László Krasznahorkai: “As pessoas não precisam de profetas. As pessoas precisam de falsos profetas”

Hipnótico, tragicamente cómico, grotesco, O Tango de Satanás é um romance sobre um mundo em decadência e traz à edição portuguesa um dos mais inovadores e brilhantes autores contemporâneos: László Krasznahorkai. Lê-lo é uma tarefa de resistência com recompensa assegurada.

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Nascido em 1954 em Gyula, no Leste da Hungria, é um dos nomes mais originais da literatura europeia. Estava até agora por editar em Portugal. Susan Sontag chamou-lhe mestre contemporâneo do apocalipse

A figura de László Krasznahorkai desafia o tempo. O rosto podia ser tanto o de um profeta do Antigo Testamento como o de um protagonista de uma distopia. Ele prefere dizer que é um homem sem lugar ou um homem de todos os lugares. Dito isto, László Krasznahorkai desafia tempo e lugar. Não cabe também em designações formais com fronteiras mais ou menos definidas como, por exemplo, a de escritor. Afirmar que é um escritor húngaro é provocar nele uma reacção imediata. “Aos meus olhos, escritores são Kafka ou Homero. Eles são os génios para mim. A minha produção não é mais do que um número de tentativas atrás de tentativas de escrever um pouco melhor do que antes. Além disso, sou um tipo independente, não posso ser identificado com o papel do escritor; não tenho uma casa algures no mundo, não tenho um país realmente; posso estar em qualquer lado em casa e mudar de casa muitas vezes. Sou do tipo que vagueia. Vivi em muitos lugares desde o Leste da Ásia aos Estados Unidos, e volto e saio outra vez. Estou sempre a mudar. Não por achar que vou encontrar o lugar ideal na próxima paragem, ou que o próximo sítio será melhor do que o anterior, mas porque tenho sempre de ir embora do lugar onde estou.  E nunca quis ser escritor, não tinha qualquer desejo de ser um escritor no sentido social da palavra.”

Nascido em 1954 em Gyula, cidade no Leste da Hungria junto à fronteira com a Roménia, é um dos nomes mais originais da actual literatura europeia. Estava até agora por editar em Portugal. Susan Sontag chamou-lhe mestre contemporâneo do apocalipse. Visionário, inovador, tem sido comparado no estilo a Franz Kafka, Gogol, James Joyce, Samuel Beckett ou Thomas Pynchon, e o seu nome apontado como um dos candidatos ao Nobel. Ele diz que nunca teria escrito se não tivesse lido Kafka. “Kafka tem um papel muito importante nesta história toda. Li-o pela primeira vez quando era muito novo. Tinha um irmão seis anos mais velho que estava a ler O Castelo e percebi que ele estava deleitado. Eu quis ler e sentir o orgulho de dizer que também entendera o livro e também já tinha lido Kafka. Li, claro que era incompreensível para mim. Mas mesmo não entendendo conseguia de alguma maneira sentir a palavra de Kafka; era como um texto secreto e podia imaginar o quão maravilhoso esse texto poderia ser. Não entendia, mas era tão bonito! Via aquelas palavras magníficas e punha-me a imaginar o que poderia estar por trás. Quando o li mais tarde esse sentimento surgiu outra vez, como um império sem comparação”, refere sobre o maravilhamento permanente que Kafka lhe suscita.    

Desde Sátántángo, o seu romance de estreia em 1985, criou um universo muito pessoal, um mundo em desestruturação, marcado pelo grotesco, uma tragicomédia atravessada pelo absurdo, brutal. Em 2015, ganhou o Man Booker International Prize que distingue um autor pelo conjunto do seu trabalho e o mundo anglossaxónico despertou para uma obra com mais de vinte títulos, até aí conhecida sobretudo nos países germânicos. É este homem que agora chega a Portugal justamente com Sátántángo, romance de 270 páginas que o cineasta húngaro Béla Tarr transformou em 1994 num filme de sete horas e meia. Certamente mais do que o tempo que demora a sua leitura, nota Rogério Casanova no prefácio da edição portuguesa que acaba de chegar às livrarias.

