Será a “nova era” de Erdogan tão diferente da Turquia de Atatürk?
O seu legado explica grande parte do sucesso do AKP e de Erdogan, que decidiu inaugurar o mega-aeroporto de Istambul nos 95 anos da República fundada por Mustafa Kemal. O "pai dos turcos" morreu há 80 anos.
Este foi um ano de grandes avanços no projecto de Recep Tayyip Erdogan para enterrar o kemalismo (herança de Mustafa Kemal Atatürk, primeiro Presidente da Turquia) e criar o que o próprio descreve como “Nova Turquia”. Paradoxalmente, terá sido também o ano em que o homem que já ultrapassou Atatürk em tempo de poder (enquanto líder do partido dominante, o AKP, primeiro-ministro ou Presidente, tem os destinos do país na mão há 16 anos) mais vezes visitou o mausoléu dedicado ao fundador da Turquia moderna.
Sábado será a segunda vez em poucos dias que Erdogan passará pelo espaço criado para homenagear “o pai da nação” que milhões de turcos ainda veneram. Era estranho se não o fizesse, afinal, celebram-se 80 anos desde a morte de Atatürk.
“Comemoro com respeito Ghazi [vitorioso, título atribuído pelos nacionalistas turcos ao militar que se tornou Presidente] Mustafa Kemal, fundador na nossa República. […] Devemos explicar as qualidades de Ghazi enquanto pessoa resoluta à nossa juventude e às nossas crianças, e todos juntos cumprir os deveres que nos cabem no trabalho de garantir que a nossa República vive para sempre e avança ainda mais”, afirma Erdogan na mensagem publicada esta sexta-feira no site da presidência.
O tom do texto é naturalmente elogioso mas o mais importante pode mesmo ser o fim da frase acima citada – “avança ainda mais”. Erdogan não quer apagar Atatürk da história, isso seria demasiado ambicioso, mesmo para ele. Mas quer glorificar a história pré-Atatürk e o futuro que a ele julga pertencer.
A semana passada, como manda a tradição, Erdogan esteve no mausoléu para assinalar os 95 anos da República da Turquia. Não foi por coincidência que escolheu o mesmo dia 29 de Outubro para inaugurar o novo Aeroporto de Istambul (muito se especulou sobre a intenção o baptizar com o seu nome), que em breve substituirá o actual Aeroporto Istambul Atatürk. “Comemoramos este dia inaugurando um dos mais prestigiados aeroportos do mundo em Istambul. A inauguração deste aeroporto num período em que a nossa economia está sob ataque é uma marca da potência da Turquia”, afirmou Erdogan, com palavras que dirigiu ao próprio Atatürk.
A dimensão da nova estrutura corresponde às ambições de Erdogan para o país, e não só. Ainda na primeira fase, dali se voará para 350 destinos, esperando-se que por lá passem 90 milhões de passageiros por ano. Mais tarde, chegará aos 200 milhões. “Istambul não é só a nossa maior cidade. É uma bela jóia entre dois mares. Pode ser comparada ao sol desta terra”, afirmou na inauguração, já depois do discurso no mausoléu.
“Isto não é só um aeroporto. É um monumento à vitória”, declarou o Presidente turco, sublinhando ainda que esta não é uma obra para o país. “É um grande serviço que oferecemos à região e ao mundo.” Independentemente da linguagem hiperbólica habitual do chefe de Estado é um facto que Istambul se pode tornar mais ainda num grande centro entre a Ásia, a Europa e o Médio Oriente. Não só está a nove horas de avião tanto de Xangai como de Nova Iorque como fica, nas contas de um economista citado pelo jornal britânico Independent, a onze horas de voo de 80% da população mundial.
A infra-estrutura, como tantas outras que Erdogan inaugurou – desde o seu palácio com 1200 divisões e mais de 350 centros comerciais, passando pelas 17 mil mesquitas ou 13.500 km de estradas – é parte da marca que quer deixar no país e na região.
Ideologia oficial
Os analistas costumavam dizer que o homem forte da Turquia encarnava a ideologia neo-otomana, caracterizada pelo centralismo e pela vontade de ser o país hegemónico nas regiões que integravam o Império Otomano. É o seu lado expansionista – há dois anos, precisamente durante as comemorações da morte de Atatürk, distinguiu entre as “fronteiras físicas” da Turquia e as suas “fronteiras do coração”, do Cáucaso a Alepo, na Síria, ou Mossul, no Iraque – e também a sua forma de promover o islão político contra os “ataques de inimigos” (EUA, Israel ou europeus, os mesmos que acusa de tentarem destruir a economia da Turquia, recusando-se a admitir responsabilidades na actual crise).
