Um naufrágio ou dois? No Bugio há uma “batalha naval” debaixo de água
Canhões de ferro e de bronze, fragmentos de porcelana chinesa, madeiras, grãos de pimenta, âncoras, amarrações e uma Virgem em marfim. Pertencerão todos estes materiais ao mesmo navio? Os arqueólogos dividem-se na avaliação de um naufrágio a que o Estado chegou quase com um ano de atraso.
Uma nau com 500 ou 600 pessoas a bordo, entre tripulantes e passageiros, regressa a Lisboa depois de um ano e meio fora, trazendo os porões cheios de mercadorias do Oriente, eventualmente marfins e madeiras exóticas, porcelanas e ourivesaria, sedas e outros tecidos preciosos, couros e muitas especiarias, sobretudo canela, gengibre, açafrão e pimenta. Cumprida a famosa Rota do Cabo, ligando a Europa à Ásia, volta a casa, provavelmente com o casco fragilizado e boa parte dos seus marinheiros exausta, doente. À entrada da barra do Tejo, muito perto da Torre do Bugio, numa zona de bancos de areia conhecida como Cachopos, enfrenta ventos e correntes adversos e naufraga. Com a cidade à vista, há quem se salve e parte da carga valiosa é resgatada.
Terão as coisas acontecido mesmo assim? Será esta embarcação a S. Francisco Xavier, que ficou sepultada nas areias do Cachopo sul em 1625? E o que podemos nós – os portugueses em geral, os arqueólogos e outros académicos, os que mergulham no Tejo e até o próprio Estado – aprender com este achado e a polémica que em seguida se gerou nas redes sociais e nas páginas dos jornais?
Quase 400 anos depois, a 3 de Setembro deste ano, os destroços de um navio que terá feito a Carreira das Índias são identificados junto à Torre do Bugio. Lá em baixo, a cerca de dez metros de profundidade, os mergulhadores encontram fragmentos da quilha do navio e outras madeiras, peças de artilharia em bronze com a esfera armilar e o escudo português, pedaços de pratos em porcelana chinesa, cauris (pequenas conchas que eram trazidas da Índia e usadas como moeda de troca na costa africana) e até grãos de pimenta.
Augusto Salgado, capitão de mar e guerra da Armada e historiador, foi o primeiro naquele dia a dar com os canhões em bronze, seguido de José Bettencourt, arqueólogo do Centro de Humanidades (Cham), unidade de investigação da Universidade Nova de Lisboa, e de Jorge Martins, fotógrafo da câmara de Cascais. “Foram os pedreiros [nome dado àqueles canhões de construção tipicamente portuguesa, com quatro argolas] que me disseram que estávamos num naufrágio que não era ainda conhecido. Quando vi a esfera armilar e as armas, muito provavelmente de D. Sebastião [1554-1578], dei um grito debaixo de água. E quando vim à superfície para fixar a coordenada do núcleo que acabávamos de encontrar e vi o António [Fialho, arqueólogo subaquático da autarquia], voltei a gritar. A pimenta, a porcelana, tudo apontava para um navio da Carreira das Índias. Ainda por cima o casco parecia muito mais bem conservado do que o da Nossa Senhora dos Mártires [nau naufragada em 1606 perto do Forte de São Julião da Barra, que foi localizada em 1994 e escavada entre 1996 e 2001]. Aquilo era fantástico, um momento National Geographic”, diz Salgado ao PÚBLICO, na tarde de 25 de Outubro, dia em que “o mar está azeite” (sem ondulação) e este professor da Escola Naval, autor de livros como Os navios de Portugal na Grande Armada (Prefácio, 2004), volta a mergulhar junto ao Forte de São Lourenço da Cabeça Seca (Bugio) para monitorizar os efeito do furacão Leslie naquele sítio arqueológico subaquático, que tem agora muito menos materiais visíveis do que naqueles primeiros dias de Setembro.
“Agora está tudo muito mais coberto de areia, o que é bom porque protege o navio”, explica Jorge Freire, responsável, com António Fialho, pelo Projecto de Carta Arqueológica Subaquática de Cascais (ProCASC), que desde 2005 tem vindo a trabalhar no mapeamento das embarcações que se afundaram nas águas do concelho, em cuja costa há mais de 200 naufrágios documentados, contando com a colaboração de várias entidades, entre elas a Marinha e o Cham. “Agora o que o ProCASC vai tentar fazer é monitorizar o sítio depois de qualquer episódio de grande agitação marítima e, no Verão, voltaremos a estudá-lo de forma sistemática com os parceiros. O que sabemos é ainda muito pouco, mas o potencial científico é muito grande.”