Com o título O Tango de Satanás, o romance passa-se no lugar onde em tempos funcionou uma cooperativa. É um mundo em decomposição, com casas a cair, povoado por figuras meio loucas num desespero onde prolifera a vigarice e a trapaça, uma sensação de conspiração permanente. Bêbados, prostitutas, um taberneiro, coscuvilheiros, vagabundos, intriguistas e um intelectual — em estado de clausura e inacção que não a do pensamento — vivem uma decadência moral e física. Eles são o que resta de uma espécie de falha colectiva.

A figura do intelectual dá-nos ao mesmo tempo a leitura e também a narrativa desse mundo na qual entramos com acesso privilegiado ao círculo da sua consciência. Como diz o autor, com ele “assistimos a um processo que é o da direcção ao apocalipse”. Esta é a toada do seu monólogo interior: “... experimentou friamente a realidade da existência: viu-se, vítima impotente e sem defesa dessa crosta terrestre movente, viu a curva frágil do seu nascimento e da morte diluir-se no combate silencioso dos mares que recuavam, das montanhas em ascensão, e, no corpo obeso, bem colado ao sofá, quase podia sentir essa ligeira vibração, presságio de nova intrusão do mar, sinal de fuga impossível, esse mar incapaz de resistir à sua própria força e que, transbordante, arrastava no seu leito hordas de animais aterrados, em pânico, ursos, coelhos, veados, ratos, insectos e lagartos, cães e homens — enquanto, por cima das suas cabeças, o voo rasante das aves esgotadas sinalizava uma derradeira esperança.” Podia ser um tempo bíblico.

“É um romance de um tempo que já não existe. Pertence a um mundo que desapareceu completamente”, diz László Krasznahorkai ao Ípsilon a partir de Berlim. “Era, em absoluto, outro mundo, e não por ser a Hungria comunista, mas desapareceu em todo o mundo ocidental. Quase tudo mudou, excepto o comportamento humano.”

Antes do dilúvio

Começa assim: “Uma manhã de finais de Outubro, pouco antes de as primeiras bátegas das intermináveis e impied.osas chuvas de Outono começarem cair no solo gretado e salino, a oeste da exploração (procedendo o mar de lama pútrida que tornaria intransitáveis os caminhos vicinais e deixaria inacessível também a cidade até às primeiras geadas), Futaki acordou ao toque dos sinos.” Futaki estava na cama da senhora Schmidt, quando o marido dela, Schmidt, regressou a casa. Tem então início um diálogo demonstrativo do grau de vigarice, de desconfiança e de traição entre vizinhos, um ambiente sustentado pelo mais absoluto desespero. Tudo muda quando se sabe da chegada de um ex-elemento daquela comunidade, Irimias, homem a quem todos atribuem poderes especiais e que todos julgavam morto. Ele é visto como um profeta. Ele virá certamente salvá-los daquela existência condenada. 

“Esta é uma história sobre como as pessoas não precisam de profetas. As pessoas precisam de falsos profetas. É essa a principal mensagem deste romance”, diz Krasznahorkai sobre um romance que expõe e ridiculariza as bases de uma sociedade totalitária. “As ditaduras foram sempre bastante populares na história humana e, de tempos a tempos, o poder político recua a esta velha forma, ao outro polo da democracia”, continua, clara alusão ao tempo presente. “Agora, em especial na Europa de Leste, a nova situação é bastante assustadora. O que existe não é uma ditadura, mas o sentido em que vai é propício a que ela surja. Ou seja, os novos regimes políticos na Polónia, na Hungria e por aí fora não são ditaduras. Estão no poder graças a eleições democráticas. E veja, não é só a Leste, acontece também em Itália, o que é muito mais perigoso, penso.”  

O Tango de Satanás é mais um daqueles romances que ganham nova dimensão no tempo actual. Há um estado de angústia crónica que perpassa e ecoa. No livro ele é dado não apenas pela decadência das casas, pelo burlesco da relação entre as personagens, por uma atmosfera diluviana em que a chuva e a lama ameaçam levar tudo, e por um tempo que parece ter pouco de objetivo, marcado pela espera, pelo desencontro de ponteiros, por uma circularidade — que é também a da estrutura do romance — vertiginosa, obsessiva, a de uma dança — um tango — a remeter para o abismo e para a ideia de perdição. As frases longas, os capítulos de um só parágrafo, acentuam essa percepção de delírio coletivo.

