Nunca os fogos na Califórnia mataram tanta gente. Porquê?
A Califórnia está habituada aos grandes incêndios, mas não a tantas mortes. Na última semana as chamas já mataram pelo menos 63 pessoas e 600 continuam desaparecidas.
Os incêndios na Califórnia, cujas chamam lavram há mais de uma semana, são já considerados os mais mortíferos de que há memória naquele estado norte-americano. O balanço mais recente indica que pelo menos 63 pessoas morreram e mais de 600 continuam desaparecidas.
Neste momento, existem ainda dois focos de incêndio activos no norte e no sul do estado — o incêndio de Woolsey nos arredores de Los Angeles destruiu já centenas de casas, entre as quais as da cantora Miley Cyrus e do actor Gerard Butler. No norte da Califórnia, o incêndio de Camp já destruiu mais de oito mil habitações. A pequena cidade de Paradise é a mais afectada pelo fogo, que já consumiu mais de 56 mil hectares.
Os fogos são frequentes no estado da Califórnia. Em Agosto, um incêndio no Parque Nacional de Mendocino destruiu pelo menos 75 casas e queimou mais de 114 mil hectares. A lista de grandes fogos tem novas entradas quase todos os anos, mas nunca as chamas tinham matado tanta gente.
As causas deste incêndio estão a ser investigadas. Há quem ponha as culpas em falhas em centrais eléctricas e quem responsabilize a intervenção humana. E há um pano de fundo: as alterações climáticas.
“Há árvores que estão mais adaptadas e são mais resistentes aos incêndios do que outras”, diz Filipe Duarte Santos, especialista em alterações climáticas. É o caso da sequóia, uma árvore que é um dos símbolos da Califórnia e cuja casca do tronco possui características que a tornam dificilmente inflamável. Porém, o aquecimento global, que seca a vegetação, está a prejudicar esta vantagem.
Cathelijne Stoof, holandesa especialista em incêndios, avança que a vegetação da Califórnia encontra-se muito seca devido à falta de chuva: “Normalmente, nesta altura do ano as chuvas já deviam ter chegado. Mas não chegaram.”
“Chover fogo”
As chamas são alimentadas por uma combinação de vários factores, entre os quais um clima quente, uma baixa humidade do ar e ventos fortes.
Todos os anos, no Outono, são frequentes os ventos Santa Ana e Diablo na Califórnia, que ajudam à propagação do fogo.
“Ou seja, se temos uma paisagem muito seca e ventos muito fortes, a única coisa que é necessária [para começar um incêndio] é uma ignição”, explica a investigadora holandesa. Se as chuvas não tivessem tardado a chegar, “a vegetação estaria mais húmida e o resultado teria sido diferente”.
Filipe Duarte Santos reforça ainda que “se o incêndio não for controlado nos primeiros tempos atinge temperaturas muito elevadas e se os ventos forem muito fortes é extremamente difícil apagá-lo”.
As fagulhas – pequenos pedaços de matéria ainda em combustão – são facilmente transportadas pelo vento e propagam o incêndio. “É como se estivesse a chover fogo”, ilustra Cathelijne Stoof.
Este fenómeno torna possível que algumas casas fiquem totalmente queimadas enquanto algumas árvores à volta continuam intactas – não porque a frente de incêndio tenha avançado naquela direcção, mas porque as fagulhas atingiram as casas (por exemplo, através dos telhados ou janelas).
Êxodo… urbano
Há outro factor que explica a dimensão da tragédia na Califórnia: ao contrário do que acontece em Portugal, naquele estado norte-americano assiste-se a uma tendência de migração das cidades para o interior. A construção de casas junto a zonas florestais e rodeadas de mato facilmente inflamável torna o risco associado a estes incêndios ainda maior.
De acordo com dados da empresa de avaliação de risco Verisk Analytics citados pela BBC, 4,5 milhões de casas nos Estados Unidos encontravam-se, em 2017, em áreas de elevado risco de incêndio. Destas, mais de dois milhões situam-se na Califórnia.
Stoof explica que estes novos migrantes “não compreendem necessariamente o fogo e não sabem como viver com ele”, ao contrário dos habitantes das zonas rurais, tipicamente mais preparados para lidar com estes fenómenos.
Além disso, quando existem casas nas zonas de incêndio, as estratégias de combate e prioridades dos bombeiros alteram-se. “A maior preocupação é proteger essas casas e salvar vidas humanas”, o que nem sempre é possível, acrescenta Filipe Duarte Santos.
Foi o que aconteceu em Camp Fire. “O fogo estava a propagar-se de forma tão rápida que, a determinado ponto, as autoridades de combate aos incêndios disseram ‘vamos apenas salvar as pessoas, não vamos salvar as casas’”, acrescenta Stoof. Por outras palavras, “com este tipo de fogos incrivelmente rápidos, é apenas salvar o que pode ser salvo”, conclui a especialista.
“As pessoas não estão conscientes que o clima está a mudar”
As alterações climáticas e o aquecimento global têm também impacto nestes fenómenos, afirmam os dois especialistas.
“As pessoas não estão bem conscientes de que o clima está a mudar”, o que tem também impacto na forma como se gere as florestas, afirma Filipe Duarte Santos.
Tanto na Califórnia como o incêndio de 2017 em Pedrogão Grande, Portugal, são “megaincêndios que não costumávamos ter e que se estão a tornar cada vez mais frequentes” e a ocorrer fora da época “normal”, o Verão, explica Cathelijne Stoof.
Apesar de terem deflagrado de formas diferentes e as especificidades de cada incêndio não serem as mesmas, a cientista alerta que os efeitos são semelhantes.
A longo prazo, as zonas afectadas têm maior risco de erosão e cheias. A qualidade do ar e a da água para consumo ficam comprometidas (parte das cinzas acabam por cair nas barragens).
É um ciclo vicioso, diz a especialista: “o problema é que estes incêndios são parcialmente causados pelas alterações climáticas, mas todo o fumo e carbono emitidos afectam também o clima novamente.”
Solução: gestão florestal
As soluções, concordam os especialistas, passam por uma boa gestão florestal, pela limpeza dos terrenos e vegetação à volta das casas.
Cathelijne Stoof menciona ainda que é importante o uso de materiais resistentes ao fogo e não inflamáveis na construção das casas.
Sobre a acusação do Presidente Donald Trump, que culpou as autoridades estaduais da Califórnia e entidades privadas por uma “má gestão” das florestas, Filipe Duarte Santos diz que “o que aconteceu de facto foi que estes incêndios começaram em zonas administradas pelas entidades federais”.
O especialista português sublinha ainda que as verbas para a gestão das florestas em território federal nos Estados Unidos têm vindo a diminuir “e não se pode esperar que haja uma boa gestão para evitar o risco de incêndio, tendo em conta até as alterações climáticas, quando as verbas diminuem”.
O mesmo problema verifica-se em Portugal, defende. “Se tivessem sido disponibilizadas verbas mais significativas que permitissem uma boa gestão e limpeza do pinhal de Leiria”, os incêndios não teriam tido a grandeza que tiveram, acredita.
Texto editado por Pedro Rios