O ano em que a morte apitou três vezes

A animação portuguesa perdeu em 2018 três dos seus protagonistas históricos: Servais Tiago, Artur Correia e Álvaro Patrício. O Cinanima está a recordá-los.

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Artur Correia na edição do Cinanima de 2005, com a realizadora Andreia Ribeiro Nelson Garrido
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Servais Tiago DR
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Álvaro Patrício DR,DR
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Fotograma de O Romance da Raposa, de Artur Correia DR
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Obra de Álvaro Patrício DR

2018 foi um ano funéreo para a animação portuguesa: no curto espaço de seis meses, desaparecerem três figuras, de outras tantas gerações, que deixaram rasto, mesmo se com diferentes graus de espessura, na história do cinema animado, da BD e da publicidade em Portugal: Armando Servais Tiago (n. 1925) faleceu a 2 de Fevereiro; Artur Correia (n. 1932), a 1 de Março; Álvaro Patrício (n. 1947), a 3 de Julho.

A coincidência está a ser evocada pelo 42.º Cinanima – Festival Internacional de Cinema de Animação de Espinho, que dedica uma vitrina do Centro Multimeios a chamar a atenção para as figuras e as obras de cada um destes artistas, curiosamente todos nascidos em Lisboa.

Ainda que bastante minimal nos elementos que reúne, a exposição/homenagem cumpre o desígnio de lembrar a existência e as obras destas três figuras no panorama extremamente rarefeito da animação portuguesa. “A nossa ideia foi que esta pequena mostra seja o rastilho para uma procura mais detalhada de documentação e de testemunhos das obras destes (e de outros) realizadores que fizeram a história da animação em Portugal, e que estão um bocado esquecidos”, diz ao PÚBLICO Alberto Lírio, artista plástico e professor do ensino secundário que propôs à direcção do Cinanima a inclusão desta mostra no programa do festival deste ano – que termina este fim-de-semana.

Lembrando que as obras dos três autores estão dispersas por diferentes arquivos e instituições, mas também que a dimensão e importância do trabalho de cada um deles é diferenciada, Lírio chama a atenção para o facto de muitos desses trabalhos, principalmente na área da publicidade, não terem assinatura. “Na publicidade não há autores, os proprietários das obras são as marcas para as quais eles trabalharam, o que significa a necessidade de uma pesquisa que será um processo demorado”, nota o professor e artista.

Servais Tiago, Artur Correia e Álvaro Patrício são, de facto, três nomes com pesos diferentes na história da animação portuguesa, mas, além de terem desaparecido no mesmo ano, junta-os ainda a circunstância de terem sido muito próximos – o Cinanima intitulou mesmo a exposição Três Grandes Amigos – nas suas actividades artísticas. Foram “realizadores pioneiros do cinema de animação em Portugal, com eco internacional, desbravando caminho para uma sociedade mais democrática, contra a censura, com uma aguçada crítica social e política patente em muitos dos seus trabalhos”, pode ler-se no programa do festival.

Uma das peças que podemos ver na vitrina do Centro Multimeios de Espinho é a Taça Pathé-Baby, conquistada por Servais Tiago em 1943 com o seu primeiro filme, Automania, que na década seguinte seria também distinguido com um diploma no Congresso de Cinema Amador em Roma (1957). Trata-se da primeira-obra deste autor, creditado como um dos pioneiros da animação em Portugal.

Abi Feijó, que adquiriu a sua primeira câmara profissional a este realizador quando ele se reformou – “uma Pathé dos anos 30, que ainda guardo em casa com a truca e a mesa de montagem”, recorda o realizador de Fado Lusitano –, diz que Automania, uma animação de cinco minutos sobre corridas de automóveis, é claramente “um filme de adolescente, mas que manifesta já a noção da animação”, num autor que depois trabalhou muito em publicidade (fez, por exemplo, os anúncios para A Mosca, suplemento do Diário de Lisboa, ou para marcas como a Sacor, a Gazcidla ou os perfumes Kimono) e em criações didácticas. Servais Tiago criou também, para a RTP, separadores e personagens como o Zé Sempre em Pé do concurso 1,2,3.

Artur Correia é o realizador mais prolífico não só da sua geração como da animação portuguesa no século XX. Abi Feijó chama a atenção para “duas produções particularmente interessantes”, já posteriores ao 25 de Abril de 1974: os episódios O Caldo de Pedra e O Grão de Milho, da série Contos Tradicionais Portugueses (que se ficou por quatro episódios, realizados em parceria com Ricardo Neto); e também O Romance da Raposa, nova série dos dois autores, adaptando o romance homónimo de Aquilino Ribeiro, que “fez um certo sucesso e, diz-se, chegou a ser vendida para 42 países”, recorda o autor de Os Salteadores.

Artur Correia fez também muita publicidade, e venceu mesmo o prémio do filme publicitário no Festival de Annecy, em 1967, com um anúncio que fez para a Schweppes, que Abi Feijó recorda ter resultado não de uma encomenda mas de uma proposta do próprio realizador à empresa daquela marca de bebidas. Para toda uma geração habituada à exclusividade da RTP, fica também a memória dos anúncios da Família Prudêncio e da Família Pitucha, este a avisar os mais pequenos da hora de ir para a cama.

Álvaro Patrício (Pat), discípulo de Servais Tiago, “é o autor mais ecléctico e com um pendor mais artístico dos três”, defende Alberto Lírio, comentando as três peças de assemblage expostas no Cinanima, a remeter mesmo para a estética dadaísta. Depois de uma experiência de trabalho em Madrid, Pat ingressou em 1980 na RTP, onde foi responsável pela criação de genéricos de programas como O Passeio dos Alegres e Hermanias, além de várias edições do Festival da Canção. Fez também muita BD para publicações como os jornais República e Sete.

Depois do Cinanima – que este sábado dá a conhecer os prémios da 42.ª edição, e amanhã mostra os filmes premiados –, esta mostra/homenagem a Três Grandes Amigos fica à espera de poder repetir-se, crescer e eventualmente dar origem a uma busca mais cuidada das obras dos três criadores que morreram todos no mesmo ano.

Notícia corrigida: o primeiro nome de Servais Tiago é Armando e não António.

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