Somos todos fascistas?
Choremos pelo Brasil sem perder a razão. E olhemos para o mundo da mesma maneira.
1. No meio da troca violenta de argumentos sobre o Brasil, começo a interrogar-me se não serei, também eu, uma perigosa fascista. A confusão dos conceitos, as rotulagens primárias e a intolerância para os que pensam mesmo que apenas ligeiramente diferente tomou conta do debate nacional. Não apelar ao voto em Haddad tornou-se quase um crime.
Fernando Henrique Cardoso foi acusado de o praticar, apenas porque resolveu não apelar ao voto no candidato do PT. Ele que combateu a ditadura, viveu no exílio e, em primeiro lugar, foi o principal obreiro da consolidação democrática do Brasil. Ele que, apesar disso, foi eleito pelo PT como o seu principal inimigo. Ele que, sendo toda a vida de centro-esquerda (por alguma razão o partido que ajudou a fundar se chama social-democrata no sentido europeu do termo), passou a ser classificado em Portugal (por puro mimetismo) de direita. Ele que ainda hoje revela uma enorme lucidez quando analisa a situação internacional. Ele que percebeu muito melhor do que nós, do lado de cá, a revolta contra o PT que mobilizou tanta gente.
E também há, como bem sabemos, uma parte do PT que ainda comunga de uma velha tradição da esquerda latino-americana (que não inclui Lula), para a qual a democracia praticada por um partido de esquerda tem “liberdades” que outros partidos não têm, pela simples razão de que governa em nome do povo. Muita gente lembrou a decisão de Álvaro Cunhal, na segunda volta das eleições presidenciais de 1986, quando mandou votar em Mário Soares mesmo que de olhos fechados. Ninguém acrescentou que o Partido Comunista elegeu o PS como o seu “inimigo principal” (não a direita) de 1974 a 2015.
2. Há hoje, no mundo, um fenómeno muito preocupante que se poderia designar, como vários autores têm referido, por “recessão democrática”. Ou, como outros preferem, uma “contra-vaga”, depois da “terceira vaga da democracia” que nasceu numa bela manhã de Abril em Portugal, varreu as ditaduras do Sul da Europa, atravessou o Atlântico, derrubando ditaduras mais ou menos sanguinárias, de Videla na Argentina ao Brasil dos generais, passando pelo Chile de Pinochet e por uma série triste de regimes ditatoriais que a Guerra Fria tinha ajudado a perpetuar.
A vaga voltou a atravessar o Atlântico, inundando a metade Leste da Europa, no continente que foi a linha da frente do confronto da Guerra Fria, derrubando o Muro e fazendo implodir uma das duas superpotências mundiais. Houve ainda as revoluções “coloridas”, da “cor de laranja” na Ucrânia, que durou pouco, à revolução “verde” do Líbano que durou ainda menos e, finalmente, a última vaga que parecia ter chegado à região do globo onde a democracia esteve persistentemente ausente: o grande Médio Oriente.
A Primavera Árabe fracassou. O 11 de Setembro pôs simbolicamente fim à euforia democrática permitida pela vitória das democracias sobre o comunismo. A queda das Torres Gémeas abalou a confiança internacional no modelo económico ocidental, abrindo espaço a soluções “concorrentes” igualmente capazes de abrir as portas ao desenvolvimento. O “consenso de Washington” deslocou-se para Oriente, criando qualquer coisa semelhante a um “consenso de Pequim”, que nunca teve pés para andar, graças à dificuldade da liderança chinesa em ver o mundo como algo mais do que o vasto terreno para o seu desenvolvimento económico e, agora, para a transformação desse poder em influência política em seu proveito, não em proveito de qualquer ideia geral para a humanidade.
3. A contra-vaga encontrou na eleição inesperada de Donald Trump um importante impulso, não fosse ele o Presidente do país mais poderoso do mundo e da sua democracia mais sólida. Está a transformar a Europa num pacífico campo de batalha pela alma da democracia liberal e da integração europeia, empurrou o Reino Unido para o alto-mar por razões difíceis de entender (mesmo que a sua democracia esteja tão sólida como sempre), tirando à Europa um dos seus pilares fundamentais. Atingiu em cheio, de novo, a América Latina, fazendo abanar o gigante do subcontinente, ao eleger uma espécie de “Trump dos trópicos” e criando o risco real de abanar os alicerces de uma democracia que chegou a parecer pujante, deste o seu restabelecimento em 1988.
