As ideias para a dívida que não foram seguidas
Relatório do grupo de trabalho da dívida defendeu, em 2017, debate na Europa sobre reestruturação, aumento da maturidade da dívida e redução da almofada financeira, medidas que não foram seguidas pelo Governo.
Com o ambiente nos mercados cada vez mais favorável a Portugal e a despesa com juros a cair para níveis próximos dos anteriores à crise, o problema da dívida pública deixou de estar no centro das atenções. E, apesar de esta continuar acima dos 120% do PIB, os apelos para que se faça uma renegociação de dívida são agora muito menos frequentes, mesmo depois de, durante o último ano e meio, o Governo ter optado por ignorar a maior parte das ideias sobre esta matéria que tinham saído do grupo de trabalho constituído por académicos e deputados do PS e do Bloco de Esquerda.
Num relatório publicado em Abril de 2017, esse grupo — que incluía, para além de vários economistas, os deputados do PS Paulo Trigo Pereira e João Galamba e o líder parlamentar do Bloco de Esquerda, Pedro Filipe Soares — tinha, por um lado, defendido que o Governo devia estudar e encetar negociações tendo em vista um “processo europeu de reestruturação das dívidas públicas elevadas” e, por outro, apresentado várias ideias de aplicação prática imediata para reduzir os encargos da dívida. Se em relação a um processo europeu de reestruturação de dívida, mesmo com Mário Centeno como presidente do Eurogrupo, não são visíveis quaisquer avanços na discussão do tema, em relação às ideias práticas para reduzir ainda mais a despesa com juros, algumas das mais significativas foram preteridas por estratégias que privilegiaram a prudência e a preparação para crises futuras. É verdade que medidas como a antecipação do pagamento da dívida ao FMI ou o aumento dos dividendos do Banco de Portugal geraram resultados, mas nestes casos há dúvidas quanto ao papel desempenhado pelo relatório do grupo de trabalho da dívida.
Seja como for, a resposta do executivo às ideias do grupo revela que o executivo optou por, em vez de fazer tudo para aliviar rapidamente os encargos com a dívida, tentar reduzir a dívida progressivamente através da concretização de excedentes primários elevados sucessivos (em 2018, o segundo mais elevado da zona euro).
“O Governo tem empreendido medidas para reduzir a despesa com juros e tornar a dívida pública mais sustentável, mas parece-me que se poderia ter ido mais longe com maior poupança na despesa com juros e uma redução mais acentuada da dívida pública”, afirma Ricardo Cabral, um dos académicos que participaram na realização do relatório do grupo de trabalho da dívida.
Medidas defendidas pelo grupo de trabalho
A proposta: O relatório assinala o papel negativo que um peso muito elevado da dívida pública pode ter no desenvolvimento de várias economias da zona euro, incluindo a portuguesa e, por isso, defende como essencial que se dêem passos no sentido de se acordar, a nível europeu, um processo de reestruturação das dívidas públicas elevadas.
O que aconteceu: Se o tema já era considerado como muito difícil quando os resgates financeiros na zona euro ainda estavam por resolver, e a desconfiança em relação às chamadas “economias periféricas” da zona euro estava em máximos, a verdade é que nem com a recuperação entretanto verificada pareceu haver um aumento da abertura dos países do Norte para a possibilidade de reestruturação das dívidas.
No último ano e meio, os líderes políticos da zona euro têm estado envolvidos noutras discussões, porventura mais simples, como a conclusão da união bancária ou a criação de uma capacidade orçamental da zona euro, mas nem aí se assiste a avanços significativos em direcção a uma maior partilha de riscos. As dúvidas entretanto surgidas em relação a Itália nos últimos meses tornaram o clima ainda menos propício a um entendimento.
Do lado do Governo português, a opção tem vindo a ser a de reforçar a credibilidade da política orçamental, na Europa, defendendo uma reforma da zona euro, não sendo mencionada a reestruturação de dívida como uma prioridade.
Paulo Trigo Pereira, deputado do PS que fez parte do grupo de trabalho que assinou o relatório, assume que “o debate sobre a renegociação da dívida está de momento adormecido, quer em Portugal, quer na Europa”. Mas defende que isso não significa que o problema esteja resolvido. “As dívidas excessivas e muito elevadas continuam, pelo que das duas uma: ou a próxima crise é relativamente longínqua e existe crescimento económico sustentado nesse período, de forma a que o peso das dívidas diminua, ou a próxima crise é mais cedo, e o crescimento fraco, e então o debate irá inevitavelmente renascer. O nosso estudo continua a ser um instrumento útil para esse debate”, afirma.