Há dois anos, o aniversário também serviu a Erdogan para evocar um paralelismo, comparando a luta de Atatürk na guerra de independência da Turquia contra os vencedores da I Guerra Mundial à sua vitória contra os golpistas que o tinham tentado derrubar poucos meses antes. O golpe falhado de Julho de 2016 serviu a Erdogan como pretexto final para se livrar de opositores e críticos (presos), encerrar centenas de jornais ou rádios e despedir centenas de milhares de funcionários públicos – substituindo-os por pessoas próximas do seu AKP (Partido da Justiça e Desenvolvimento) ou do MHP (Partido do Movimento Nacionalista), a formação de extrema-direita que se tornou num improvável aliado do Presidente no pós-golpe.
Entretanto, como já se anunciava, o AKP fez passar em referendo um tipo particular de presidencialismo, com Erdogan a deter todo o poder executivo mas também parte do legislativo (quase esvaziando as competência da Grande Assembleia Nacional, a pérola do legado político de Atatük) e judicial (neste caso através de nomeações). Entretanto, a filosofia de governo de Erdogan começou a caminhar para se tornar na “nova ‘ideologia oficial’, como o kemalismo foi durante quase um século”, escreveu, já em 2016 o analista turco Mustafa Akyol.
“Alguns observadores da Turquia chamam a esta ideologia ‘islamismo’, mas isso não conta toda a história”, continua Akyol. “ Na verdade, tal como a que a precedeu, o kemalismo, esta é uma ideologia centrada no culto de uma personalidade: o erdoganismo.”
“A vontade da nação”
A maioria dos críticos internos de Erdogan considera-se kemalista e acusa-o de destruir a República laica e democrática que Atatürk criou, esquecendo que a ambos partilham um estilo de governação assente no autoritarismo. A diferença, como Erdogan tenta mostrar, é que ele, ao contrário de Atatük, foi eleito e reeleito. “Pela primeira vez desde o período Otomano, a Turquia fez a sua escolha não através de golpes ou de mudanças forçadas mas através da vontade livre da nossa nação”, afirmou na tomada de posse, em Julho. “No novo sistema o nosso guia será de novo a democracia. Será a superior vontade da nação.”
Erdogan acredita mesmo nisso – o problema é que a sua visão de democracia se resume à realização de eleições. Enquanto eleito é ele o único representante legitimo da “superior vontade da nação”. Como não podem chamar-lhe “pai da nação”, os seus apoiantes chamam-lhe “homem da nação” ou dizem que “Erdogan é a Turquia”.
Atatürk só precisou de 15 anos (1923-1938) para fundar a Turquia moderna e alterar, pelo menos à superfície, os próprios hábitos dos turcos (ajudou que liderasse um regime de partido único). O líder carismático e transformador que aboliu o sultanato modernizou o país do ponto de vista económico e político: acima de tudo, empenhou-se em separar a religião da política, o que nunca ninguém tentara no mundo muçulmano.
Mudou o dia de descanso de sexta-feira para domingo, inscreveu a laicidade na Constituição, proibiu a poligamia, proibiu o fez otomano para os homens e os lenços para as mulheres, adoptou os códigos ocidentais (Código Criminal francês, Código Penal italiano…), fez reconhecer o casamento e o divórcio civis. Em 1935, daria às mulheres o direito a votar e a serem eleitas. Mas tal como Erdogan tenta criar a sua Nova Turquia investindo em escolas islâmicas e na alteração de currículos para formar turcos “pios” e lembrar que “a história da Turquia não começou em 1923, Atatürk impôs a introdução do alfabeto latino, aboliu o calendário islâmico e obrigou os turcos a adoptarem nomes próprios – tornando-se assim Kemal Atatürk, “pai dos turcos”.
Nacionalismo e paranóia
Oito décadas passadas sobre a sua morte e o seu legado explica grande parte do sucesso do AKP e de Erdogan. Num país com 98% de muçulmanos, os crentes sentiram-se por fim “libertados” da opressão que diziam sentir por parte das elites. Com tudo o que os separa, Atatürk e Erdogan também são duas faces de uma moeda chamada “a Turquia sou eu”.
Erdogan tem 64 anos e quer permanecer no poder enquanto for vivo. Para isso, escreve Akyol, “precisa de manter o apoio popular, o que significa continuar a dominar a narrativa nacional”. Por outras palavras, um autoritarismo crescente. No fim, conclui o analista, “terá sido alcançada uma ‘Nova Turquia’ – mas uma muito diferente da prometida por Erdogan”.
“Há quase um século, alguns historiadores argumentaram que a retórica revolucionária que marcou a criação da República da Turquia escondia continuidades profundas com o estado Otomano que a precedeu”, comentou a propósito nos novos poderes de Erdogan o historiador Nicholas Danforth, especialista em Médio Oriente. “De uma forma semelhante, a Nova Turquia de Erdogan pode acabar por se mostrar menos nova do que a sua retórica sugere. Até agora, as continuidades são no mau sentido, com Erdogan a usar a estrutura paranóica e autoritária do nacionalismo que herdou do antigo regime para construir uma estrutura nova, mais frágil e ideológica”.