Rui Nunes: “A minha escrita é o meu olhar”

Rui Nunes acaba de publicar Suíte e Fúria. Nele, o escritor prossegue a sua senda na intransigente disposição de apenas obedecer aos impulsos que emanam da sua condição de ser que escreve.

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Rui Gaudêncio

Contrariamente a livros mais recentes de Rui Nunes, Suíte e Fúria possui um assomo narrativo que estava ausente de obras como Armadilha (Relógio D’Água, 2013), ou, transigindo, de que lado passarás a morrer, a clarear (Língua Morta, 2014), Nocturno Europeu (Relógio D’Água, 2014), Baixo Contínuo (Relógio D’Água, 2017), A Margem de Um Livro (Cosmorama, 2017), ou Lampedusa (Paralelo W, 2017). Sem abdicar de uma escrita de “vigilância”, como nos diz, Suíte e Fúria faz acompanhar os momentos mais reflexivos, líricos, meditativos, de uma perspectiva mais directamente ficcional. Nela, algumas personagens — ou restos, fragmentos do que elas foram — têm as suas interacções. Trocas mínimas, entrecortadas, sincopadas por interpolações do autor, ou de elementos contrários. Princípios como a infância, o tempo, os contágios do passado num presente resvaladiço, voltam a ser submetidos à acção devastadora da escrita de Rui Nunes. O autor de Grito não poupa nas palavras. Na medida apenas em que a sua escrita é única a dizer forma tão desassombrada o horror da História e o golpe temível da acção humana.

A figura do avô, que aparece neste seu novo livro, Suíte e Fúria, como em tantos momentos da sua escrita, podemos entendê-lo como um elemento autobiográfico?
O meu avô é autobiográfico. Quer dizer, a descrição do meu avô. Que não é uma descrição física; eu não gosto de descrever fisicamente as pessoas. Mas aqueles apontamentos. são eles. As situações não são as mesmas, mas as personagens estão lá. E o meu avô é a matriz da escrita. Esse é o meu avô materno. Sabia dar o nome a tudo do mar. Como o meu avô que nós chamávamos lá em casa avô da terra sabia todas as coisas da terra. Portanto, ficou o mundo todo. O mundo ficou logo cheio de nomes. E esses nomes foram muito importantes. A infância foi passada em nomadismo, entre Setúbal e a Beira. Este livro começa exactamente com a matriz desse meu nomadismo. O livro não é especificamente autobiográfico, mas essa situação é autobiográfica. Eu saí de casa dos meus pais, não “para longes terras”, mas saí de casa dos meus pais aos nove meses, para casa da minha tia e do meu avô. E a minha primeira memória visual é dos nove meses. A casa é exactamente como eu a descrevo, com o terreiro onde havia imensos corvos. As situações não serão autobiográficas, mas o espaço é autobiográfico. Ainda hoje, se eu tenho algum sítio, é aquele [a Beira]. Porque não sinto os outros como sítios meus. Sinto-me despossuído deles pelas alterações profundas que foram introduzidas lá; na Beira, não. Mais ou menos mantém-se. Isto embora eu não tenha nenhum enraizamento especial; sinto é a amabilidade, digamos assim, daquele lugar. Mas penso que nós estamos um pouco viciados na autobiografia. Para mim, o texto é importante. Se há elementos biográficos que permitem um acesso mais interessante ao texto, isso sim; aqueles que não correspondem a essa necessidade não têm interesse.

Neste novo livro, aparece muito insistentemente a figura de Heraclito. O que significa, para si, esta figura, em Suíte e Fúria?
É interessante como é que ele aparece. Eu estava a ler o seminário dado por Martin Heidegger e Eugen Fink sobre Heraclito. Heidegger fascina-me e repugna-me, simultaneamente, portanto tenho sentimentos muito fortes em relação à figura e ao pensamento. E depois havia todo aquele processo de análise do texto de Heraclito, com a ultrapassagem do próprio texto e a criação de uma figura fantasmática, que é um outro Heraclito. Isso seduziu-me. Como sempre, eu ia escrevendo notas à margem, durante a minha leitura, e nessas notas começou a entrar o problema da criação de uma personagem. Isto é, de Heraclito enquanto personagem quase romanesca. E isso atirou-me para divagações de outra índole. Além disso, há em Heraclito uma coisa que me fascina, a relação com o tempo, com a mudança, o conflito, a guerra — e, de certo modo, tudo isso está presente no meu livro. Daí eu entender que seria interessante eu ter a matriz do próprio livro. Isto é, como é que ele surgiu a partir daquela leitura. Ao mesmo tempo, ia introduzindo alguns elementos da minha relação específica com o pensamento de Heidegger — e com a repulsa de muito daquilo que ele diz.

