No Brasil a comunidade LGBT+ apressa-se para se casar antes de Janeiro
Novo Presidente do Brasil “pode atrapalhar para o ano, mas quem casa agora está mais protegido”, acredita Helem. A eleição de Bolsonaro tem provocado a corrida aos cartórios e fez nascer uma corrente de solidariedade – desde serviços gratuitos no copo-d’água a casamentos colectivos.
No dia 7 de Maio, Helem, de 38 anos, casava-se com Sara, de 37, em Brasília. Ao contrário do que seria de esperar, este dia não estava reservado apenas à alegria de oficializarem o namoro. “Nós estávamos muito preocupadas de sermos desprezadas ou de até recebermos comentários discriminatórios no cartório. Felizmente correu tudo bem. Mas nós já tínhamos esse receio, e, em Março, Bolsonaro ainda era apenas uma ameaça.”
Helem e Sara são um dos 5816 casais LGBT+ que celebrou o matrimónio este ano no Brasil. Os dados de 2018, actualizados até ao final do mês de Outubro, mostram que existe um aumento de 25% do número de casamentos LGBT+ face a 2017, quando se celebraram 4645.
Entre Setembro e Outubro, meses em que Jair Bolsonaro passou de favorito a vencedor das eleições presidenciais, a corrida da comunidade LGBT+ aos cartórios intensificou-se. Se só considerarmos estes meses, o crescimento, em comparação com 2017, é de 36%.
Thiago de Souza, de 34 anos, e Iury Magalhães, de 27 anos, são duas das pessoas por trás dos números divulgados pela Associação dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen). “Nós não tínhamos planos de casar este ano. Nós queríamos esperar que eu terminasse a faculdade, porque sou estudante de Medicina”. A vitória do deputado do Partido Social Liberal fez o casal repensar nos planos estipulados. “Primeiro, nós não acreditávamos sequer que Bolsonaro pudesse ganhar, mas depois as pesquisas [sondagens] começaram a anunciar a vitória, fazendo parecer que era cada vez mais certa. Quando ele ganhou, decidimos que queríamos casar logo, que íamos antecipar a data do casamento. Queremos garantir que os nossos direitos enquanto casal vão ser respeitados”, diz ao PÚBLICO.
O casamento está agendado para 5 de Dezembro, em Brasília. “Vamos fazer uma coisa muito simples, chamamos algumas pessoas para um almoço, mas sem festa, sem nada grande”, conta Thiago. A capital brasileira tem sido precisamente um dos estados onde o aumento do número de casamentos LGBT+ se tem verificado: em Janeiro celebraram-se 731 e em Outubro 1041.
“Os casais LGBT querem todos casar este ano porque ele [Bolsonaro] pode ter na sua mão o poder de atrapalhar os casais que querem casar no próximo. Ele pode atrapalhar para o ano, mas quem casa agora está mais protegido. Se eu e a Sara não tivéssemos já casado, eu apressaria para o fazer este ano. Nós seríamos um desses casais. Os meus casais amigos que nem tinham pretensão de casar este ano querem agora fazê-lo até Dezembro”, acrescenta Helem.
No Brasil, o casamento LGBT+ não está consagrado na lei. Em 2011, o Supremo Tribunal Federal mudou o entendimento do Código Civil que estabelecia que uma família era obrigatoriamente formada por um homem e mulher. A partir deste momento, ficou decidido que seriam reconhecidas “uniões estáveis” entre casais gay.
Em 2011, a senadora Marta Suplicy propôs a alteração do Código Civil a fim de retirar as menções de género em relação ao casamento e à união estável. A proposta foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, mas um recurso do senador Magno Malta, da bancada evangélica, fez com que o projecto fosse discutido em plenário. Em Dezembro de 2017, o projecto foi colocado na agenda para votação, mas não houve quórum. Dois anos mais tarde, em Maio de 2013, o Conselho Nacional de Justiça publicou uma resolução que permitia o casamento gay.
Ao não estar referido na lei, a jurisprudência que garante o direito de pessoas LGBT+ se casarem pode ser colocada em causa caso o Congresso aprove uma lei que o proíba. O Presidente não pode decretar a suspensão do casamento gay, mas pode, por exemplo, encaminhar um projecto de lei ao poder legislativo.
“O problema é que não há uma lei que regule o casamento, o que faz com que nos sintamos fragilizados porque sabemos que os nossos direitos não estão garantidos por lei. Nós vivemos nessa instabilidade jurídica”, diz Helem, professora de Artes.
Esta fragilidade legal levou, aquando a vitória de Bolsonaro, a presidente da Comissão da Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Maria Berenice Dias, recomendar que os casais LGBT+ casassem até ao final do ano.
