De manicure activista a “putinha terrorista”, Lyz Parayzo faz arte de guerrilha através do corpo

Já invadiu exposições, já foi censurada, já passou por importantes instituições das artes do Brasil. É um dos nomes mais entusiasmantes e desafiadores de uma nova geração de artistas brasileiros – vamos vê-la no Maus Hábitos a partir de dia 15, na exposição colectiva Adorno Político.

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Camila FalcÃo

Lyz Parayzo não pediu licença para entrar no circuito artístico brasileiro. Começou o seu percurso a invadir exposições da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, onde estudava, com “trabalhos-surpresa” e acções performativas centradas no seu corpo. Traçou “um plano de guerrilha”. Na primeira intervenção, Secagem Rápida (2015), colou numa casa de banho fotografias do seu ânus esticado pelas suas mãos, com unhas pintadas de cor-de-rosa. Foi censurada. Ao segundo trabalho, despediram-na do cargo de educadora. Ao terceiro, desligaram as luzes a meio da performance. Ameaçaram-na de expulsão. Entretanto, começou a ser convidada para mostrar os seus projectos em galerias e museus. No ano passado, participou na muito falada (e muito polémica) exposição colectiva Histórias da Sexualidade, no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP). É das poucas artistas transgénero presentes em colecções de museus brasileiros: está no Museu de Arte Contemporânea de Niterói e no Museu de Arte do Rio.

Sem invasões, vamos poder ver Lyz Parayzo (n.1994) na exposição Adorno Político, de 15 de Novembro a 20 de Janeiro no Maus Hábitos, no Porto – apresenta-se também com uma performance, Manicure Política, na noite de inauguração, e uma palestra, A Vênus de Cor, no dia 17, seguida da exibição do minidocumentário Parayzo. Com curadoria de Tales Frey, Adorno Político reúne obras de artistas brasileiros de diferentes gerações, abrangendo os territórios da performance, body art, vídeo, fotografia. Estão aqui vários “lugares de fala” e “singularidades diversas”, nota o curador. Neste “grupo heterogéneo”, o que liga os artistas são os seus corpos e existências fora da norma; corpos historicamente subalternizados na esfera política, social, artística.

Questões relacionadas com o sexismo, o racismo, a LGBTfobia e as heranças da colonização atravessam esta exposição – e são temas indissociáveis da prática artística militante de Lyz Parayzo. “O meu trabalho começou num lugar de activismo, mas como estudava numa escola de arte, o activismo ganhou um carácter artístico”, explica. A par da performance, tem vindo a trabalhar com objectos escultóricos a que chama de “jóias bélicas”, e através das quais ensaia “extensões” do seu corpo. O corpo, esse, está sempre lá. É uma “questão de sobrevivência”. “Ainda não consegui fazer um trabalho sem colocar o meu corpo nele porque estou num lugar de urgência. O meu trabalho está muito ligado à minha vida. Faço porque preciso de fazer.”

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É das poucas artistas transgénero presentes em colecções de museus brasileiros: está no Museu de Arte Contemporânea de Niterói e no Museu de Arte do Rio Camila Falcão

Pessoa trans não-binária, criada numa família pobre, começou a invadir inaugurações de exposições no Parque Lage – que integravam obras de alunos mas também de artistas consagrados – como uma forma de se “posicionar politicamente” dentro de um espaço, físico e simbólico, que excluía identidades como a dela. Uma dessas performances-protesto foi EAV AVE YZO, materializada numa fanzine em que criticava medidas da administração da escola, como a criação de uma cantina gourmet com preços nada acessíveis para estudantes de classes mais baixas. Em cópias do menu da cantina, entre a barriga de porco cozida lentamente com sálvia, o entrecôte grelhado no sal grosso com manteiga béarnaise e batatas rústicas ou o galeto no limão siciliano, Lyz carimbou a palavra “fome” a letras garrafais, alternando com uma reflexão sobre a censura nas artes visuais brasileiras.

A artista voltaria a abordar as questões de classe, sempre num diálogo com o corpo e as suas possíveis extensões em adornos e indumentária, na performance Fato-Indumento (a tal em que desligaram as luzes a meio). “No Rio de Janeiro, muitas galerias ainda são de famílias de oligarcas que trabalham com arte. São lugares muito higienizados e que não lidam bem com um trabalho de activismo que foge a lógicas mercantilistas”, observa Lyz, para quem “as relações de classe” no meio artístico ficaram “logo muito claras” no início da sua carreira. “Há uma herança colonial e fica bem marcado nesses espaços quem tem um lugar de prestígio.”

A crítica institucional é uma constante nos seus projectos. Nessa “linha”, diz, está Putinha Terrorista, uma série de flyers (alguns deles expostos em Adorno Político) criados a partir da estética dos panfletos de prostituição do Rio de Janeiro, em que os números de telefone e os endereços são, neste caso, das galerias onde Lyz já expôs. “O meu trabalho sempre implicou borrar as fronteiras do que é oficial ou institucional. Com estes folhetos quis falar sobre a prostituição da imagem de certos corpos subalternizados, inclusive dentro da arte”, afirma a artista. “Comecei a colocar também coisas do meu quotidiano, mais politizadas, sobre feminismo, relações de trabalho violentas, colonização, racismo, como a mesticinha na arte brasileira, sempre vista como objecto pintado por brancos.”

Apesar de tudo, considera que nos últimos anos tem havido progresso, muito por causa de políticas afirmativas para a educação, que permitiram aumentar o acesso às universidades de pessoas não-brancas e de classes baixas, e também por causa de um movimento feminista, negro e queer que tem ganho protagonismo dentro da produção artística brasileira. “Muitos destes corpos ostracizados não são mais objectos; são sujeitos. Tivemos agora, por exemplo, a exposição Histórias Afro-Atlânticas no MASP, o museu mais importante do país”, assinala. “Há um esforço descolonial em repensar estas instituições. Algumas fazem direito, outras não. Quando digo ‘fazer direito’ é destruir um capital simbólico, não é continuar a fazer homenagem a esses corpos num lugar de fetiche. É ver esses artistas a fazer o seu trabalho, a falarem por si.” Daqui para a frente, com um governo de extrema-direita no país, a questão é mesmo perceber se esse caminho não vai ser brutalmente interrompido – Jair Bolsonaro já disse que o activismo “não é benéfico” e que quer “acabar com isso”. “Melhorou, mas não sei como vai ser agora”, diz Lyz Parayzo. “Mais do que censura, acho que vai passar por não dar dinheiro para a cultura.”

Não se sabe muito bem o que vai acontecer, mas a artista acredita que o activismo não vai deixar de existir, nem que seja “em espaços independentes”. E é isso que ela vai continuar a fazer nas performances Manicure Política, cujo próximo capítulo acontece no Maus Hábitos. Neste projecto, que começou em 2016 na Torre H, prédio abandonado na Barra da Tijuca desenhado pelo arquitecto Oscar Niemeyer, Lyz monta o seu Salão Parayzo e pinta as unhas de rosa a quem quiser. “Tem esse lado lúdico da manicure, mas também há a conversa: falo sobre como o género é performativo e uma construção social, não uma determinação biológica, falo sobre as várias possibilidades de existir no mundo… É também um trabalho de consciencialização.”

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