Um dos fantasmas que assombram a sua escrita é o nazismo. Tem alguma coisa a ver com a sua experiência austríaca?
Tem, tem. E isso é importante para se perceber porque está ali, porque há isso. Por que razão, não sendo eu austríaco, não sendo eu alemão, não tendo nascido na Europa central? Por razões pessoais, íntimas, estive, desde miúdo, em contacto com austríacos. Judeus austríacos. E as pessoas com quem eu estive em contacto. familiares dessas pessoas, morreram num campo de concentração. Algumas delas, eu conheci-as. Um dos meus grandes amigos — aliás, a quem eu dedico, a ele e à mulher, O Choro É Um Lugar Incerto —, Erich, esteve preso, foi prisioneiro num campo de concentração. O pai dele também, a mãe também. O irmão morreu lá, como o pai. A mãe sobreviveu, e eu conheci-a. Essa foi uma presença constante. Não tanto por aquilo que eles diziam — porque, normalmente, não falavam nisso —, mas porque eles tinham lá estado. E lembro-me de que a primeira vez que o Erich me falou da experiência dele, com alguma profundidade, com alguma minúcia, foi quando eu estava a escrever textos para as fotografias do [Paulo] Nozolino . E então fomos — ele esteve em Mauthausen —, e ele levou-me ao sítio onde tinha estado. Falámos longamente — então, falámos longamente — sobre isso. Daí que essa vivência esteja muito presente, porque eu conheci pessoas, convivi com elas, vivi com elas. Pessoas que tiveram essa experiência terrível.

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Sem abdicar de uma escrita de “vigilância”, como nos diz, Suíte e Fúria faz acompanhar os momentos mais reflexivos, líricos, meditativos, de uma perspectiva mais directamente ficcional Rui Gaudêncio

Terá sido nesse sentido, então, que escreveu, em Cães, “O que é extremo não tem palavras”?
Exacto. Eu sempre fui confrontado, no caso destes meus amigos, com a ausência de palavras em relação àquilo que se tinha passado. Só muito tardiamente — eu publiquei O Choro É Um Lugar Incerto em 2000 e pouco [2005]. Durante dezenas de anos, não se falava, até muito pouco se aflorava, sequer, esse assunto. Mas havia nas pessoas um modo de estar, de ser, que me surgiam sempre como diferentes. E eu sabia porque era diferente, mas isso nunca tinha sido verbalizado.

