“Deixa-te levar pela criança que foste”, pede-nos o escritor à entrada num rosto de menino ampliado até ao tecto. Há um ano que o núcleo da Fundação José Saramago na Azinhaga se mudou para a antiga escola primária da aldeia, contando em objectos da época parte d'As Pequenas Memórias vividas pelo escritor na terra que o viu nascer há 96 anos, celebrados esta sexta-feira. Num quarto e numa cozinha recriados nas antigas salas da escola, recordam-se os Verões vividos com os avós maternos, a quem Saramago dedicou parte dos discursos proferidos ao receber o Prémio Nobel da Literatura, há 20 anos.
“Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro. No Inverno, quando o frio da noite apertava ao ponto de a água dos cântaros gelar dentro da casa, iam buscar às pocilgas os bácoros mais débeis e levavam-nos para a sua cama”, lê-se nos Discursos de Estocolmo. A velha cama de ferro enlaçado, onde “o calor dos humanos livrava os animaizinhos do enregelamento e salvava-os de uma morte certa”, é o ex-líbris da exposição, comprada pela junta de freguesia a um membro da família (a colorida cabeceira está, neste momento, numa exposição itinerante no Brasil).
É Vítor Guia, então presidente da junta e amigo de Saramago, quem nos conta a história. “A cama é esta, não tenho a mínima dúvida, mas as cores não eram estas”, recorda-se de Saramago lhe dizer quando voltou a ver a peça, então coberta de branco. “Acabei por ser eu e a secretária da junta a raspar com mil cuidados até conseguirmos chegar à última camada de tinta e lá estava o rosa e, nas flores, o verde e o amarelo”, conta Vítor. “Ele tinha uma memória extraordinária.”
Quem não o conhecia, poderia tomá-lo por “um homem austero, revoltado”, mas quem convivia com Saramago “apercebia-se que, por trás, havia um homem de afectos, sensível e de uma humanidade impressionante”, defende, recordando a forma como o escritor “vivia os problemas dos outros, se dedicava às causas, defendia o semelhante e conseguia interagir com as crianças”. “Tenho um orgulho grande por ter tido a possibilidade de conviver de perto com Saramago e por tê-lo conhecido em si.”
As histórias vão-se somando enquanto passeamos pela aldeia. Como a da estátua de Saramago, exposta sobre um banco de jardim no largo principal da Azinhaga, que o próprio escritor veio inaugurar em 2009. “Quando o abordei pela primeira vez, estávamos em Lanzarote a conversar ao jantar, e a primeira reacção foi logo um não. ‘Pede-me tudo, menos isso. Quando eu morrer, façam-me as estátuas que quiserem que eu já cá não estou para ver, mas enquanto for vivo, não.’”.
Vítor não se deixou ficar. Esgrimiu os argumentos que levava no bolso: “Quando você morrer, qualquer câmara com poder financeiro pode mandar fazer uma estátua e colocá-la em qualquer lado, mas a junta de freguesia não tem essa hipótese e eu gostaria imenso que a Azinhaga fosse a primeira a ter uma estátua sua. É que nem são dinheiros públicos, são leitores seus que juntaram dinheiro para pagar a estátua.” Quando se foram deitar, a resposta ainda era negativa. “No outro dia de manhã, ao pequeno-almoço, diz-me ele: ‘Tenho uma novidade para te dar. Manda lá fazer a estátua, que eu lá estarei para a inaugurar’.” E assim foi.
Da inauguração, Vítor destaca dois momentos. “A primeira reacção foi dizer que se reconhecia naquele trabalho e depois recordou-me o que tinha dito quando aceitou: Ai de mim que ele cá viesse e visse a estátua cagada dos pombos”, ri-se. Durante o discurso que Saramago proferiu naquele dia, uma “frase que ficou marcada nas pessoas” da terra: a Azinhaga não era apenas a aldeia onde nasceu, era a única aldeia onde poderia ter nascido.
No largo, Saramago tira os olhos do livro que tem entre as mãos para pousá-los no edifício do outro lado da rua, hoje à venda numa imobiliária, anuncia um cartaz entre as janelas. Era naquela casa, de portas bordadas a amarelo, que ficava a loja do “sapateiro prodigioso”, Francisco Carreira, que “já na altura lia Fontanelle”. “Era um senhor que tinha uma cultura muito acima da média e aqui juntava-se a nata de pessoas que já tinham alguns conhecimentos, que já sabiam ler e escrever e, inclusivamente, alguns perseguidos pela PIDE”, recorda Vítor. A história vem descrita no livro As Pequenas Memórias, que José Saramago veio lançar à Azinhaga em 2006, e é um dos trechos da obra que o antigo edil ainda gostava de ver exposta junto à fachada.