Alteração das maturidades médias da dívida directa
A proposta: Quanto menor o prazo de emissão de uma dívida, menor é a taxa de juro anual a pagar e, por isso, os membros do grupo de trabalho da dívida viram espaço para que ocorresse uma poupança significativa com juros, se o Tesouro português passasse a emitir dívida com uma maturidade menor. A ideia era reduzir a maturidade média da dívida directa do Estado, excluindo a dívida ao FMI e à União Europeia, de 6,6 para cerca de 4,9 anos. Isso seria feito, por exemplo, invertendo a tendência da redução da emissão de bilhetes do tesouro (de mais curto prazo do que as obrigações do tesouro). Os bilhetes do tesouro poderiam passar a representar entre 9% e 10% da dívida, aumentando gradualmente de 14 mil milhões de euros, em 2015, para entre 21 e 23 mil milhões de euros
O que aconteceu: A maturidade média da dívida apenas foi reduzida muito ligeiramente. Como afirma Ricardo Cabral, “não se diminuiu a maturidade para 4,9 anos como recomendado pelo GT, apenas se reduziu ligeiramente a maturidade residual média da dívida em 2017, alterando a tendência do passado que era de aumento da maturidade residual média da dívida”.
Neste momento, a maturidade é de 6,5 anos e o peso dos bilhetes do tesouro tem vindo a diminuir, em vez de aumentar, passando de 6% para 5%. O saldo dos bilhetes do tesouro era, no final de Setembro, de 13.273 milhões, bem longe da recomendação de subida para 21 mil milhões.
A estratégia do Tesouro nesta matéria (executada pela Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Públic, IGCP) tem sido a de optar pela prudência, mesmo que em detrimento de uma descida mais acentuada das taxas de juro pagas. A ideia é a de que, se o prazo para a amortização das dívidas for muito baixo, Portugal precisa de ir com mais frequência aos mercados realizar novas emissões. Se agora tal é feito sem problemas, cria-se a possibilidade de num cenário de crise futura a pressão de ir constantemente ao mercado ser alta de mais.
De acordo com as Normas Orientadoras para a Gestão da Dívida Pública, os limites absolutos impostos à percentagem da carteira a vencer num prazo de 12, 24 e 36 meses são, respectivamente, 25%, 40% e 50%. Actualmente, de acordo com o OE, os valores são de 3%, 9% e 20%, ou seja, muito mais baixos do que o limite.
Reembolso antecipado da dívida ao FMI
A proposta: O grupo de trabalho sugeria o reembolso antecipado ao FMI, em 2017, do montante de dívida superior a 187,5% da quota de Portugal no FMI, o que conduziria a uma poupança com juros estimada de 184 milhões de euros em 2019 e de 183 milhões em 2020. A fracção da dívida ao FMI que beneficia de taxas de juro baixas (cerca de 1,3%) não seria amortizada antecipadamente.
O que aconteceu: O caminho seguido foi exactamente aquele que tinha sido sugerido. Neste caso, parece evidente que esta já era a ideia do Governo, pois, já em 2015, tinham sido pagos antecipadamente ao FMI 8448 milhões de euros e, em 2016, mais 4496 milhões de euros. No ano passado, foram pagos 10.013 milhões de euros e, no passado mês de Janeiro, depois de pagar mais 800 milhões de euros, reduziu a dívida para um valor próximo de 4600 milhões de euros, garantindo desse modo que a penalização de 300 pontos base na taxa cobrada a Portugal desaparecesse.
Neste momento, o Governo está já a negociar com os parceiros europeus o pagamento antecipado de mais dívidas do FMI. Desta vez, contudo, já não é tanto pela taxa de juro, mas como uma forma de, com taxas favoráveis, alargar os prazos da dívida, algo que até vai contra aquilo que foi defendido pelo grupo de trabalho.
Redução da almofada financeira do Estado
A proposta: O grupo defendeu a melhoria da forma como são geridas as disponibilidades líquidas das Administrações Públicas e se coloca em prática o princípio da unidade de tesouraria do Estado. A ideia é a de que ter demasiados excedentes pode constituir prudência em excesso e representar um custo muito elevado na gestão da dívida, já que esses excedentes nada rendem ao Estado e, pelo contrário, este tem de se endividar mais a taxas de juro elevadas.