Então, a referência ao nazismo surge porque lhe parece um perigo, ou trata-se apenas de uma memória histórica?
Não é só uma memória histórica: é um perigo. Não que ele possa renascer como na década de 30, mas porque pode renascer sob outra forma. Porque ele está a renascer. A xenofobia, o racismo, o nacionalismo, estão a renascer na Europa. E nós não sabemos, ou eu não sei, aonde vai levar esse renascimento. Mas que eu tenho medo dele, tenho; que me horroriza, horroriza. Que esta Europa se feche ao outro, o que ela fez e está a fazer aos refugiados, é uma vergonha. E, ao mesmo tempo, atira-nos para memórias extremamente cruéis. Faz-me lembrar a “Europa fortaleza” de que falava Hitler. Queiramos, ou não, esta Europa está a tornar-se uma Europa fortaleza. E eu tenho horror às fortalezas. Como tenho horror às pátrias fechadas e às fronteiras. Como tenho horror a todos os sinais violentamente identitários. E é isso o que está a ressurgir. E o que mais me estranha é que a Europa, e aqueles que, em princípio, deviam estar mais atentos a este fenómeno, não o estejam. Quais são os escritores portugueses que falam do que se está a passar na Europa? Onde é que isso se reflecte naquilo que eles estão a escrever? Escrevem histórias. Histórias. Sofisticam histórias e não mantêm com a língua uma relação de suspeição, que é preciso manter. Eles utilizam a língua como se fosse um instrumento neutro. Mas não é. A língua tem uma história, e essa história está sempre a funcionar. Eu não quero que a língua me domine, quero ser eu a dominá-la. Eu não quero que seja ela a comandar-me, quero ser eu a comandá-la. A língua não é um dom de Deus; a língua é um instrumento. E quando eu ouço dizer “A língua é sagrada”, ou ouço falar do “respeito pela língua”, tenho medo. A língua não tem nada de sagrado, como uma enxada não tem nada de sagrado. Serve, a enxada, para eu cavar a terra; a língua serve para eu falar, para eu escrever, para eu comunicar. É um meio, um meio que às vezes surge quase como um fim; mas todas as vezes que a língua surge como um fim, é preciso suspeitar. Ela, realmente, é um meio, e é preciso reconduzi-la à condição de meio que ela é, não sacralizá-la. Portanto, todos os processos de contaminação da língua me fascinam. Quanto mais contaminada a língua for, mais plástica se torna, e menor poder tem. Realmente, parece que usam a língua como um meio, um meio para contar histórias, mas não: estão a ser utilizados pela língua. A língua é que sabe as histórias que quer que se conte. Porque a língua tem lá todas as histórias; foram estabelecidas ao longo dos séculos. No fundo deste os poemas homéricos, desde os textos da Antiguidade Clássica, que as histórias estão por aí. Daí aparecer aí [Suíte e Fúria] a paródia ao Ulisses, à Penélope. É a matriz da cultura e da literatura ocidentais.

Nada é sagrado, então?
Porque havia de ser?

Pela importância.
Mas uma coisa pode ter muita importância e não ser sagrada. O sagrado estabelece qualquer coisa como intocável. Como transcendente. Uma coisa em relação à qual eu tenho de ter respeito. E eu não tenho. Realmente, não tenho. Qualquer homem é igual a qualquer homem. As ideias valem o que valem os homens. Não há ideias sagradas. Uma língua não é sagrada, um hino muito menos. Nada sagrado, e é precisamente por nada ser sagrado que eu sou um homem, plenamente. Senão, sou um títere. E isso eu rejeito.

Mas Deus está muito presente na sua obra. Como se posiciona perante esse tema?
Não é tanto Deus, é a palavra “Deus”. Nós nascemos com essa palavra, ela está por todo o lado. Na arte, na literatura, na filosofia, na educação, por todo o lado. É uma ideia com um significado fortíssimo, um enorme peso. Como a ideia de justiça, a ideia de bem e de mal. É um conceito. Mas é um conceito de uma importância extrema. Porque, possivelmente, a primeira palavra que eu ouvi foi “Deus”. Como não era muito bem comportado, diziam-me: “Olha que Deus castiga-te.” Mas, como digo num livro, acrescentavam “sem pau nem pedra”. Isso aliviou-me um bocado. Assim, esse castigo não interessa nada. Penso que a minha relação com Deus nasceu aí. O pau e a pedra é que interessam, esses é que magoam; o resto não me afecta. Ou não afectava a criança que eu era.

E hoje em dia é muito diferente?
Não, realmente, não é muito diferente. Não sou crente. Infelizmente, digo às vezes. O meu olhar não me permite que eu seja crente. Tudo me diz que Deus não existe. Não é mais do que um conceito. Aliás, seria, para mim, aterrorizador que alguma vez se pusesse sequer a possibilidade de Deus existir.

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Deus é, portanto, parte de uma tradição cultural?
Sim, sim, é uma tradição.