Para já, existem 13 painéis de azulejos com citações retiradas do livro (e de outras três obras onde Saramago refere a Azinhaga) ao longo do rio Almonda que, juntamente com as oliveiras, “era a grande paixão de Saramago aqui na Azinhaga”. “É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos, e tem a macieza quente do lodo vivo”, descreveu Saramago em Protopoema. Para mais tarde, já n'As Pequenas Memória, se lamentar que a “humilde corrente de água” esteja “hoje poluída e malcheirosa”.
Não chegam odores ao passadiço sobre a margem quando passeamos por ali, mas Vítor reconhece que “o Almonda hoje não tem nada a ver com o de Saramago”. Nem com o que Vítor conheceu na “meninice”, anos mais tarde, quando ali vinha à pesca com os amigos. “A gente via os limos e os peixes dentro dos limos. Se vinha um mais pequeno, tirávamos o anzol para o peixe não morder”, recorda. “Infelizmente, com a poluição que vem do concelho vizinho, a água não está cristalina e o rio está cheio de plantas.”
O percurso começa com as palavras iniciais d'As Pequenas Memórias e há-de terminar, já longe do rio, num único painel solitário, onde se lê a história que as encerra. Foi ali, precisamente ali, que Saramago “viu o lagarto verde pela última vez”. A ideia é fazer dali um jardim de leitura, à sombra da oliveira centenária, irmã da que foi trasladada para guardar as cinzas do corpo do escritor, em frente à Casa dos Bicos, em Lisboa. E continuar caminho, sempre com mais histórias e recordações relatadas pelo escritor. “É uma forma de dar a quem nos visita a hipótese de percorrer a aldeia e de estar junto dos locais que mais marcaram Saramago na juventude dele”, resume.
Por vezes, calçar as memórias de Saramago é uma experiência emotiva. Muitos leitores lacrimejam ao passar pelas fotografias, pelas citações, pelos livros, pelas mesmas paisagens que um dia definiram o escritor. Às vezes, largam-se a chorar, agarrados a Vítor ou sentados no chão, as “lágrimas a escorrer pela cara abaixo”. Como a miúda brasileira que um dia chegou cá com os pais para visitar a fundação em dia de fecho e Vítor veio de propósito abrir a porta. Ou a peregrina, “vinte e poucos anos”, que fez questão de cá vir antes de continuar caminho rumo a Compostela. Uma segunda-feira, estava Vítor fora e a fundação de folga, telefonaram-lhe a dizer que estava uma alemã no largo da aldeia. Tinha aterrado naquela manhã em Lisboa, apanhado um táxi directamente para a Azinhaga e naquele mesmo dia voltava a Düsseldorf. Mais de quatro mil quilómetros num dia para visitar a aldeia onde Saramago nasceu.
Em breve, quem sabe, outras histórias serão devolvidas aos lugares onde foram vividas pelo escritor. Memórias pequenas não faltam. Seguem pela estrada que Saramago percorria em direcção ao Mouchão dos Poejos. Param nos lugares onde outrora se erguiam as casas onde o escritor nasceu e os avós viveram, hoje substituídas por edifícios mais modernos, de azulejos azuis e verdes, de outros proprietários. Seguem pela antiga prisão, primeira sede do núcleo da fundação, onde “o tio de Saramago esteve preso por ter roubado uma galinha à avó”. Ou junto ao local onde Josefa entrava na carroça para ir buscar o neto à estação de caminhos-de-ferro de Mato Miranda. E podem, por fim, estender-se às duas ruas que se enlaçam, não muito longe da biblioteca, atribuídas a José Saramago e a Pilar del Río, a mulher “que ainda não havia nascido e tanto tardou a chegar”.
Porque foi nesta “pobre e rústica aldeia” que Saramago nasceu. “A bolsa onde o pequeno marsupial se recolheu para fazer da sua pessoa, em bem e talvez em mal, o que só por ela própria, calada, secreta, solitária, poderia ter sido feito.”