“Porque os casamentos realizados daqui até lá não podem ser anulados”, afirmou Berenice Dias ao jornal Brasil de Fato. “Um receio que existe é de eventualmente, a partir da posse, um Presidente absolutamente homofóbico, conservador e retrógrado tomar alguma iniciativa. Ele tem a faculdade de baixar medidas provisórias, essa caneta ele tem na mão e eventualmente pode ser que baixe algo que tenha força de lei, negando acesso ao casamento, o que teria mais força do que uma decisão da justiça, que só se constitui pela jurisprudência. A jurisprudência existe aqui agora, no momento em que mudam os julgadores, as cortes, há a possibilidade de se trocar a jurisprudência, vão-se renovando os tribunais.”
Profissionais unem-se para ajudar
Como no Brasil o casamento, ainda que consagrado no registo civil, tem um custo (em São Paulo, por exemplo, pode custar até 402,40 reais, 94,12 euros), são vários os casais que têm dificuldades em conseguir realizar uma festa de celebração deste dia.
Ao se aperceber do aumento de número de casamentos desde Setembro, Rossana Pinheiro, carioca de 41 anos, escreveu um post no Facebook onde oferecia o seu equipamento de karaoke e o seu trabalho de fotógrafa aos casais LGBT+ que não tivessem dinheiro para fazer a festa.
“Em poucas horas já tinha 300 partilhas, e muitas pessoas começaram a oferecer o seu contributo até fora da cidade do Rio. Decidi criar uma página de Facebook para as pessoas comunicarem de forma mais fácil. Agora temos casamentos agendados até Dezembro, a página conseguiu ter impacto em todo o país.”
Esta página, criada no dia 5 de Novembro, pretende unir vários profissionais de diferentes áreas – fotografia, pastelaria, design de convites – interessados em ajudar gratuitamente as pessoas LGBT+ que se querem casar até ao final do ano. Até agora, a iniciativa já ajudou 37 casais de 13 estados. “Queremos mostrar a todas as pessoas que votaram no Bolsonaro que vamos resistir, que ninguém larga a mão de ninguém, que o amor vai sempre vencer o ódio”, diz Rossana.
Thalita Coelho, 27 anos, e Mariana Passos, 22 anos, foram abraçadas por esta corrente de solidariedade. Com o plano inicial de se casarem no final de 2019, o desfecho das eleições presidenciais fez com que antecipassem a celebração para 15 de Dezembro.
“Muita gente ofereceu ajuda com as fotografias ou até com os convites do casamento. A única coisa que me dá esperança é sentir uma movimentação muito grande em resistir às posições homofóbicas. Temos de continuar unidos para não perdermos os nossos direitos durante estes quatro anos”, afirma Thalita.
“Assim que ouvimos o comunicado da Ordem dos Advogados do Brasil, fomos logo ver se dava tempo para conseguir casar este ano. Em Florianópolis [no estado de Santa Catarina], é mais complicado, porque temos um promotor da nossa comarca que atrasa todos os casamentos LGBT. Por sorte, a minha noiva mora na cidade vizinha, São José, e nós vamos conseguir casar lá”, conta.
Um casamento com 200 pessoas
A vitória de Bolsonaro fez florescer, em vários estados, iniciativas que contrariam o sentimento de medo na comunidade LGBT+.
Iran Giusti é o responsável pela Casa 1, no estado de São Paulo, que alberga 20 pessoas que foram expulsas de casa por serem LGBT+. Depois de receber pedidos de ajuda de mais de 160 pessoas, a Casa 1 vai realizar, no dia 15 de Dezembro, um casamento colectivo de 100 casais.
Para o jovem, a luta é colectiva e tem de ser levada avante em todas as frentes. “Nós temos de lutar pelos nossos direitos, mas temos também de ter uma mobilização colectiva e alinhada com outras pautas [agendas]. Temos de estar atentos e juntarmo-nos aos movimentos dos trabalhadores, movimentos indígenas, de negros, ao movimento sem terra, aos movimentos ambientalistas. Só assim vamos conseguir impedir o desastre económico e social que está por vir.”
Estas eleições presidenciais no Brasil foram marcadas por uma vaga de agressões a minorias, nomeadamente a comunidade LGBT+.
Thiago, de 34 anos, conta que desde que Bolsonaro se tornou Presidente que “as coisas estão a ficar cada vez mais estranhas, diferentes e difíceis”. “Nós [Thiago e Iury] somos muito abertos e andamos de mãos dadas na rua, e até ao clima das eleições era mais simples, muito mais tranquilo andar na rua. Agora, as pessoas mostram-se mais intolerantes, ouvimos muito mais piadas, mais agressões verbais, ouvimos as pessoas dizerem ‘isso vai mudar, isso vai acabar’ relativamente ao facto de estarmos de mãos dadas.”