E o que vale para si a tradição? A tradução cultural, digamos assim?
Vale bastante. Porque eu sou um produto dela. Se eu circunscrever isso à escrita, é evidente que a minha escrita vem de outras escritas, e todas as outras escritas estão presentes na minha. Mas eu quero acreditar que ela acrescenta alguma coisa. E isso é o meu acto de liberdade, por isso não há reverência. E é esse acto de liberdade que a escrita tem, e é esse campo que mostra a minha liberdade em acto. Realmente, eu não me subordino àquilo que os outros pensam da minha escrita, nem àquilo que os outros esperam da minha escrita. Por exemplo, em relação a este livro [Suíte e Fúria], as pessoas estranham. É diferente: tem uma história. É assim. Eu não tenho de obedecer àquilo que os leitores esperam. Isso é um respeito pelo leitor. Eu não teria o mínimo respeito por quem me lê, e eu respeito pessoas — mas não respeito a língua, nem a pátria —, se escrevesse o que eles querem. No dia em que eu escreva o que eles querem, ou o que os críticos querem, então, eu parto a caneta, rasgo o caderno, e vou dedicar-me a outras coisas.

Também acredita, parafraseando o seu livro Grito, que “nenhuma palavra o diz”, que “todas o omitem”?
Acredito, pois. Eu acho que nenhuma palavra diz uma pessoa. E esse é o único plano da transcendência — aqui literalmente — que me fascina. É que uma pessoa está totalmente para lá de tudo o que se pode dizer. Há um lado irredutível em cada pessoa. Irredutível a qualquer palavra. E é isso que o escritor deve explorar, sabendo que não chega lá. Aliás, há um lado irredutível na própria realidade. E é essa irredutibilidade que leva a que se escreva continuamente.

A importância que dá à reflexão e ao pensamento será uma herança da sua formação em Filosofia?
Sim e não. Não fundamentalmente. Eu sou um questionador. Quando era miúdo chamavam-me “perguntador”. Estava sempre a explorar a realidade. E há um aspecto que pode permitir que se compreenda melhor a minha escrita: ninguém nunca me disse que eu não devia fazer isso. Pelo contrário. E esse espaço de absoluta liberdade, quase orgiástica, acompanhou-me quase sempre. Essa investigação da realidade, com os perigos que a própria investigação da realidade comporta, acompanhou-me. Não era possível limitarem-me.

Em Suíte e Fúria, escreve: “Quanto mais se escreve mais falta.” O que significa, para si, esta afirmação?
É a transcendência da realidade, de certo modo. Escrevo sobre qualquer coisa, e isso é como o saber: quanto mais se sabe, mais consciência se tem daquilo que não se sabe. À medida que se escreve, cada vez se tem mais essa consciência. Nada daquilo que eu digo é universalizável, para que fique bem claro. Não tenho pretensão nenhuma à universalidade. À medida que escrevo, percebo que me falta quase tudo. E por isso continuo a escrever. A sensação que eu tenho, quando acabo de escrever um livro, é que já não vou escrever mais. Mas é impossível, porque me falta dizer quase tudo. A escrita mostra-me a sua própria insuficiência.

O que pode a literatura?
Acho que pode muito pouco, e não é um problema, isso. A literatura pode fazer algumas coisas. O que pode fazer é obrigar-me a entrar na minha própria intimidade. Um livro é actual quando eu entro na minha intimidade. É isso que a literatura pode, e muito pouco mais pode.

Vê-se como um escritor à margem? Pensa nisso?
Não, não penso. E nem percebo que digam isso. A margem não é um sítio onde eu esteja, é um sítio onde me põem. É completamente diferente.

Mas sente que o põem à margem?
Ah, sim. Quer dizer: sinto que me olham com alguma suspeita. E ao dizerem que a minha escrita está à margem, põem-me à margem. É uma escrita assim, é isto, é aquilo. Não é nada. A minha escrita é o meu olhar. Não me interessam muito as histórias. Quando quero uma boa história, vou a um policial — tenho lá óptimos. Tenho centenas de livros policiais — diverte-me, distrai-me. Mas não e isso que me interessa na escrita. Quando leio um escritor, quero saber como ele vê. Que relação estabelece ele com a realidade. Eu acredito que cada pessoa estabelece uma relação única com a realidade. E é essa relação que me interessa, não é uma história inventada e depois sofisticada para ser diferente. Não. Aquilo que me fascina é o olhar único, que se manifesta na escrita de cada autor. O que acontece é que a maior parte do que se escreve não tem atrás um olhar único. Não é nada. Tem atrás um vazio. E isso perturba-me, por isso não leio.

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