Juíza ganha acção contra Portugal no Tribunal dos Direitos Humanos
Paula Carvalho e Sá foi multada pelo Conselho Superior da Magistratura por ter chamado mentiroso a um colega. Sempre negou tê-lo feito.
O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos deu razão a uma juíza multada pelo Conselho Superior da Magistratura por, alegadamente, ter chamado mentiroso a um colega. Os juízes de Estrasburgo condenaram Portugal por considerarem deficientes os procedimentos que foram desencadeados nos tribunais portugueses contra a magistrada.
O caso remonta a 2011, altura em que foi aberto um processo disciplinar à juíza do Tribunal de Famalicão Paula Carvalho e Sá, que era suspeita de ter chamado mentiroso a um colega responsável pela sua avaliação profissional, durante uma conversa telefónica. Também teria acusado o mesmo inspector judicial de inércia e falta de diligência. O Conselho Superior da Magistratura acabaria por a condenar, no ano seguinte, a uma multa equivalente a 20 dias de salário, por violação do dever de correcção a que os juízes estão obrigados - à qual se vieram a juntar mais multas decorrentes de outros dois processos disciplinares relacionados com a forma como exerceu a sua defesa no processo. A magistrada, que se queixava de estar a ser perseguida e sempre negou ter chamado mentiroso ao colega, foi ainda suspensa do serviço durante 240 dias.
Paula Carvalho e Sá recorreu da condenação para o Supremo Tribunal de Justiça, mas sem sucesso: os conselheiros desta instância recusaram-se a reapreciar os factos na origem da multa.
Em 2016, Portugal foi condenado pela primeira vez neste caso. Voltou agora a sê-lo esta terça-feira, na sequência de um recurso do Estado português, por violação do 6.º artigo da Convenção dos Direitos do Homem, segundo a qual todas as pessoas têm direito a um julgamento justo e equitativo. Os juízes de Estrasburgo não deram, porém, razão à magistrada em todos os aspectos da sua queixa: não deram como provada a falta de independência e imparcialidade da secção de contencioso do Supremo Tribunal de Justiça, que é a instância que reanalisa este tipo de casos. Em causa, para a queixosa, está o facto de os conselheiros que deliberam sobre as penas aplicadas aos juízes pelo Conselho Superior da Magistratura serem nomeados para o Supremo por esse mesmo conselho.
A condenação do Estado português desta terça-feira baseia-se no facto de nem o plenário do Conselho Superior da Magistratura nem a secção de contencioso do Supremo permitirem a audição pública dos arguidos - e também na recusa de reapreciação dos factos por parte dos conselheiros, por via da existência de limitações legais nesse sentido.
Apesar de a lei ainda não o prever, de há escassos meses a esta parte o Conselho Superior da Magistratura decidiu dar aos magistrados que assim o desejem o direito de audiência pública. O que até agora sucedeu num único caso, havendo, porém, já mais pedidos nesse sentido. Através de uma proposta que apresentou nesse sentido ao Ministério da Justiça, o mesmo órgão fez introduzir esta possibilidade no estatuto dos magistrados judiciais que está para discussão no Parlamento.
Na sua declaração de voto, o juiz português do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos Paulo Pinto de Albuquerque refere-se a estes problemas do sistema judicial português como "resquícios do passado pouco consentâneos com os padrões internacionais contemporâneos da independência judicial". Nesta apreciação, em que vai mais longe do que a da maioria dos seus colegas do plenário de Estrasburgo que deliberaram sobre o caso, o magistrado inclui o facto de os poderes da secção de contencioso do Supremo serem limitados e também à composição ad-hoc desta secção.
"Estou certo que o Parlamento português escutará com atenção a mensagem que o Tribunal dos Direitos Humanos lhe está a enviar e lhe responderá da forma adequada", escreve o magistrado. Tanto Paulo Pinto de Albuquerque como outros cinco colegas entendem que a secção de contencioso do Supremo padece de falta de independência e de imparcialidade, razão pela qual Portugal também deveria ter sido condenado neste capítulo. Mas votaram vencidos, porque a maioria dos juízes europeus entendeu o contrário.
A chefe de gabinete do Conselho Superior da Magistratura sublinha que esta decisão do tribunal europeu é mais favorável a Portugal do que a de 2016. Na altura tinha sido questionada a composição deste órgão de disciplina dos juízes, no qual os magistrados não estão, pelo menos teoricamente, em maioria. Mas desta vez os juízes de Estrasburgo acabaram por não se pronunciar sobre a questão - que, de resto, não era central na queixa de Paula Carvalho e Sá. "Caso tivessem posto em causa a composição deste órgão, isso poderia implicar uma revisão constitucional", observa a juíza, acrescentando que nos seus processos disciplinares sempre deparou com maior isenção por parte dos membros do conselho que não eram magistrados do que por parte dos juízes.
Contactado pelo PÚBLICO, o Ministério da Justiça sublinha que o acórdão em causa "apenas é desfavorável a Portugal num dos pontos analisados, a não realização de audiência no Supremo - conjugada com a circunstância de o tribunal considerar que os poderes do Supremo para proceder à reapreciação dos factos são limitados." A tutela faz ainda notar que o tribunal europeu negou os pedidos de reparação pecuniária da juíza.
"Abdiquei de qualquer compensação a título de indemnização por danos morais, tendo declarado que me sentia ressarcida pela simples declaração de violação da Convenção dos Direitos do Homem", explica a queixosa, que irá agora suscitar a revisão dos procedimentos disciplinares a que foi submetida nos tribunais portugueses. Caso lhe seja dada razão, receberá de volta o dinheiro das multas que lhe foram aplicadas e dos dias em que esteve suspensa.