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Quando o livro foi publicado, muitos viram-no como uma crítica desapiedada ao regime comunista, outros que o conheceram depois da queda do Muro de Berlim, em 1989, como o retrato de um mundo tão desconhecido quando sedutor pela sua carga secreta. Lászlo Krasznahorkai abria as portas ao interdito soviético. “As críticas foram muito diferentes em meados dos anos 80 daquelas que surgem agora. Na Alemanha, por exemplo, os críticos estavam muito interessados no que acontecia na parte Leste do mundo e o romance lidava com essa realidade. Na Hungria foi lido como como um ataque político contra o regime. A minha proposta era, no entanto, muito diferente. Eu queria escrever um livro sobre o mundo e não contra um regime.” E aquele era o único mundo que conhecia. “Até 1987 não pude sair da Hungria, não conseguia um passaporte para o mundo livre. Conversava com os húngaros, intelectuais, lia-os e o mundo era igual para mim e para eles. A Hungria era o mundo para nós. Por isso, o mundo deste romance era, para mim, similar ao mundo. E não quis escrever um livro sobre o regime político porque esse regime era muito ridículo para mim. Vivi numa época em que as pessoas como eu, da minha idade, já não acreditavam nesse regime. Em meados de 80 já não metia medo. Apesar disso não podíamos adivinhar que o império soviético iria cair em poucos anos. Aquela era a nossa realidade diária e os comunistas eram o povo mais ridículo mais cínico.”

É o mesmo cinismo de muitas das personagens, levado, por Krasznahorkai, a um extremo que tanto causa gargalhada como mal-estar. É sobre gente que acumula erros. “Venho de uma família burguesa e quando tinha uns 18, 19 anos fui para longe da minha família e do mundo dela. Era um leitor fanático de Kafka e de Dostoiévski e achei que a vida real se passava a um nível mais profundo. Decidi então ir às profundezas da sociedade húngara e vivi durante anos em pequenos lugares onde tive trabalhos muitos simples e muito físicos; vivi entre gente em grande estado de pobreza. E vivi entre bares e estações de comboio, bebia muito, toda a gente bebia naquele tempo na Hungria. Era muito comum, tão comum como os cigarros. Vivia entre essas pessoas e senti-me muito bem. Aquela vida era também a minha vida. E queria escrever um livro sobre essa vida que descobri numa subcamada da sociedade.”

Lászlo fala com o mesmo sentido de circularidade com que escreve, uma cadência musical, como se as palavras encontrassem lugar numa pauta musical. Há uma razão. “A música é a minha linguagem natural, a música e as palavras. São uma matéria essencial. Sem música, sem palavras não poderia viver. Sabe, também faço musica. Toco alguns instrumentos desde criança, mas nunca em público.” Tem colaborado com a música e com outras artes, como o cinema ou a fotografia. “O meu interesse por outras artes deve-se ao facto de achar que a verdadeira arte está em viver numa comunidade secreta e vivo nessa comunidade. Não sou um escritor, mas sou um artista, acho. E gosto muito de estar com artistas.”

Na década de 90 viveu uma situação privilegiada. Instalou-se no apartamento de Allen Ginsberg, o poeta da Beat. “Lá, no apartamento de Allen, conheci tantos artistas fantásticos! Estava extasiado. Eu era o mesmo tipo do Leste da Hungria e até hoje sou o mesmo, e ali estava eu entre eles. A partir de então o meu modo de pensar a literatura passou a ser deferente. Por exemplo, quando estava no apartamento de Allen ele ajudou-me a resolver problemas literários, técnicos, que para mim eram insolúveis; estar próximo dele era estar numa atmosfera fantástica. Nos seus últimos anos, era um homem muito, muito sábio e era muito generoso com os jovens artistas. Posso dizer que a razão pela qual estou familiarizado com outras formas de arte é por ser curioso acerca do que um artista pode fazer. Adoro-os, admiro-os e essa é a minha verdadeira casa.”

Este é Lászlo Krasznahorkai que no fim da conversa deixa uma confissão: “Até hoje me envergonho sempre que tenho de dizer que sou um escritor.”

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