Toda a nudez será castigada
O Palazzo Strozzi, em Florença, apresenta The Cleaner, grande retrospectiva da obra de Marina Abramovic. Entre as peças mais violentas do início da carreira e os trabalhos mais espirituais dos últimos anos, há reperformances com artistas nus que foram proibidas nos anos 70 e que hoje não podem ser partilhadas no Facebook. O que é que, em 2018, nos permitimos ver, afinal?
A passagem é estreita. De um dos lados está um homem nu. Em frente, de olhos presos nos dele, uma mulher nua. Quem quiser chegar ao outro lado da sala tem que passar entre os dois e tem que o fazer ligeiramente de lado, optando por se virar para um ou para o outro. A situação cria, naturalmente, desconforto. Mas isso não impede várias pessoas de avançar, largando malas e casacos, e roçar os dois corpos nus. Geralmente, do outro lado há alguém a fotografar o momento.
A peça Imponderabilia, da artista Marina Abramovic e do seu companheiro da altura, o alemão Ulay (Frank Uwe Laysiepen), foi apresentada pela primeira vez na Galleria Comunale d’Arte Moderna, em Bolonha, em 1977. Mas foi interrompida muito antes das sete horas previstas, pela polícia, chamada para pôr termo ao “comportamento indecente” dos artistas. A mesma peça pode agora ser vista no Palazzo Strozzi, em Florença, integrada na grande retrospectiva da obra de Marina Abramovic, The Cleaner (até 20 de Janeiro de 2019). Não há intervenção policial, mas as muitas fotografias e vídeos feitos pelos muitos visitantes são, neste tempo de redes sociais, completamente invisíveis no espaço público. A tentativa de as publicar numa conta de Facebook, por exemplo, é travada por uma mensagem da empresa avisando que a imagem não respeita as regras da comunidade.
Na sala seguinte, um grupo de crianças com 8 ou 9 anos estão sentadas no chão, ouvindo atentamente a técnica do serviço educativo, que lhes fala sobre o trabalho de Abramovic. Na parede ao lado, um vídeo mostra outra performance antiga da artista: Marina e Ulay correm a partir de pontos opostos, completamente nus, e cruzam-se, com um embate dos corpos, a meio do caminho (da peça Relation in Space, 1976).
Há, espalhadas pelo Palazzo Strozzi, várias reperformances, que acontecem a horas e dias diferentes. É um trabalho que Marina tem vindo a desenvolver, preparando as pessoas que as vão executar, por acreditar que é a melhor forma de fazer com que este tipo de obras, por natureza efémeras, perdurem. Nos anos 70, a ideia que dominava o mundo da arte era a de que estas performances eram momentos únicos e irrepetíveis – isso distinguia-as, em absoluto, do teatro. Mas hoje Marina pensa de forma diferente e iniciou este processo com um trabalho de recuperação – Seven Easy Pieces – no qual apresentou sete peças, duas dela própria e as outras de Bruce Nauman, Vito Acconci, Valie Export, Gina Pane e Joseph Beuys.
Nenhuma das reperformances no Palazzo Strozzi é dos trabalhos iniciais da artista – que são também os mais radicais e aqueles em que Marina leva os limites do corpo a extremos que, passadas décadas, continuam a impressionar. É por eles que a exposição começa. Vemos, por exemplo, Rhythm 5, que aconteceu em Belgrado em 1974: Marina construiu uma estrela de cinco pontas preenchida com pedaços de madeira embebidos em petróleo, que incendiou, colocando-se no meio até desmaiar e deixar que o fogo começasse a queimar-lhe uma perna; por fim, foi retirada, inconsciente, pelo público. Ou Rhythm 10 (Roma, 1973), na qual, usando 20 facas diferentes, vai, num ritmo crescente dado por música que sai de um gravador, espetando-as no chão entre os dedos, que vão ficando feridos e sujando de sangue a folha de papel branco. Quando repete a performance, seguindo a mesma ordem e o mesmo ritmo, corta-se nos mesmos sítios – “os erros do passado e do presente estão sincronizados”, escreve no texto que descreve a peça.