Foi este arqueólogo subaquático que na passada terça-feira fez chegar à Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), o órgão do Ministério da Cultura que tutela a arqueologia, o relatório preliminar dos trabalhos já realizados na nau pelo ProCASC e pelos especialistas da Escola Naval e do centro de investigação da Nova, equipa que depois dos mergulhos no Tejo em Setembro e Outubro últimos vai passar pelo menos parte do Inverno imersa nos arquivos históricos para acrescentar o máximo de informação possível ao naufrágio que para já tem apenas a designação oficial de Bugio 2. E 2 porque há já um Bugio 1, uma embarcação descoberta sensivelmente na mesma zona a 18 Outubro de 2017 por dois mariscadores de Setúbal, Pedro Patacas e Sandro Pinto, os mesmos que nesse dia localizaram também outro navio naufragado (inventariado como Trafaria 4), que deverá ser de uma época posterior, com uma carga que gera curiosidade – 500 barris cujo conteúdo não se sabe ainda qual é.
A polémica
É nos Bugios 1 e 2 que nos concentramos para navegar pela mais recente polémica da arqueologia subaquática portuguesa. A equipa associada ao ProCASC, que apresentou publicamente os resultados da investigação conduzida até aqui no Bugio 2 a 24 de Setembro, não tem dúvidas de que o naufrágio que identificou a 3 desse mês nada tem a ver com o declarado por Pedro Patacas e Sandro Pinto em Outubro do ano passado. Ora, os mariscadores de Setúbal – que, como manda a lei, fizeram 48 horas depois da descoberta uma comunicação de achado fortuito de património cultural à DGPC com o apoio de um outro arqueólogo subaquático, Alexandre Monteiro, investigador do Instituto de Arqueologia e Paleociências (Universidade Nova de Lisboa) – garantem que o navio que o ProCASC diz ter descoberto é o mesmo que comunicaram em 2017. Monteiro concorda com eles: “Quando se mergulhou em Outubro do ano passado o sítio estava muito mais tapado [com areia] do que em inícios de Setembro e meados de Outubro deste ano. O ProCASC mergulhou quando estava mais a descoberto e, naturalmente, encontrou muito mais coisas. Mas aposto a minha cabeça que não há aqui dois naufrágios – há só um.”
Nesse mergulho de Outubro de 2017, o que a dupla Patacas/Pinto, que trabalha no Tejo há quase uma década e chega a mergulhar 300 dias por ano, trouxe à superfície foram uma aduela em madeira e uns pratos de estanho que apontam para um naufrágio do séculos XVII/XVIII, altura em que o seu uso se generalizou. Debaixo de água identificou madeiras, canhões e âncoras em ferro.
“Quando vimos as imagens [do navio identificado pela equipa de Cascais] na televisão e na Internet soubemos logo que era o nosso barco. E nem queríamos acreditar que aquilo estava a acontecer. Eles foram connosco ao local no ano passado”, diz Patacas, referindo-se ao mergulho que Alexandre Monteiro organizou no final de Outubro do ano passado e em que Jorge Freire e Augusto Salgado acompanharam os mariscadores aos vestígios que tinham encontrado junto ao Bugio.
“No Verão, com o vento Norte dominante e mais corrente, dá-se um desassoreamento, o que está lá em baixo fica mais destapado, e por isso eles viram mais do que nós”, acrescenta Pinto.
O argumento do “desassoreamento” que os achadores do Bugio 1 usam para defender que se trata apenas de um naufrágio e não de dois é o mesmo a que a equipa de Jorge Freire, António Fialho, José Bettencourt e Augusto Salgado recorre para defender precisamente o contrário.
“Se as condições lá em baixo no ano passado fossem as mesmas que se encontraram a 3 de Setembro deste ano e que deixaram à vista nove peças de artilharia em bronze, fragmentos de porcelana chinesa, amarrações e até pimenta, muito provavelmente [Sandro Pinto e Pedro Patacas] tinham dado com as duas embarcações. Não deram”, garante Freire, que chegou a assinar com Alexandre Monteiro, os mariscadores e outros especialistas um artigo sobre o Bugio 1 (na altura chamavam-lhe Tejo A) na revista de arqueologia Al-Madan. “O facto de terem dado com materiais que apontam para um navio de cronologia posterior não diminui em nada a sua descoberta, mas também não faz com que possam dizer que ali está só uma embarcação. Não está, estão duas. E a que nós identificámos deverá ser anterior, de finais do século XVI, inícios do século XVII. Eu acredito que a investigação mais à frente vai deixar isto claro.”
