“Olham-nos como se África fosse um só, guineenses ou angolanos, tudo o mesmo”

O ensino bilingue e a globalização “invadiram” uma discussão de políticas educativas no ISCTE, num congresso que terminou sexta-feira. Os exemplos de Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe foram o mote.

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Antigo Liceu Nacional em São Tomé e Príncipe (imagem de arquivo, 2004) HUGO DELGADO

Depois da cooperação e do bilinguismo, as políticas educativas: a manhã do segundo dia do IV Congresso de Cooperação e Educação, que decorreu no ISCTE, em Lisboa, nos dias 8 e 9 de Novembro, reuniu em mesa-redonda especialistas de três países africanos para debater o tema. Arlindo Mendes Vieira (Cabo Verde), Geraldo Indeque (Guiné-Bissau) e José Carlos Aragão (são Tomé e Príncipe) traçaram, cada qual a seu modo, o cenário das políticas dos seus países, acabando por se falar de novo no bilinguismo e do papel das línguas nacionais.

Arlindo Vieira traçou um panorama histórico de Cabo Verde, recuando ao tempo colonial, passando pelos tempos do partido único e do seu “discurso político económico estatizante” para chegar ao período onde um discurso mais economicista acabou por se implantar, devido sobretudo à intervenção dos apoios externos (Banco Africano para o Desenvolvimento e Banco Mundial). Com uma Lei de Bases do Sistema Educativo desde 1990 e com reformas mais ao gosto dos programas internacionais (há hoje 10 universidades, um excesso para um universo de meio milhão da habitantes!) e “linguagens impostas pela globalização”, Cabo Verde está, afirmou, no “bom caminho porque é o menino obediente e segue as directivas.” Isto, no entanto, tem um preço. E ele apontou-o, nas conclusões: há uma “profunda crise de identidade ideológica”, atendendo menos às especificidades do país do que às exigência do mercado global, agravada pela “não-inclusão da nossa língua” (o crioulo) nos currículos.

Um robô em plena crise educativa

Sem recuar tão demoradamente na história colonial e pré-independência, Geraldo Indeque lembrou, de passagem, os tempos em que se educava “o mínimo de pessoas necessário à manutenção do sistema colonial”, passando-se desse 8 ao 80 após a independência, com a tentativa de massificação do ensino. Sem meios internos, recorreu-se ao Banco Mundial e as receitas foram também globalizadas, impondo-se uma visão exterior que olha para África como se fosse um país e não um continente de muitos países com realidades diferentes. “Às vezes vem um pacote já experimentado em Moçambique, ou Angola, para tentar implementar na Guiné, como se África fosse um só, guineenses ou angolanos, tudo o mesmo.”

Dependente, em matéria de educação e respectivas infra-estruturas, de apoios externos (Portugal, Brasil, Rússia, Cuba, Marrocos, Argélia), a Guiné-Bissau gasta 97% do dinheiro destinado ao ensino em salários e apenas 3% ficam para investimento no sector. “Ou seja, não há investimento.”

Com uma única universidade a tentar reerguer-se e com “problemas sérios” de alfabetização, a Guiné-Bissau tem, pelo menos, dois motivos recentes de contentamento, vindos das novas gerações. Geraldo Indeque disse que um grupo de jovens criou o primeiro robô guineense (capaz de levantar até 5 kg) e prometem apresentar o primeiro drone de fabrico nacional.

“Não temos tantas escolas assim”

José Carlos Aragão preferiu centrar-se nos últimos 15 anos são-tomenses, até porque teria “muita dificuldade” em obter informações fidedignas dos períodos anteriores. Num país que acaba de sair de “eleições complicadas” e onde está, “neste momento, tudo em mudança”, a carta da política educativa e a própria Lei de Bases (datada de 2003) estão a ser revistas.

O que há de novo, na proposta desta última (ainda em apreciação)? Entre outras coisas, a introdução do ensino das línguas nacionais, que na véspera fora tema da intervenção de Filipe Zau (Angola) e que, segundo Aragão, “faz sentido também em São Tomé e Príncipe”, mas em ligação com a língua portuguesa. “Nós temos três crioulos autóctones. Há um quarto, mas este surgiu com os contratados que vinham de outras colónias [sobretudo de Cabo Verde]. E há situações em que os professores se vêem aflitos para chegar aos alunos. A forma de contornar essa situação tem sido o professor aprender o crioulo local. Nessa altura, a barreira cai e consegue-se um melhor entrosamento. Isto apesar de os números indicarem que em São Tomé a grande massa fala mais português do que os crioulos do país.” Para a introdução dos crioulos, todavia, há um trabalho que precisa de ser feito, porque não existem gramáticas.

Quanto aos resultados do sistema de ensino, também fruto de uma política globalizante, há dados contraditórios. As taxas de abandono, por exemplo, são muito reduzidas; mas em contrapartida as de retenção são muito elevadas. Isto num universo que tem crescido muito na última década. Do ano lectivo de 2006-2007 para o de 2016-2017, os alunos do básico aumentaram 66%, os do secundário 175% e os do superior 261%. Isto em 95 mil são-tomenses em idade escolar. É um problema, embora ele garanta que ninguém fica fora do ensino por causa disso. “É que não temos espaço para tanta gente, não temos tantas escolas assim.”

“Não há ensino adequado do português”

No período destinado a perguntas e respostas, houve uma intervenção que se destacou das restantes, a do padre e pedagogo italiano Luigi Scantamburlo, que desde 1975 trabalha em África e aí tem defendido, e aplicado, o ensino do crioulo como entrada para o português (num dos vários painéis do congresso, intitulado Aspirações vs. realidade na Língua de instrução, ele já apresentara, dia 8, uma comunicação intitulada Ensino-aprendizagem da língua portuguesa no projecto ensino bilingue português-crioulo guineense). Foi, pois, a partir da sua experiência na Guiné-Bissau que Luigi Scantamburlo interpelou a mesa:

“O Geraldo Indeque falou na política educativa e não nomeou o problema das línguas nacionais. Em 1979 foi decidido que havia escolha de quatro línguas nacionais: o crioulo, o fula, o mandinga e o balanta. E foram preparados textos. Em 1986 foi começado o Centro de Formação e Educação, com o crioulo. Depois foi suspenso em 1996. Em 1998 tomou corpo um projecto que vai ainda nas ilhas Bijagós e também encalhou. Porque não se fala disto, quando o ensino bilingue é a única maneira, para mim, que estou na educação desde 1975, para os alunos perceberem os conteúdos do ensino? Porque o português na Guiné-Bissau é uma vergonha, não se aprende, apesar dos Camões, das licenciaturas, disso tudo! Não há um ensino adequado do português. Uma pessoa aprende línguas através da própria língua materna, se há, ou de uma língua que conhece bem. Esta é a didáctica do mundo inteiro.”

Os resultados finais do IV Congresso de Cooperação e Educação, que durante dois dias juntou especialistas de vários países no ISCTE-IUL, em Lisboa, serão divulgados oportunamente.

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