O moicano que se perdeu pela América do Sul numa moto de 125cc
Aos 22 anos, André Sousa apresenta-se como “o primeiro a dar a volta a América do Sul com uma moto de 125 cc”. Teve medo, passou fome e foi assaltado, mas desses 120 dias ficaram-lhe sobretudo as alegrias da fraternidade e o deslumbramento geográfico.
Biografia mínima: André Sousa tem 22 anos, é de Oliveira de Azeméis, está a tirar o mestrado em Gestão Empresarial pela Coimbra Business School e, claro, gosta de motas desde pequenino. A culpa é do pai, que também levava a mesma vida e, embora tenha tentado dissuadir o filho, deu o esforço por perdido ao vê-lo ser escolhido como jovem talento do motociclismo quando contava ainda 13 anos. A evolução que se seguiu foi natural e o currículo do rapaz menciona agora méritos como o quarto lugar no Campeonato Nacional de Velocidade em 125cc, em 2013, e o título de vice-campeão por equipas no Campeonato de 600cc, em 2014. No ano seguinte, uma lesão limitou-lhe a prestação no campeonato de velocidade a apenas duas provas e um pódio, mas já o curso universitário o compensava ao fazê-lo rodar por outras paragens: o programa Erasmus levava-o até à Eslováquia e aí se desenhou a sua primeira aventura por nove países dos Balcãs, sempre à boleia de outros veículos e das camas da rede Couchsurfing. “Foi assim que percebi que o que eu queria era viajar sem ser como turista, a conhecer pessoas nas circunstâncias reais da sua vida e a contactar a sério com culturas diferentes”, revela André.
Quando se começou a delinear no seu percurso académico novo intercâmbio lectivo no Brasil, o motociclista-estudante quis então aproveitar a estadia em Florianópolis para conhecer mais a fundo a América Latina. Procurou um projecto inovador que mais facilmente lhe permitisse angariar apoios, chamou-lhe “The Lost Mohican Adventure” e foi assim que decidiu ser “a primeira pessoa a percorrer numa moto citadina de 125cc os 11 países sul-americanos que estão ligados por via terrestre”. André definiu rotas, reuniu patrocínios e até obteve o apoio da Honda Brasil, que o deixou adquirir uma moto ao preço de revenda e lhe garantiu assistência gratuita em todos os países por onde passou. Mas essas negociações também foram um teste à sua convicção, porque os representantes da marca passaram meio tempo a tentar demovê-lo do único requisito de que não estava disposto a prescindir. “Gostaram da ideia de eu bater o recorde ao atravessar os 11 países, mas disseram-me logo que com uma 125cc não ia conseguir chegar ao fim porque a moto não aguentava”, conta o aventureiro. “Só que estavam enganados e o meu maior prazer foi precisamente provar-lhes isso." Que nesse périplo de Maio a Setembro a mota mal tenha passado dos 60 kms/hr devido ao peso da bagagem e do combustível extra para travessias recônditas, de pouco importa. “Foram 24.250 quilómetros sempre a andar e ela aguentou-os todos!”.
Quando se lançou à estrada com três malas e uma mochila no lugar no passageiro, André pensava que ia sozinho, mas nisso foi ele próprio quem teve que desenganar-se. Tinha começado por divulgar a viagem apenas entre amigos e na Internet, mas depois as redes sociais da comunidade motociclista fizeram o resto: “A todo o lugar a que eu chegava tinha motards à minha espera. Foi fantástico! Mesmo quem não tinha capacidade financeira para isso era sempre muito hospitaleiro. Ofereceram-me estadia, levaram-me a jantar, escoltaram-me nas zonas mais difíceis, ajudaram-me quando fui roubado e fiquei sem nada." A gratidão ainda hoje o emociona e é o que lhe motiva alegria maior. “O que fizeram por mim não se paga. Tenho pena de não ter como lhes agradecer na mesma medida.”
Sozinho sentiu-se apenas na travessia do Parque Nacional da Bolívia através da pior estrada que encontrou na viagem, a mais de 4000 metros de altitude. Avisaram-no de que era arriscado, que só jipes e motos de enduro resistiam ao piso desértico, insistiram, mas André fez-se ao caminho para não prejudicar o recorde. “Não havia rede, as temperaturas chegavam aos 15 graus negativos e havia por todo o lado buracos de areia imperceptíveis”, descreve. “A certa altura caí, parti GPS e telemóvel, fiz uma luxação numa perna e, aí sim, percebi que corria o risco de morrer ali porque, se tivesse um acidente, ninguém lá passava para me acudir.” O resto da viagem fez-se, por isso, com tal cautela que foram precisos três dias para completar 300 quilómetros, mas pouco depois André chegava ao salar de Uyuni e a luminosidade do sal atenuava-lhe as mazelas do corpo dolorido.
Mágoas, agora, já não se lembra de nenhumas. Mais vivas estão as histórias, mas não cabem aqui todas e muito menos os instantâneos da viagem, pelos quais desfilam paisagens tão cobiçadas como a foz do Iguaçu, a cordilheira dos Andes, o deserto de Atacama, os templos de Machu Picchu e a colorida Cartagena das Índias. Amazónia apenas conheceu a boliviana, mas essa experiência valeu por si só, sem moto, pelo que lhe proporcionou de uma avassaladora imersão na vegetação e em si próprio. “Arranjei um guia nativo para fazer cinco dias de sobrevivência na floresta, sem comida, sem água, sem nada”, recorda André. “Só podíamos levar as botas, uma faca e um mosquiteiro, e depois todos os dias tive que procurar o que comer e que recolher materiais para montar o sítio onde dormi. Cheguei a estar 35 horas sem comer e aquilo alterou-me. A certa altura não aguentava a fome, não aguentava o cansaço, não sabia como ia fazer o resto do caminho… Mas foi espectacular e a coisa mais louca que fiz em toda a viagem. A mais louca e talvez a mais transformadora.” Hoje acredita que terá sempre como saciar a fome. Já o apetite por mais estrada é que não.