José Bettencourt, arqueólogo subaquático com larga experiência, é da mesma opinião. “São dois contextos completamente diferentes que distam um do outro cerca de 100 metros. Dito assim parece pouco, mas lá em baixo, com as mudanças das areias, das correntes, das condições de visibilidade é quanto basta para que quem vê um não veja o outro. De qualquer forma, só com a continuação dos trabalhos vamos ter a certeza de que são dois naufrágios distintos. Eu tenho muito poucas dúvidas de que não sejam e nós já recolhemos muita informação. No Bugio 1 ainda ninguém trabalhou a fundo.”
A descoberta é só o início
Foi a Bettencourt que coube fazer o mapeamento fotogramétrico – a cobertura fotográfica sistemática em sobreposição dos vestígios, fotografias essas que depois de processadas permitem obter nuvens com milhares ou até mesmo milhões de pontos, fundamentais para a produção de ortofotografias georreferenciadas ou modelos digitais do terreno – desta embarcação que os arqueólogos acreditam pertencer à Carreira das Índias.
“Em ciência arqueológica a descoberta é só o início do processo. No Bugio 2 não há nenhum cenário à Indiana Jones. O que há e vai continuar a haver é ciência e gestão do património subaquático. E isso precisa de tempo.”
Os materiais que vierem a aparecer num e noutro lado serão as peças “decisivas” para determinar a cronologia ou a diferença de cronologias. “Temos de escavar os dois e observar as características construtivas de um e de outro. No Bugio 1 a estrutura [da embarcação] ainda não foi devidamente avaliada”, diz Freire. “Mas aparentemente os cascos são distintos. Se o tipo de construção [no Bugio 1 e no Bugio 2] for diferente, estamos perante dois navios. É por isso que o projecto de investigação ali só faz sentido se forem estudados integradamente”, acrescenta Bettencourt.
Este investigador do Cham não descarta a possibilidade, sequer, de se tratar de dois navios sobrepostos ou parcialmente sobrepostos. “Ainda não conhecemos bem a dinâmica do rio naquela zona. Não sabemos ainda se se sobrepõem, ou se os contextos de dispersão se sobrepõem. Mas temos de considerar essa hipótese.”
Alexandre Monteiro, o arqueólogo que ajudou os mariscadores a comunicarem o achado de 2017 à DGPC, aposta que o Bugio 1 e o Bugio 2 são a mesma embarcação, mas admite que há sempre a “hipótese remota” de serem duas e haver uma sobreposição.
“O que temos no Bugio é um conjunto coerente de destroços, como diz a lei. Não me compete a mim nem aos achadores provar que há ali apenas um navio, compete a quem diz ter encontrado o segundo um ano depois demonstrar que são dois”, sublinha Monteiro.
23 naufrágios no Bugio
O local onde se encontram os vestígios fica a cerca de 15 minutos de viagem do porto de recreio de Oeiras. Os mergulhos têm de ser cuidadosamente planeados por causa das movimentações das águas. Cada um dura cerca de 35 a 40 minutos e só pode ser feito naquilo a que se chama o “estofo da maré”, por causa da corrente. “O estofo é o período curto entre marés, em que a água está parada”, explica o historiador da Marinha, Augusto Salgado, procurando fugir ao vocabulário técnico. “Se não for assim, arriscamo-nos a ser arrastados pela corrente.”
Cada mergulhador leva às costas vários quilos de material, dependendo do seu próprio peso. Freire leva seis, Salgado dez. Carlos Martins, um mergulhador experiente que é colaborador do ProCASC, perfere não dizer. “Isso o peso de cada um é com cada um”, brinca.
Martins trabalhou na recuperação de muitos dos artefactos da Nossa Senhora dos Mártires que depois seriam expostos durante a Expo-98. Augusto Salgado e António Fialho garantem que tem uma intuição rara e que conhece as águas do Tejo como muito poucos. Lá em baixo, nas últimas semanas de Outubro, limitaram-se a avaliar o estado dos vestígios e chegaram à mesma conclusão – com a areia a cobrir grande parte do casco, o navio está agora mais preparado para o Inverno.