Mas o trabalho mais poderoso dessa fase é provavelmente Rhythm 0 (1974): “Há 72 objectos na mesa que podem usar em mim como quiserem. Eu sou o objecto. Durante este período assumo total responsabilidade.” Durante seis horas, no Studio Morra, em Nápoles, Marina sujeitou o seu corpo ao que os participantes na performance quisessem fazer com ele.
Na mesa, entre os objectos, há uma agulha, um machado, uma faca de cozinha, uma arma, uma bala, um chicote. Uma das imagens do catálogo mostra Marina como uma figura de martírio, com objectos pendurados ao pescoço, o corpo nu coberto de pinturas, um corte junto ao pescoço, os olhos cheios de lágrimas. A performance era tanto um trabalho de Marina, que aqui sujeita-se até à possibilidade de ser morta (a certa altura, alguém apontou a arma carregada ao coração da artista), como do público, cujo comportamento se dividiu entre os que se tornaram agressivos e os que a tentaram proteger.
Estas performances mais violentas correspondem ao início da carreira da artista, quando ainda vivia em Belgrado e lidava com a complexa relação com os pais – e sobretudo com a mãe, Danica Rosic. Uma das peças na primeira sala da exposição é uma máquina de lavar antiga, acompanhada pela história de como Marina, sozinha em casa com a avó, entalou a mão e não conseguia soltá-la. Quando finalmente conseguiu, a mãe deu-lhe uma bofetada.
A dureza da mãe e do pai, Vojin Abramovic (Vojo), combatentes comunistas contra os nazis no início da década de 40 e depois membros do Governo de Tito, marcou a infância e juventude de Marina e a sua complicada relação com a dor que, nas suas performances, várias vezes infligiu a si própria. “Coloquei sempre os meus medos em palco como forma de os transcender”, diz, citada em Walking Through Walls, perfil da artista assinado por Judith Thurman na The New Yorker. E acrescenta: “Em todas as culturas antigas há rituais para mortificar o corpo como forma de compreender que a energia da alma é indestrutível.”
No mesmo texto, Thurman explica o que Marina pretende, por exemplo, com uma peça como Imponderabilia: “O seu papel como artista, acredita ela com uma segurança que pode parecer ingénua e uma humildade que desarma qualquer impulso para nos irritarmos, é levar o seu público através de uma passagem ansiosa para um lugar de libertação do que quer que os estava a limitar.”
Outra obra marcante dos anos 70, e relevadora dessa relação com a dor, o desconforto e os seus limites, é Lips of Thomas, que começa com Marina a comer lentamente um quilo de mel com uma colher de prata, a beber um litro de vinho tinto de um copo de cristal, a partir o copo com a mão, a gravar uma estrela na barriga usando uma lâmina, a chicotear-se a si própria “violentamente, até já não sentir qualquer dor” e, por fim, a deitar-se numa cruz feita de blocos de gelo.
O cenário desta performance está montado na exposição do Palazzo Strozzi, mas neste caso não há reperformance. As peças deste período, repetidas duas vezes por semana, são as da Freeing Series – Freeing the Voice, Freeing the Memory, Freeing the Body, baseadas na repetição (do grito, da palavra ou da dança, sendo que nesta última o performer está nu e com cabeça tapada). Foi com estes trabalhos que Marina começou a cortar os laços com a Jugoslávia e a sua vida aí (tinha já tido um primeiro casamento, mas não viveu com o marido, mantendo-se sempre em casa da mãe). Pouco depois, em Amesterdão, conheceu Ulay.
O encontro com este filho de um soldado nazi nascido no mesmo dia que ela, a 30 de Novembro, marcou o início de uma nova fase na sua vida e na sua carreira. Juntos continuaram a explorar os limites do corpo e da resistência física e mental, com peças como Breathing In/Breathing Out, em que cada um respira para dentro da boca do outro durante 19 minutos, ou Light/Dark, em que, ritmadamente, se esbofeteiam durante 20 minutos, ou AAA-AAA, em que ambos gritam para o outro durante 15 minutos.
