em Portugal) mantém-se em queda, perdendo 1,42% (para 58,22 euros) às 15h30; em Tóquio, a cotação da Nissan caiu 5,45%, depois de na segunda-feira ter registado uma descida ligeira (-0,45%); já na bolsa de Frankfurt, o comportamento da Nissan é precisamente ao contrário: depois de perder 6,42% no dia das detenções, nesta terça-feira está a recuperar ligeiramente (mais 1,23%, para 7,38 euros).
Ressentimento japonês?
Para os franceses, a manutenção da aliança – que desde 2016 também envolve a Mitsubishi – é uma prioridade. Mas Ghosn não faz parte de uma solução futura. É um homem isolado. Só a equipa dele na Renault veio a público manifestar-lhe apoio, num email interno assinado por Thierry Bollore, responsável pelas operações. Do Líbano, onde estão as raízes familiares de Ghosn (que nasceu no Brasil e tem nacionalidade francesa) também surgiram palavras de apoio. Mas será no Japão que tudo se joga e dali só surgem críticas ao homem e ao modelo de gestão.
A imprensa japonesa passou a dar voz nas últimas horas a fontes anónimas que trazem a lume detalhes comprometedores para o executivo que durante quase 20 anos conseguiu unir duas empresas separadas por quase 10 mil quilómetros, duas culturas empresariais distintas e que, mesmo assim conseguiram selar uma improvável aliança tecida em participações cruzadas. A fusão pura nunca foi possível, devido às muitas diferenças, mas Ghosn encontrara um modelo para viabilizar as empresas e, mais do que isso, mantê-las a jogar na primeira liga do mundo automóvel.
Em duas décadas, Ghosn colocou a Renault na direcção certa e tirou a Nissan da falência. Ele foi o cimento deste casamento que entrou em crise. O CEO da Mitsubishi, Osamu Masuko, diz que "não há ninguém na Terra como Ghosn que possa gerir a Renault, a Nissan e a Mitsubishi". Haja ou não substituto, há declarações que apontam para divisões mais profundas: do lado da Nissan, fala-se em "subalternização" dos interesses japoneses, que ao longo de quase 20 anos de parceria contribuíram com muita tecnologia, em que a Renault se alavancou para disputar a liderança mundial das vendas à Volkswagen e à Toyota.
A Mitsubishi também vai averiguar internamente a gestão de Ghosn, segundo Masuko, e a administração deverá reunir-se na próxima semana.
Casas de luxo pagas pela Nissan
Carlos Ghosn era chairman (presidente do conselho de administração) da Nissan e da Mitsubishi e chairman e CEO (presidente executivo) da Renault. Tinha sido reconduzido pelos franceses para mais quatro anos de mandato no início de 2018. Porém, já teria expressado a possibilidade de se retirar antes. Foi detido na segunda-feira, depois de aterrar no aeroporto de Haneda, em Tóquio, num jacto privado. Foi ouvido por procuradores de Tóquio, que o acusam de ocultar 44 milhões de dólares (38,5 milhões de euros ao câmbio actual) – cerca de metade dos rendimentos que auferiu entre 2010 e 2015. Além disso, é suspeito de desvio de dinheiro das empresas para benefício próprio.
O jornal Nikkei revelou mais detalhes destes benefícios. Num artigo desta terça-feira, sem identificar fontes, afirma que Ghosn teria usufruído de duas casas de luxo (uma em Amesterdão e outra em Beirute), pagas por uma subsidiária holandesa da Nissan, criada em 2010. As transacções teriam sido supervisionadas por Greg Kelly, director-executivo da aliança Renault-Nissan, que era visto como o braço-direito de Ghosn e que também foi detido na segunda-feira.
Segundo o mesmo jornal, esta empresa – cujo principal activo é constituído por capitais de risco para investir em startups – pagou 17,8 milhões de dólares por aquelas duas residências, assegurando ainda as despesas de manutenção e limpeza. Nem a Nissan nem os parceiros da aliança, Renault e Mitsubishi, têm operações significativas em Beirute, salienta o Nikkei.
O presidente-executivo do fabricante nipónico, Hiroto Saikawa, foi bastante duro na apreciação ao caso. Numa conferência repleta de jornalistas, invocou "indignação", falou em "desespero", criticou a concentração de poderes num homem só. Acusou Ghosn e Kelly de serem os "cérebros" de "um grande número de irregularidades". Garantiu que ninguém sabia das alegadas irregularidades, até ter surgido uma denúncia anónima. Uma ideia em que poucos analistas da indústria parecem acreditar.
Como diz um analista do Wall Street Journal, a propósito deste caso, a queda de reis costumava ser sangrenta. Com Ghosn – que foi baptizado como Le Imperator e "Le Cost Killer" – de saída, fica a dúvida se a maior aliança automóvel do mundo também está prestes a ser desfeita.