“Em arqueologia temos de ser o menos intrusivos possível e a subaquática não é excepção”, explica Fialho. “Tudo o que pode ficar no sítio sem correr o risco de se perder deve lá ficar, como manda a Convenção [da UNESCO para a Protecção do Património Cultural Subaquático, de 2001]. O objectivo é recolher o máximo de informação possível e proteger, tendo em conta que qualquer escavação é, em parte, a destruição do sítio.”
É orientada por estes e outros princípios-base que a equipa do ProCASC, com todos os seus parceiros científicos, quer ver a funcionar no Bugio a partir do próximo Verão um “campo-escola” que contribua para a formação de arqueólogos subaquáticos.
A zona é particularmente rica em naufrágios e, por isso, permitirá aos alunos trabalharem com navios de diferentes tipologias, beneficiando da experiência de todos os envolvidos no projecto de Cascais, que no ano passado foi distinguido com o selo de Boas Práticas da UNESCO, cuja convenção para o património subaquático Portugal foi dos primeiros países a ratificar (em 2006) mas que para muitos, dada a crónica falta de meios para a arqueologia, não está em condições de cumprir integralmente.
“A proximidade entre as duas realidades [Bugio 1 e 2] não é surpreendente, pois há registo de, pelo menos, 23 naufrágios na zona dos Cachopos, entre 1451 e 1936”, pode ler-se no relatório que o ProCASC entregou à DGPC dando conta dos trabalhos deste ano e da relação com os vestígios identificados no ano passado pelos mariscadores Pedro Patacas e Sandro Pinto.
Desses 23, cinco foram já localizados: para além do Bugio 1 (século XVII-XVIII) e do Bugio 2 (século XVI/XVII), há ainda o Rhona, que vinha das Minas de São Domingos transportando minério e foi ao fundo em 1923; o batelão Franz, naufragado em 1936 levando consigo o Patrão Lopes, um dos navios alemães apreendido durante a Pimeira Guerra Mundial, entretanto renomeado e transformado em barco de salvamento, que partira em seu auxílio e que, como ele, encalhara nos Cachopos.
A barra do porto de Lisboa, lembra o artigo da Al-Madan já citado, é um dos locais mais perigosos da costa portuguesa, “pelas condições exigentes de marinharia que exige a sua franquia, especialmente com embarcações de alto bordo e à vela”. A estas é preciso acrescentar ainda as fortes correntes de maré, o vento e os bancos de areia móveis.
O estuário do Tejo, e em particular o Bugio, é “como um ponto negro na estrada”, compara Bettencourt, “um espaço em que se concentram vários acidentes”. Um “ponto negro” que precisa de ser protegido e onde alunos de várias universidades poderão vir a aprender.
Uma Virgem em marfim
A protecção de ambos os sítios, lembra Jorge Freire, passa por impedir que ali se realizem mergulhos não autorizados.
Desde 4 de Outubro, informou ao PÚBLICO a DGPC, que a zona está interditada. De acordo com o edital n.º 56/2018, da Capitania do Porto de Lisboa, “é proibido mergulhar, fundear ou exercer qualquer actividade de pesca em área adjacente ao Farol do Bugio”, excepto as autorizadas pela direcção-geral.
Pedro Patacas e Sandro Pinto voltaram a mergulhar no Bugio depois de o ProCASC apresentar publicamente a descoberta do Bugio 2 a 24 de Setembro. Apesar de o terem feito ainda nesse mês, Freire e a restante equipa classificam este mergulho como “ilegal” e notam que ele é ainda mais “grave” porque os dois mariscadores trouxeram à superfície uma série de objectos – uma pequena escultura da Virgem em marfim, um almofariz em pedra e uma bala de canhão –, entregues à DGPC a 10 de Outubro, sem que fosse feito o devido registo do local e condições em que se encontravam.
“Ninguém está a acusar os achadores do Bugio 1 de ficarem com materiais. O que estamos a dizer é que esses materiais perderam 90% do seu valor informativo porque foram arrancados do seu contexto arqueológico”, diz o responsável do ProCASC.
Pedro Patacas e Sandro Pinto garantem que só mergulharam para poder confirmar as suas suspeitas de que o anunciado Bugio 2 era o navio que tinham identificado em 2017. E que o que recolheram corria o risco de se perder, algo que Bettencourt contesta no que toca ao almofariz de pedra, argumentando que o tem fotografado e que pode garantir que, do sítio onde estava, não iria a lado nenhum.
