O “caso da academia do Sporting”, as greves e a melancolia da Justiça
Tendo em conta o comportamento processual do agora arguido Bruno de Carvalho, não se justificava – com os dados conhecidos – a detenção a um domingo à noite, com o espectáculo de saber onde dormiria o indivíduo.
Agora que está mais calmo o circo mediático em torno dos acontecimentos na academia do Sporting, julgo importante reflectir sobre algumas questões. Obviamente que não conheço o processo e o que sei resulta das notícias publicadas.
Comecemos pela competência delegada pela procuradora-adjunta responsável pelo inquérito na GNR e não na PJ. A Lei de Organização da Investigação Criminal (LOIC: Lei n.º 49/2008, de 27/8) foi criada exactamente para evitar conflitos, neste caso positivos, de competência entre órgãos de polícia criminal (OPC), reservando de modo absoluto à PJ a investigação de um catálogo de crimes, de entre os quais se acha o terrorismo (art. 7.º, n.º 1, al. l)).
De modo incompreensível, o art. 8.º da mesma Lei permite que esse quadro possa ser alterado, pelo que não é inválida a decisão da procuradora deferir a competência à GNR. Simplesmente, lendo o citado art. 8.º, pelo que se sabe, não há qualquer razão objectiva para se afastar a competência da PJ, nos estritos condicionalismos que a norma consagra.
Daí existirem decisões de tribunais superiores que entendem que a LOIC é meramente indicativa, o que tecnicamente está certo, mas político-criminalmente e enquanto teleologia da Lei, é um erro crasso. Erro que cabe ao legislador corrigir e não aos aplicadores do Direito, pelo que me parece urgente revisitar esta “coisa esquizofrénica” de estabelecer um quadro de competências aparentemente exclusivo, mas depois conceder ao Ministério Público (MP) a faculdade de o alterar.
Claro que é a ele que compete a condução do inquérito, mas mesmo o art. 8.º hoje vigente, pelo que conhecemos, nunca – ou muito dificilmente – poderia conduzir ao afastamento da PJ. Tanto mais que, quem conhece a prática sabe – o caso da PJM está aí para o demonstrar – que são diárias as disputas entre OPC quanto à investigação criminal, a falta de circulação de informação e mesmo a sua sonegação. Ainda esta semana integrei um júri de mestrado em que este era o fulcro da discussão.
Estou também seguro, com todo o respeito sincero que me merece a GNR – onde tenho vários amigos –, que se a PJ – como devia – tivesse conduzido as investigações desde o início, não teríamos assistido a uma intervenção tão musculada, de claro exagero, digna de um país de terceiro mundo e que revela a natureza militar da GNR. O excesso de exibição da força enfraquece a força dos argumentos.
Por outro lado, tendo em conta o comportamento processual do agora arguido Bruno de Carvalho, não se justificava – com os dados conhecidos – a detenção a um domingo à noite, com o espectáculo de saber onde dormiria o indivíduo. Nem se diga que os eventuais receios fundados contra “Mustafá” conduziram a que a detenção fora de flagrante delito tivesse de ser lançada ao mesmo tempo. Não é assim, uma vez que uma simples vigilância policial impediria qualquer tentativa de fuga do arguido Bruno. Dispensável, portanto, esta actuação, sendo certo que todo o processo penal é perpassado pelo princípio da proporcionalidade e pela garantia de defesa da dignidade humana.
Do que se conhece, tem-se ainda debatido se este caso configura ou não uma hipótese de terrorismo. Estamos todos – empiricamente – habituados a que este tipo legal tenha motivações religiosas, ideológicas ou políticas, mas o modo como os artigos 4.º e 2.º, n.º 1, da Lei n.º 52/2003, de 22/8, redigiram o ilícito não o exigem: “(…) agrupamento de duas ou mais pessoas que, actuando concertadamente, visem (…) intimidar certas pessoas, grupos de pessoas (…) mediante: a) Crime contra a vida, a integridade física ou a liberdade das pessoas;” e “c) Crime de produção dolosa de perigo comum, através de incêndio, explosão (…)”.
A mera leitura do tipo objectivo, numa fase processual como esta em que se acha encerrado o inquérito com o despacho de acusação pública, não permite dúvidas quanto a concluir que, efectivamente, existem, na perspectiva do magistrado do MP, indícios suficientes da prática deste crime. E bem se compreende, uma vez que o bem jurídico protegido é a paz e segurança públicas, que, pelo que se sabe, foram efectivamente lesados, sendo certo que este é um delito de perigo, em que nem sequer se exige que o interesse tutelado seja efectivamente posto em causa.
Uma última nota: veio a público que o MP e o OPC que o coadjuvou no inquérito não têm acesso a um software de desencriptação de mensagens escritas, o que é simplesmente caricato. Pelos vistos, temos de recorrer a entidades estrangeiras, com as naturais delongas. Se não fosse trágico, seria cómico.
Por estas e por outras se compreende a greve dos funcionários de justiça e a anunciada dos juízes, não cuidando aqui da discussão de saber se estes, enquanto titulares de órgão de soberania, são ou não portadores desse direito. Isso seria matéria para outro artigo, mas, de forma apertada, a minha resposta é afirmativa, como aliás o próprio Conselho Superior da Magistratura já o reconheceu. As especificidades dos Tribunais como órgãos de soberania, a forma como a carreira dos juízes está organizada, não permitem compará-los ao Presidente da República, à Assembleia ou ao Governo, estes claramente impedidos do direito à greve.
Bastará conhecer o dia-a-dia dos tribunais, o profundo desrespeito pelos juízes com uma reforma do seu Estatuto que se vai atirando para as calendas, com uma Ministra da Justiça que na parte remuneratória nem se arrisca a discutir, chutando para Costa e Centeno, para compreender que os magistrados judiciais tenham de dizer “basta”. Por eles, pela qualidade do sistema público de justiça e, em última instância, por todos os cidadãos. Claro que esta greve não é popular e o Governo sabe muito bem disso – pelas complicações práticas que traz à vida de quem contacta com os tribunais, a que sempre se acopla os “luxos e mordomias” dos magistrados judiciais. Vejam bem quanto eles ganham – os valores são públicos – para pessoas a quem se exige uma enorme formação técnica, que têm de ser independentes e imparciais e que não podem ter – e bem – qualquer outra fonte de rendimento. Não se embarque em considerações demagógicas e populistas quanto à questão remuneratória, pois só se pode comparar o que é comparável.
Enfim, tempos de alguma tristeza na justiça, talvez a condizer com o tom cinzento do tempo (meteorológico).