Uma das peças exposta na sala onde o grupo de crianças da escola ocupa parte do chão é Rest Energy, na qual Marina segura um arco e Ulay segura uma flecha apontada ao coração dela. Os dois estão numa posição de ligeiro desequilíbrio e se a mão dele falha, ela morre. A tensão dura quatro minutos e dez segundos. Durante parte da sua relação de 12 anos – que terminou com uma longa performance de três meses, na qual cada um caminhou por uma parte da Muralha da China para se encontrarem a meio e dizerem adeus – Ulay e Marina viveram parte do tempo numa carrinha preta adaptada (que pode ser vista no pátio interior do Palazzo Strozzi).
O trabalho conjunto foi evoluindo e o período que passaram junto de uma tribo no deserto australiano e dos lamas do Tibete marcou o início de um caminho mais espiritual. É essa história que, por outras palavras, a técnica dos serviços educativos do museu está a contar às crianças para explicar a razão de ser das performances em que Marina e Ulay, abandonando o movimento de peças anteriores, se sentam imóveis frente a frente, olhar fixo no olhar do outro (o que não significa que não haja dor, porque, como a artista disse em entrevistas, a imobilidade implica um grande controlo da dor).
A terceira fase da carreira de Abramovic, já sem Ulay, explora outros caminhos. Num deles, ela “regressa” à Jugoslávia para Balkan Baroque, que apresentou em 1997 na Bienal de Veneza: durante quatro dias e seis horas por dia sentou-se numa cave pouco arejada em cima de uma pilha de ossos de vaca com sangue e restos de carne. O ambiente sufocante no espaço, com Marina vestida com uma longa túnica branca cada vez mais suja, e esfregando os ossos enquanto cantava uma música popular do seu país, foi insuportável para muitos visitantes, que recordam sobretudo o cheiro nauseabundo que invadia a cave. Ao mesmo tempo, três ecrãs mostravam entrevistas de Marina, de bata branca, com o pai e com a mãe e, no centro, uma imagem dela a contar uma história macabra sobre técnicas de extermínio de ratos na Jugoslávia.
Na última sala voltamos a encontrar o grupo de crianças de escola na sua visita guiada. É aí que está aquele que se tornou nos últimos anos o trabalho mais mediático de Marina Abramovic: The Artist is Present. No MoMA de Nova Iorque, a artista sentou-se, imóvel e em silêncio, durante 736 horas, enquanto pessoas do público se sentavam à vez na cadeira em frente dela (foram 1675 os que o fizeram) e a olhavam nos olhos o tempo que quisessem. Muitas saíram a chorar. Ulay apareceu de surpresa e, quando o viu, ao fim de muitos anos de afastamento, foi Marina quem chorou. No final, disse que esta foi “uma das performances mais difíceis” que fez na sua vida e que se sentiu “num estado de exaustão mental e física” como nunca se sentira antes.
Nesta sala, onde se vêem as imagens dos rostos das pessoas que se sentaram frente a Marina no MoMA, a orientadora da visita propõe às crianças que façam o mesmo. Duas delas sentam-se nas cadeiras separadas por uma mesa e olham-se nos olhos. Outras organizam-se em grupos de duas e fazem o mesmo de pé. Sérias, concentradas, durante alguns instantes não fazem mais nada senão olharem-se nos olhos.
Saímos da exposição com a foto que fizemos na sala de Imponderabilia, enquanto uma rapariga fotografava o rapaz que a acompanhava no momento em que ele atravessava a “porta” por entre os dois corpos nus. Tentamos publicá-la nas redes sociais. No Instagram, passa. O Facebook envia uma mensagem avisando que a imagem não é aceitável e perguntando se concordamos em não a publicar por violar as regras da comunidade. Lemos o que dizem as regras a propósito da nudez: “As nossas políticas de nudez tornaram-se mais abrangentes ao longo do tempo. Compreendemos que a nudez possa ser partilhada por vários motivos, incluindo como forma de protesto, para sensibilizar relativamente a uma causa ou por motivos educacionais ou médicos. Quando tal intenção for clara, permitimos esse tipo de conteúdos. Por exemplo, apesar de restringimos algumas imagens de seios femininos que incluam o mamilo, permitimos outras imagens, incluindo as que retratam actos de protesto, mulheres a amamentar e fotos de cicatrizes pós-mastectomia. Também permitimos fotografias de pinturas, esculturas ou outro tipo de arte que retrate nudez.”