Anjos e demónios
Sobressai a vontade de iluminar o obsceno, mas este fecha-se na sala, classificado pela fotografia, distante, mudo, como se fosse impossível dignificar práticas sexuais das quais a violência nunca está ausente.
Subvertam-se, por instantes, os protocolos da arte contemporânea: Robert Mapplethorpe: Pictures, a discutidíssima exposição do artista americano no Museu de Serralves, inicia-se sobre as t-shirts que, na livraria, reproduzem um dos seus mais conhecidos auto-retratos: de cabelo enrolado pela brilhantina, navalha na mão, pose ameaçadora e assustada diante alguém que não se vê (ou que não existe). Um dos desígnios de Mappplethorpe cumpre-se neste instante de ficção, feito objecto: tornar-se mundialmente famoso, uma celebridade.
É esta imagem (de 1983) que, vertical, apresenta os visitantes à exposição, que anuncia o autor e a personagem, mas Robert Mapplethorpe: Pictures começa discreta, na série de colagens, realizadas no princípio da carreira (anos 70), nas quais se antecipam a exploração do homoerotismo e de certos motivos sexuais. É uma passagem breve, isolada das duas grandes salas nas quais se desdobram séries, conjuntos, constelações de imagens. As dos retratos dos amigos, das celebridades, de interiores, de objectos, de corpos. A exposição vive nesta tensão, a de uma possível hesitação. Mostrar aberta ou veladamente, em primeiro e em segundo plano, sob a orientação segura dos temas ou com a liberdade e o risco de imaginar e criar novos sentidos.
No centro da exposição, há uma personagem que se destaca: a cantora, compositora e poetisa Patti Smith, namorada, amante, amiga de Mapplethorpe. Vê-se, retratada, em duas fotografias dispostas verticalmente, das quais partem, em direcções contrárias (formando o desenho de uma cruz), outras imagens. De um lado, aquelas que assinalam o interesse pela composição geométrica e o corpo (em Lowell Smith, de 1981), pelo género do retrato, pela sexualidade queer; do outro, a referência à prática da fotografia para lá das temáticas ou dos assuntos, representada, por exemplo, em Pictures/Self Portrait (1977), em que surge mais vincada a dimensão conceptual da prática fotográfica.
Destas direcções, não necessariamente opostas, a exposição distende-se, corre pelas paredes, dispersa-se pelas duas grandes salas, dando espaço ao espectador; talvez demasiado espaço. Há um gigantismo que diminui as fotografias, que as dilui numa superfície sobre a qual tendemos a deslizar horizontalmente: de Patti Smith a Richard Gere, de Richard Gere para as composições mais geométricas, destas para os auto-retratos, dos auto-retratos para os retratos dos amigos e artistas famosos. Ou, como acontece frequentemente, de temas para temas. A exposição exibe-se arrumada, linear e distante, desenhada em séries ou fechada em assuntos. Um exemplo: os nus de homens negros aparecem agrupado em cantos (Dennis Speight, Derrick Cross, Phillip Prioleau), quando a dignificação dos seus corpos poderia ter tido um lugar mais central. O mesmo se poderia dizer do prazer e da sexualidade (implícita em várias fotografias) ou dos auto-retratos do próprio Mapplethorpe, em que o desejo (de fotografar e de ser fotografado) e a vulnerabilidade se confundem. Confinadas por temas, ao espaço, mantêm o espectador a uma distância segura, sacralizando o museu e o artista. Por que não – coloque-se a possibilidade — colocar o retrato de Andy Warhol ao lado de um auto-retrato, o de Louise Bourgeois em relação com a de pénis erecto ou flácido? O de casal masculino, vestido de cabedal, a beijar-se, perto dessa citação de René Magritte que é White Gaze? É pertinente perguntar se a fotografia de Mapplethorpe, em termos formais e de conteúdo, permitiria explorações como estas ou outras, se tal unificação seria realizável, no espaço de um museu, atendendo à natureza distinta das imagens (em particular, as sexualmente mais explícitas), nomeadamente por causa da relação indexical que estabelecem com a realidade (para o espectador comum, aquele que faz blockbusters, as fotografias de Mapplethope continuam a ser fotografias, não pinturas, desenhos ou esculturas). A exposição parece alheia a estas questões, e só com muito esforço, fora dela (na sua extensão e ampliação, de características diferentes, que é o espaço público), é possível desenvolver ou pensar outras: o que pode ser ou pretende ser um museu como Serralves, que sentido tem a liberdade no seu espaço, onde começam e acabam a realidade da arte e a realidade que existe fora das suas fronteiras?
A crítica ou autocrítica foi outro sentido que a exposição podia ter tomado, frisando os paradoxos da obra de Mapplethorpe. Se há fotografias que humanizam, pela sexualidade, pelo olhar, pela pose, pelos gestos (Larry and Bob Kissing, Dennis Speight), outras transformam os corpos em abstracções, formas puras, seres angelicais, produtos de uma composição soberana (o conjunto Thomas ou Ken Moody and Robert Sherman). Esta tensão culmina nas séries das orquídeas que, expostas numa sala pintada de azul, se assemelham a objectos, formas geométricas destituídas de vida.
Nas duas salas em que os menores de 18 anos só podem entrar acompanhados por adultos (e alguns ficaram à porta da exposição, sob a atenção dos telemóveis), estão, respectivamente, as fotografias sexualmente mais explícitas e as que retratam práticas de cariz sadomasoquista em que Robert Mapplethorpe se envolvia frequentemente. São momentos desiguais na exposição e sobre os quais é sempre pobre um juízo encerrado no elogio da arte pela arte (a arte é sempre mais do que arte). Na primeira sala, as polaroids de práticas sexuais, provenientes da intimidade de Mappethorpe e Walgaft, equivalem, com subtileza insuficiente, a dor ao prazer, enquanto os nus (erotizados) enfatizam o desejo (de ser fotografado e de fotografar). Há uma redundância em algumas destas imagens que se repete na sala final. Sobressai uma vontade de iluminar o obsceno, mas este fecha-se na sala, classificado pela fotografia, distante, grosseiro, mudo, como se fosse impossível dignificar práticas sexuais das quais a violência nunca está totalmente ausente.
Mais interessante, mais provocatório permanece um trabalho como Bill, New York (1976) que traz o espectador (qualquer que seja o seu género ou sexualidade) para o seu centro, colocando-o e espelhando-o entre duas fotografias de falos erectos. Nesse momento, a exposição liberta-se e, sob o olhar de Mapplethorpe (ora mefistofélico, ora receoso, ora risonho), rompem, no museu, o desejo, o medo, a inquietação, o voyeurismo e o humor.