Bolsonaro ganhou legitimamente as eleições. A forma como decorreu o acto eleitoral foi tão ordeira e tão pacífica como sempre (não vale a pena andar com uma lupa à procura de incidentes, num acto eleitoral que mobilizou 140 milhões de pessoas, porque nada se passou de anormal). A sua retórica de campanha chega e basta para o tornar execrável aos olhos de quem se considere um ser humano normal. Defender a tortura, tratar as mulheres como seres inferiores, execrar os homossexuais, defender a violência pura e simples contra a violência, elogiar a ditadura imposta em 1964, são razões suficientes para uma enorme preocupação (e uma grande tristeza) sobre o que pode acontecer no Brasil.
Mas há na vida dos países, incluindo nas democracias, momentos em que a humanidade é vencida pelo medo, pela raiva, pelo desespero ou por uma real ou aparente humilhação. Em que a simples palavra “mudança” ganha todo o espaço político e cega qualquer tentativa de racionalidade.
Não há no Brasil 57 milhões de fascistas ou, muito menos, de gente desumana. Há no Brasil milhões de pessoas que, depois de um momento de verdadeira esperança, se viram regressadas a um país onde já não querem viver: violento, discriminatório, empobrecido, corrupto. Depois de 13 anos de PT no poder. É este “pequeno pormenor” que, passada a emoção do voto e a tristeza do resultado, não é legítimo ignorar. Como não era antes, para quem tem como obrigação tentar compreender a realidade.
Condenar é a coisa mais fácil do mundo. Explicar é a mais exigente. Lutar é o que vem a seguir. Misturar tudo o que se manifesta nesta contra-vaga democrática é o pior dos enganos. Ver no Facebook gente de esquerda manifestar o seu ódio pelos imigrantes brasileiros que se atreveram a votar em Bolsonaro (e foram uma maioria), mandando-os de regresso ao Brasil, devo confessar que me causa arrepios. Mesmo que, mais uma vez, não possamos nem devamos generalizar.
4. Faço parte daqueles maus cidadãos que puseram a cruz no símbolo do PS nas eleições legislativas de 2009. Não lutei suficientemente pela democracia e pela liberdade como alguns dos meus colegas mais corajosos e mais clarividentes. Num país a sério, Sócrates deveria ter tido uma expressão eleitoral reduzida a um dígito. Como Bolsonaro.
O problema é que, cá como no Brasil, as coisas nunca são a preto e branco. Sócrates terá feito coisas inadmissíveis e outras bem feitas. O cômputo final pode até cair para o lado das primeiras. Mas justiceiros impolutos são algo que as democracias dispensam. Donos da verdade também. E há uma outra versão sobre os clarividentes que denunciaram Sócrates quando nós, pecadores, púnhamos a cruzinha no PS, que é a seguinte: depois de Sócrates, o seu combate contra as “tentativas” do PS de minar a democracia continua. Não haverá aqui coincidência a mais?
5. Choremos pelo Brasil sem perder a razão. Olhemos para o mundo da mesma maneira. Nestes tempos de profunda inquietação, deparamo-nos demasiadas vezes com a dificuldade em utilizar os conceitos políticos que conhecemos. Populismo, nacionalismo, fascismo, extremismo, extrema-direita, direita radical, direita liberal, direita conservadora, esquerda moderada, esquerda radical, comunismo.
Todos os dias me debato com a escolha das palavras. Mesmo assim há coisas que sabemos. Como escreveu o colunista do Financial Times Janan Ganesh, “O problema é um excesso de certeza intelectual. A base da democracia – da civilização – é a dúvida”. O seu artigo de opinião chama-se “A política dos absolutos está a alimentar a violência ideológica”. Ou, como disse agora o maravilhoso Caetano, “ele [Bolsonaro] trouxe complexidade”.