O que aconteceu: Não é evidente uma redução significativa dos excedentes de tesouraria das Administrações Públicas. Quando se fala apenas da almofada ao dispor do Tesouro, ainda é possível ver uma tendência de descida. Ela era de 10,2 mil milhões de euros no final de 2016, 9,8 mil milhões no final de 2017, prevendo-se agora 7,9 mil milhões no final deste ano. Ainda assim, um regresso a valores próximos de 5 mil milhões (os registados antes da crise) apenas está previsto pelo IGCP para 2021.
Mas quando se olha para os dados dos depósitos publicados pelo Banco de Portugal, que incluem os depósitos de todas as Administrações Públicas e não apenas os do Tesouro, é possível verificar que, durante o último ano, se regista uma diminuição muito moderada do valor, que em Setembro de 2017 era de 27,6 mil milhões de euros e em Setembro de 2018 tinha descido para 25,3 mil milhões.
“O IGCP parece estar a diminuir lentamente a dimensão da almofada financeira sob sua tutela, embora com a alteração do perfil intra-anual de emissão dívida — a almofada financeira aumenta durante o ano para cair no final do ano e assim “melhorar” a estatística do nível de dívida pública no final do ano, com os consequentes custos dessa estratégia para despesa com juros —, mas as Administrações Públicas no seu todo não demonstram terem sido capazes de diminuir o montante global das disponibilidades líquidas de forma significativa”, lamenta Ricardo Cabral.
Mais uma vez, é no nível de precaução e de preparação para uma futura crise que reside a diferença entre o que foi defendido pelo grupo de trabalho da dívida e o que foi feito pelo Governo. Há ainda um limite: no acordo para a amortização antecipada da dívida ao FMI, Portugal comprometeu-se a manter uma almofada financeira igual a 50% das necessidades de financiamento anuais, enquanto o rating estivesse em “lixo” nas três principais agências. Esse valor passou para 40%, quando apenas faltava a Moody’s subir o rating e, agora, pode voltar a diminuir.
Alteração dos critérios para a constituição de provisões
A proposta: Em causa está a dimensão das provisões para riscos gerais que o Banco de Portugal constitui. O grupo propôs que não fossem criadas quaisquer provisões adicionais no âmbito do PSPP e que se mudassem as regras de definição das provisões (alterando a lei orgânica do Banco de Portugal). A consequência dessa diminuição das provisões seria, necessariamente, um aumento dos dividendos entregues pelo Banco de Portugal ao Estado.
O que aconteceu: Os dividendos distribuídos pelo Banco de Portugal aumentaram bastante em 2017 e 2018 e o Governo volta a prever um valor elevado em 2019. Em 2017 subiram 166 milhões, para 352,5 milhões. Em 2018, os dividendos entregues subiram para 525 milhões de euros. E isso deveu-se em larga medida à redução do esforço de constituição de provisões para riscos gerais.
Nas contas de 2015, o reforço das provisões tinha sido de 480 milhões, mas em Maio de 2017, logo a seguir à publicação do estudo do grupo da dívida, o relatório relativo às contas de 2016 do banco central apresentava um reforço das provisões muito mais moderado, de apenas 200 milhões. Em 2017, em vez de um reforço, o que o Banco de Portugal decidiu fazer foi mesmo uma redução do volume global das provisões para riscos gerais, que baixaram 520 milhões, para 3730 milhões de euros.
O banco central tem sempre negado que tenha existido uma mudança na sua política de constituição de provisões. No relatório de Maio de 2017, o BdP afirma que “não alterou nos últimos anos a sua política de provisões para riscos gerais”, defendendo que aquilo que ocorreu foram “alterações substanciais de riscos”. Em Maio de 2018, o banco liderado por Carlos Costa voltou a garantir que não mudou a sua política de provisões e que aquilo que aconteceu foi uma redução do risco dos títulos de dívida pública que tem em carteira, principalmente pelo facto de o rating atribuído a Portugal ter vindo a melhorar durante o último ano.
“Para alterar a política de provisões do Banco de Portugal de forma a torná-la mais objectiva e fundamentada seria necessário alterar o respectivo plano de contas, como defende o relatório do GT. Optou-se por uma solução de compromisso em que o conselho de administração do Banco de Portugal mantém a sua ‘flexibilidade’ na definição do nível de provisões, mas em que se observa também que reduziu o nível médio de provisões constituídas em anos recentes, com impacto favorável óbvio nas contas públicas”, explica Ricardo Cabral.