“Tínhamos de confirmar e só mergulhando podíamos fazer isso porque eles tinham as coordenadas do Bugio 1, tinham ido lá connosco, mas nós não tínhamos as do 2”, diz Patacas. Pinto acrescenta: “O que eles descobriram não é um navio novo, é o ‘nosso’ navio desassoreado. Nós nunca ficámos com absolutamente nada do que trouxemos e não recebemos um cêntimo por achado nenhum. Isto revolta-me. Se quiséssemos ficar com as peças não as íamos levar ao Alexandre [Monteiro].”
Tal como o tinham feito com os pratos de estanho que recuperaram em 2017, os dois mariscadores entregaram a imagem em marfim e o almofariz que trouxeram do mergulho que fizeram no Bugio já em Outubro deste ano a Alexandre Monteiro, que os guardou na Faculdade de Ciências Sociais da Nova até os confiar à DGPC. É por ter recebido os artefactos resgatados ao mar há menos de um mês que Monteiro está agora envolvido num “processo de inquérito” promovido pela sua universidade. “Estou a aguardar. Não sei ainda do que sou acusado. Não fiz nada de que tenha de me envergonhar”, diz o arqueólogo.
Quando a DGPC não cumpre a lei
Para Monteiro, “o pecado original” que levou a toda a polémica em torno do naufrágio ou naufrágios no Bugio é da DGPC. “Foi a direcção-geral que não cumpriu a lei, é a direcção-geral que insiste em desrespeitar os não-profissionais que andam no mar e comunicam achados de boa-fé”, diz.
De acordo com o Decreto-Lei n.º 164/97 que regula os achados fortuitos, a DGPC tinha 60 dias para verificar a existência do Bugio 1 de acordo com o declarado por Patacas e Pinto em Outubro do ano passado. Não o fez. Esteve pela primeira vez no local um ano depois, num mergulho em que os seus dois técnicos não conseguiram visitar o Bugio 2, como estava previsto, por falta de condições de visibilidade. O relatório dessa descida está ainda “em fase de elaboração”, fez saber ao PÚBLICO por email a direcção-geral do património.
De acordo com o mesmo Decreto-Lei de 1997, os dois mariscadores têm direito a uma recompensa monetária pelo achado. O seu valor varia consoante a “relevância” que lhe for atribuída, respeitando a tabela que consta de uma portaria do ano seguinte e que diz que essa recompensa pode ir até aos 25 mil euros.
Pelo menos nos últimos dez anos, não existem referências à atribuição de recompensas no âmbito do Decreto-Lei, diz a tutela.
“Já fomos à DGPC mas ainda ninguém nos falou em recompensa nenhuma. Nós temos um advogado e vamos exigir os nossos direitos, que estão na lei, mas também queremos reposta a verdade. O que ali está fomos nós que encontrámos”, conclui Pedro Patacas.
A incapacidade da DGPC de verificar achados fortuitos, reconhece Monteiro, deve-se à crónica falta de meios técnicos e humanos que tem vindo a ser denunciada nos últimos anos. “Não tem barcos, não tem arqueólogos com competência para dar andamento a estes processos… O que faz é dar um muito mau exemplo aos achadores sérios, conscientes. E criar situações como esta, que são de uma negligência criminosa. Se a DGPC tivesse ido no tempo devido ao Bugio, se calhar este equívoco não acontecia.”
Patacas e Pinto foram também os achadores de um outro naufrágio, o Tróia 1 (século XIX), em 2011. Os mariscadores não pediram qualquer recompensa por essa descoberta e, entretanto, o navio foi totalmente pilhado, explica Monteiro. “Passaram sete anos e a DGPC ainda não se pronunciou sobre esse naufrágio. As pessoas perdem a confiança no sistema.”
É por isso que o arqueólogo defende que, no “caso dos Bugios”, o melhor seria convidar uma “missão da UNESCO” a assumir o papel de “árbitro”.
Numa coisa ambas as partes concordam, ainda que seja muito prematuro para ter qualquer certeza – os vestígios deverão pertencer à S. Francisco Xavier, nau construída na Ribeira de Lisboa em 1622 e naufragada na Barra do Tejo a 23 de Outubro de 1625.
“Dar-lhe um nome não é uma prioridade”, diz António Fialho. “O que é preciso é saber mais e melhor o que ali está. A S. Francisco Xavier é uma hipótese de trabalho. Precisamos dela, mas não estamos à espera de encontrar uma plaquinha com o nome e o número de série”, ironiza o arqueólogo. “Cada caco, cada material, vai ajudar a contar a história. Barcos inteiros no fundo do mar é só no Tintim.”