Pedro Caldeira Cabral insiste no “acto cultural como acto de resistência”

O Concerto Atlântico, dirigido por Pedro Caldeira Cabral, leva o Cancioneiro Musical Manuelino ao ciclo Música em São Roque, em Lisboa. Este domingo, às 16h30, no Convento de São Pedro de Alcântara.

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Concerto Atlântico, na sua actual formação. Pedro Caldeira Cabral é o terceiro a contar da esquerda, em cima JOAQUIM SILVA

Um quarto de século após a edição do disco Meus Olhos Vão Pelo Mar, Pedro Caldeira Cabral e o grupo Concerto Atlântico apresentam-se na 30.ª Temporada do ciclo Música em São Roque com um repertório assente no Cancioneiro Musical Manuelino, utilizando instrumentos históricos, cópias da época. O concerto está marcado para este domingo, 4 de Novembro, no Convento de São Pedro de Alcântara, em Lisboa, às 16h30.

“Uma das minhas preocupações, desde há bastantes anos”, diz ao PÚBLICO o guitarrista e investigador Pedro Caldeira Cabral, “é afirmar o acto cultural como acto de resistência face àquilo que existe no actual contexto de massificação e banalização da actividade musical e da desvalorização da cultura em si. É uma espécie de missão que tenho.” O Cancioneiro Musical Manuelino, onde se baseia o espectáculo, assume aqui particular relevância: “É mais importante do que tem sido muitas vezes falado, não só pela actualidade dos conteúdos literários, mas também porque estamos a falar de um período em que o próprio rei intervém directamente no patrocínio e acompanhamento das actividades musicais, teatrais, das artes plásticas, etc.” Tinha, diz Pedro Caldeira Cabral, particular apreço pela actividade musical e poética, mesmo quando esta era crítica. “Um dos poemas que utilizo no programa, Co estes ventos d’agora, de D. João de Meneses, é de enorme actualidade”: “Perigoso é navegar/ que se mudam cada hora/ e quem vai de foz em hora/ nunca mais pode tornar.// O navio pend’ à banda/ a razão não é ouvida/ a vontade tudo manda/ e quem há-d’andar desanda/ quem tem alma não tem vida.”

Recordar e renovar ciclicamente

Pedro Caldeira Cabral diz que desde o desaparecimento de Vasco Graça Moura (1942-2014), que foi quem encomendou o disco Meus Olhos Vão Pelo Mar, como presidente da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses (cargo que ocupou de 1988 a 1995), tem havido “uma desatenção enorme sobre este período, que foi um período de ouro do nosso saber e das nossas artes. Fala-se agora muito da questão dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa como um factor negativo. Ora eu penso que é exactamente o contrário, e isso decorre da grande ignorância que as pessoas têm dos textos antigos. Hoje ninguém lê o Cancioneiro Geral [de Garcia de Resende], Sá de Miranda, a lírica de Camões, se leram por obrigação Os Lusíadas foi pequenas partes. O próprio Gil Vicente, que tem uma importância enorme e que cria um teatro musical organizado de uma forma que antecipa completamente aquilo que viria a ser o drama per musica – no caso dele era mais farsa e mais comédia, embora também haja tragédia –, também é muito pouco lido.”

Tudo isto, diz Pedro, precisa de ser recordado e renovado ciclicamente. E é isso que ele diz que tem procurado fazer com o Concerto Atlântico: “Ao longo destes 25 anos fui produzindo um conjunto de programas muito variados, de música secular polifónica, de música religiosa, inclusive dedicados a determinados temas como os cantos báquicos. E isso é muito raro em Portugal, esta longevidade. A maior parte dos grupos durou dois ou três anos, houve um caso de sobrevivência bastante longa, a dos Segréis de Lisboa, cerca de 30 anos, mas até eles acabaram por soçobrar.” A presença, na actual formação do Concerto Atlântico, de Nina Repas Gonçalves ao lado da mãe, Maria Repas Gonçalves, que já integrava a formação anterior, é valorizada deste modo por Caldeira Cabral: “É muito interessante porque é a nova geração que se interessa pela música antiga e a pratica a um nível muito alto. Há muito poucos grupos de música antiga, sobretudo organizados com uma actividade regular, mas há agora, individualmente, pessoas muitíssimo mais bem preparadas do que havia na altura em que eu comecei a fazer estes grupos.”

Outra viagem pela Música de Quinhentos

Tocado com instrumentos que replicam os da época manuelina, o concerto contará com mais uma “ressurreição”: “Vamos introduzir um instrumento que estava completamente extinto, a viola descante ou oitavilha, e que eu construí como réplica de um instrumento construído em Lisboa, em 1581, por Belchior Dias, mas obedecendo a padrões anteriores. Tem a dimensão do cavaquinho moderno mas uma arquitectura muito complexa: o fundo é canelado e é constituído por aduelas caneladas dobradas longitudinalmente.”

Nas assinaturas das canções do alinhamento proposto para o concerto podem ler-se os nomes de Gil Vicente (1457-1534), Francisco de La Torre (1457-1525), João Roiz de Castelo Branco (séc. XV), Bernardim Ribeiro (1482-1552), Luis Milán (1550-1561), D. Heliodoro de Paiva (1502-1552), Pedro de Escobar (1465-1535), Alonso Mudarra (1520-1580) ou D. João de Meneses (1487-1579). “Eu quis confinar o período da produção musical ao período do reinado de D. Manuel I, o mais aproximado possível”, diz Pedro. O tema da viagem, que está de alguma forma presente neste espectáculo, tenciona ele desenvolvê-lo num outro concerto, de que já tem programa esboçado. “Chama-se A Viagem na Música Portuguesa de Quinhentos e inclui mais alguns textos, muito interessantes, sobre a maneira como aquilo se reflecte. No disco Meus Olhos Vão Pelo Mar, de 1993, a ideia era já um bocadinho essa: falar na música que os portugueses levaram nas suas viagens.” O ano de 2019, com a celebração dos 500 anos do início da viagem de circum-navegação de Fernão de Magalhães, em 1519, pode ser propício.

Compõem o Concerto Atlântico, e estarão no concerto deste domingo, Pedro Caldeira Cabral (direcção, viola de arco, flautas e tamboril), Maria Repas Gonçalves (soprano, tambor e pandeireta), Susana Moody (contralto e viola de arco), Nina Repas Gonçalves (contralto e viola de arco), Joaquim António Silva (viola de arco, alaúde e viola de mão), Duncan Fox (viola contrabaixo e percussão) e Helder Rodrigues (sacabuchas).

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