A sociabilidade e a libertação da lei da morte

Na ilha do Pico projecta-se uma força ética indizível que foi para mim uma lição de sabedoria, que inspira a viver este tempo que é o nosso.

Como está perante todos, vivemos tempos de transição e mudança. Afirmam-se muros associais, um pouco por toda a parte, e na sua génese está também um vento de populismo e de extremismo que paulatinamente está a fazer perigar, nos epicentros da cultura ocidental, os pilares civilizacionais de referência, isto é, a organização social vinculada aos direitos do homem, à democracia representativa e ao primado do direito. Ou seja, de um quotidiano assente na liberdade individual, em especial a de expressão e a de associação. Em paralelo, começou a massificar-se o uso de novas tecnologias. E se é certo que nos oferecem uma mão cheia de possibilidades para um quotidiano mais justo, inclusivo e sustentável, através de um melhor combate à pobreza agregada, de mais respeito pelo ambiente ou de melhor acesso de todos à educação, também trazem novos perigos, como por exemplo os da combinação do big data com a inteligência artificial, que criam novas formas de tirania, como sejam as novas possibilidades de controlo securitário dos cidadãos pelos Estados, ou a manipulação dos consumidores por empresas motivadas pelo lucro. Faço notar que estes perigos são tanto mais reais quanto é certo que prevalece uma preparação desigual para a sociedade digital, incluindo a falta dela, e que são realidades que venho abreviando na expressão "assimetria tecnológica".

Foi pois perante este tempo de muros associais e de assimetria tecnológica que estive na ilha do Pico, um dos pontos geográficos mais distantes do dito centro. Local hoje designado de ultraperiférico no jargão jurídico, e sobre o qual o primeiro donatário, ao colocar o pé em terra, sentenciou “aqui não medra...”, como me ensinou pessoa amiga. A história confirma que a esta atitude no olhar do donatário sobre a ilha responderam os locais com uma cultura de aspiração e de ir mais além. Assim viabilizando a vida quotidiana de uma comunidade que não se entregou à tirania do infortúnio ou de ser bacia de piratas. No seu querer ser e estar, elevaram-se, fabricaram entre outras maravilhas os curros, que são pequenas armações feitas de pedras para proteger o crescimento das parreiras e das figueiras, hoje justamente classificados como património da humanidade. E que perante a contemplação do ponto mais alto de Portugal oferecem-nos uma paisagem de beleza sublime que não conhecia, que projecta uma força ética indizível e que foi para mim uma lição de sabedoria, que inspira a viver este tempo que é o nosso.

Nos curros está a depuração de tudo o que importa para afirmar a vida em sociedade, e enfrentar a adversidade, seja ela física ou moral. Simboliza acima de tudo o triunfo da vocação propedêutica do Homem, que ao contrário do tigre da Malásia não é dotado de unhas afiadas, que o especializou e reduziu à função de predador. O Homem, porque dotado de inteligência e da faculdade da inventiva, soube agir sobre o meio ambiente e ordená-lo através de uma cultura de querer. Agiu sobre o ambiente físico respeitando-o, e transformou pedras em peças, que ligou entre si numa combinação de técnica com as leis da física, que resultou num misto de equilíbrio e inércia que sustem as pedras que se amparam entre si, assim resistindo a tempestades e sismos e viabilizando a produção agrícola e o sustento. Construindo pelo caminho uma paisagem que é um hino ao fazer das fraquezas força, que reduz a disparate de comodistas o ditame “não há omeletes sem ovos”, e desnuda os limites do preconceito, do dogma, do apriorismo, do cânone e do óbvio.

No meu contributo pessoal e profissional venho procurando introduzir a importância de ser considerada como prioridade quotidiana uma dimensão tantas vezes esquecida ou secundarizada: a da sociabilidade. Lembremos que o Homem é um ser social e que só se realiza em sociedade na colaboração com os outros. Por isso, a sociabilidade e a colaboração são requisitos sine qua non do ser e estar em comunidade, e que é necessário que evolua pelo escopo da solidariedade. Nisto, a ilha do Pico incita-nos a descobrir o modo de viver num ambiente tido por inóspito, e neste querer, aventurar o novo e projectar a força aglutinadora do equilíbrio em favor da viabilização da comunidade. Isto é tanto mais necessário perante os desafios que surgem no horizonte, em especial os perigos do populismo e os da assimetria tecnológica a que aludi, ou os de um materialismo desenfreado que ameaça as instituições da cultura ocidental, em especial as da liberdade individual. Neste sentido, são tempos que nos ajudam à clarificação da responsabilidade da nossa condição de pessoas livres, de sabermos crescer, colaborar, e de estarmos à altura deste tempo que é o nosso, e de nele persistirmos na aspiração de ligar os homens entre si, valorizando a diferença e a construção de equilíbrios, para assim promover uma colaboração que viabiliza a sociabilidade centrada na ética e na dignidade humana, no que é decisivo a atitude de fazer pontes e da interacção do homem-ambiente-cultura, como nos legaram os melhores de nós. O que é algo que o grande Luís Vaz de Camões clarificou ao interpelar todos e cada um, com o mais elevado desafio a favor da comunidade: “E aqueles, que por obras valerosas/ Se vão da lei da morte libertando.”

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