Sidi Larbi Cherkaoui assistiu ao seu funeral (e sobreviveu)
A linguagem do coreógrafo belga, que tanto chega a Beyoncé e Jay-Z como aos monges de Shaolin, foi celebrada em São Petersburgo, na recta final dos Prémios Europa de Teatro.
Em 1952, Osamu Tezuka criou uma das personagens mais populares da manga japonesa, o Astro Boy. Versão local da história de Pinóquio, este andróide cujos circuitos eléctricos são permeáveis a sentimentos humanos nasceu do vazio deixado pela morte do filho do seu criador. Mais de 50 anos mais tarde, em 2011, quando o coreógrafo belga Sidi Larbi Cherkaoui chegou ao Japão, foi justamente o universo anime de Tezuka que se propôs traduzir para a dança. Talvez porque, arriscava por estes dias a jornalista japonesa Natsume Date na sessão destinada a discutir a obra deste vencedor do Prémio Europa de Teatro – Realidades Teatrais 2018, o cruzamento por vezes confuso e conflituoso entre aquilo que há de humano e de robô em Astro Boy ecoe a dificuldade de equilíbrio entre dois mundos que o coreógrafo vem experimentando enquanto resultado do encontro entre um pai magrebino e uma mãe centro-europeia.
Mesmo mantendo no título a inspiração inicial, TeZuKa, a peça resultante desse período de criação no Japão, acabaria por integrar elementos evocadores dos desastres nucleares da história recente daquele país, assim como do terramoto e do tsunami que nesse mesmo ano causaram o pânico uma contabilidade desesperada de mortos (os números oficiais apontam para mais de 15 mil). A jornalista japonesa lembrou na Dom Aktera (Casa do Actor) de São Petersburgo que o processo de criação de TeZuKa teve de ser interrompido dada a gravidade da situação: os intérpretes deixaram a cidade, mas Cherkaoui ficou. “Um bailarino tem de enfrentar a realidade e dançar com ela”, justificou então o coreógrafo.
A voz de Natsume Date foi apenas uma das que ajudaram a esboçar um retrato do coreógrafo distinguido nesta 15.ª edição do Prémio Europa de Teatro – Realidades Teatrais. Traços como a polifonia das suas criações, a sua curiosidade sem limites ou a sua extraordinária presença – que influencia os ensaios mesmo quando ausente, segundo a lenda – foram evocados com tal exaltação que o próprio comentou, no final, que sentia ter acabado de assistir ao seu funeral.
Horas mais tarde, confessaria ao PÚBLICO que ver descodificada à sua frente a arquitectura artística que até aqui construiu o pôs a pensar em despedidas – ou num fim de ciclo, o que abre espaço para um renascimento. Não escondeu o difícil que foi ouvir-se passado para palavras, traduzido por jornalistas, directores artísticos ou pelos colaboradores com quem tem trabalhado em repetidas ocasiões: “Tal como é difícil ouvir críticas, também é difícil ouvir elogios. É difícil como artistas estarmos sempre a colocar-nos nas mãos dos outros. Se bem que estas pessoas são aquelas em quem mais confio.” Mas, como explicou há pouco tempo a um jornalista australiano, “o amor que recebemos dos outros não é eterno, tem altos e baixos”: “Aqueles que acreditam em nós deixarão de acreditar. Para depois acreditarem de novo e pararem de acreditar, sempre assim.”
As opiniões que seguiu com imperturbável atenção em São Petersburgo, porém, disseram-lhe mais sobre quem as proferiu e sobre a relação que têm com ele – não tanto sobre a sua obra. “Desde criança que tenho muitas opiniões fortes acerca de mim mesmo. Sempre fui o meu maior crítico e o meu maior inimigo, mas acredito mais em mim do que qualquer outra pessoa pode acreditar. Quando estamos no espaço público, precisamos de aprender a ouvir os outros mas não de aceitar tudo aquilo que nos dizem”, diz-nos.
Toda a sua carreira foi construída sobre essa premissa de “tentar provar às pessoas que estão erradas”, sublinha. E nesse sentido este prémio deixa-o "muito feliz", "porque prova imensas coisas". Prova que os seus pais estavam enganados quando, na sua adolescência, o avisaram de que nunca conseguiria viver da arte; ou que não tinha razão o professor de ballet que vaticinou, tinha ele 16 anos, que jamais poderia fazer parte do mundo da dança porque tinha começado demasiado tarde. “Claro que esta negatividade pode desencadear uma resposta positiva. Mas ainda me dói quando os meus pais me criticam, quando aquele professor não acreditou em mim e quando um crítico afirma que o meu trabalho é terrível”, diz. O tempo, no entanto, ensinou-o a enterrar essas palavras e a não deixar que elas o detivessem. A lição revelar-se-ia fundamental quando, em 2015, ao ser nomeado para a direcção do Royal Ballet Flanders, se sentiu, pela primeira vez, claro alvo de racismo: “Apesar de eu ser flamengo, muita gente se manifestou a favor de que o cargo fosse entregue a alguém que tivesse um nome mais flamengo do que o meu.”
De onda em onda
À programação oficial do Prémio Europa de Teatro, em São Petersburgo, Sidi Larbi Cherkaoui levou Puz/zle (2012), impressionante peça em que bailarinos das mais variadas linguagens de origem (da clássica ao hip-hop) lidam com enormes blocos de construção, rodeados pela música vocal do grupo corso A Filetta e da cantora libanesa Fadia Tomb El-Hage, e pela percussão e pela flauta do japonês Kazunari Abe. Aquilo a que assistimos é uma comovente travessia pela História, desde um lugar primitivo até à contemporaneidade em que muros se erguem para separar povos. Os blocos propõem sempre uma tentativa de construção a que se segue, sem excepção, o falhanço. “Funciona como uma descrição dessas tentativas de criar uma sociedade e do modo como acabam sempre por ruir”, confirma Cherkaoui. “E depois vem uma nova tentativa e acaba por ruir de novo. Nada dura para sempre. E talvez isso seja muito triste, mas é como eu vejo o mundo – por ondas. Tento gerir a minha vida de maneira a que quando uma onda está a morrer já estou a saltar para outra, como um surfista.”
E é esse ímpeto que tem levado Sidi Larbi Cherkaoui a circular entre uma linguagem mais clássica e outra mais contemporânea, incluindo desvios como coreografar actuações para Beyoncé (e o seu inescapável vídeo a dois com Jay-Z no Museu do Louvre, Apeshit) ou aquele que o levou até ao Japão para trabalhar com um grupo de monges do Templo de Shaolin (Sutra?, de 2008, que por cá se viu no Centro Cultural de Belém dois anos depois). Quando sente o movimento esgotar-se chama pela música ou pelo texto, quando detecta uma exaustão na sua relação com alguma linguagem vira-se para outra totalmente diferente. Na altura, “não queria mais trabalhar com artistas”, e por isso foi à procura de quem nem sabia exactamente o que significava ser coreógrafo, para redescobrir o prazer de criar uma peça do zero, num ambiente livre de expectativas. Agora, quando os monges fazem uma demonstração da sua prática no Templo de Shaolin, integram técnica e movimento desenvolvidos com Sidi Larbi Cherkaoui. E esse, diz, é o seu maior orgulho – perceber que deixa nos outros tanto quanto os outros deixam em si.
O PÚBLICO viajou a convite do Teatro Nacional D. Maria II e do Prémio Europa de Teatro